quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Patti Smith - Dancing Barefoot


"Com efeito, o que eu alcanço, senhor bacharel, é que para compor histórias e livros, de qualquer sorte que sejam, é mister um grande juízo e um maduro entendimento. Dizer graças e escrever donaires é de grandes engenhos ... 
(...)
- Não há livro tão mau - disse o bacharel -, que não tenha algo de bom."
 
 
Miguel de Cervantes  em "Dom Quixote de la Mancha"
Publicações Dom Quixote
3ª edição (Setembro de 2015)
Página 504
                                           
"chega o vento gélido
e deita-se
com a criança abandonada"
 
* Pungente haiku, revelando a infinita compaixão pelos seres humanos que inundava a alma de Matsuo Basho
 
 
 
"as pétalas de pequenas flores
caem em cascatas de sons -
murmúrios sem fim"
 
* Haiku de grande beleza poética em que os sentidos se transcendem a si mesmos
 
 
 
"leque com poema
quebrado em dois -
saudades de alguém"
 
* Considerava-se um acto de grande valor poético, ligado à elegância e beleza interiores, escrever-se um poema num leque, partir este em duas metades e oferecer uma delas a alguém
 
 
 
Matsuo Basho  em "O eremita viajante [haikus - obra completa]"
Assírio & Alvim, 2016

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Angus and Julia Stone - Nothing Else



A hipótese do cinzento

"Num país a preto e branco
recomendaram-me o cinzento. Um recurso
extraordinário. Com a hipótese do cinzento poderia
ensaiar
soluções inusitadas -
experimentar o morno (que não é frio nem
quente)
explorar o lusco-fusco (que
não é noite nem dia) praticar a omissão
(que não é mentira
nem verdade). Preto e branco misturados permitiam
finalmente
viver em conformidade
desocupar os extremos (tão alheios à virtude)
liquefazer-me na turba
no centro na
média
dourada. Com a paleta dos cinzentos poderia
aprimorar a arte da sobrevivência que
(como os mansos bem sabem) é
não estar vivo
nem morto."
 
 
João Luís Barreto Guimarães  em "Nómada"
Quetzal Editores, Maio de 2018
Página 21

Rui Costa  em "Mike Tyson Para Principiantes - antologia poética"

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Angus and Julia Stone - Grizzly Bear


"colher batata-doce
durante a lua cheia -
que boa vida!"
 
* As batatas eram levadas para o mercado por volta de 15 de Agosto, quando ocorria a festa da lua cheia de Outono. A elevada quantidade deste produto vendida nesta altura trazia bons proveitos financeiros aos agricultores. Segundo o calendário lunar, o mês de Agosto fazia parte do Outono.
 
 
 
"os meus ouvidos
sobre uma almofada de ventos -
chegou o outono"
 
* Haiku extremamente lírico, resultado dos estudos feitos pelo autor sobre a poesia clássica japonesa e chinesa.
 
 
 
"afugentando as nuvens
a lua desta noite
não pára de se polir"
 
* Referência ao relacionamento que Basho tinha com dois dos mais famosos fabricantes de espelhos com oficinas em Quioto. O conhecimento técnico dessa arte leva-o a escrever sobre o polimento tanto de espelhos como da face da lua.
 
 
 
Matsuo Basho  em "O eremita viajante [haikus - obra completa]"
Assírio & Alvim, 2016

Diálogo

"Não acredites: as pessoas que te falam em diálogo
querem o teu mal. Dizem que a compreensão deve
ser «cultivada» - e esperam bem sentados que te estateles ao comprido
na frente de uma esplanadazinha com vista para o tédio.
(...)
a essência do amor (essa magra celulite que tu deves alcançar pelo diálogo
na demonstração diária do respeito mútuo e sabiamente partilhado!)
 
Ainda pensas que te darei uma definição do amor?
 
Dou-te apenas o que não pode ser aceite:
o meu ser luminoso e irascível
- e nenhum deus invoco ou minimizo.
 
Faz o que quiseres, ou o que puderes, com o que eu te dou.
É para isso, é por isso que (o café está bom)
(e) eu gosto de ti."
 
 
Rui Costa  em "Mike Tyson Para Principiantes - antologia poética"
Assírio & Alvim, Setembro de 2017
Página 44

Pensamentos Encadeados: Os Pombos Guerreiros

"Matthieu Ricard expôs as suas ideias.
- Temos estado a falar muito acerca da possibilidade de mudança. Como é que isso acontece no contexto do treino contemplativo? Sabemos que as emoções duram segundos, que os humores duram, digamos, um dia, e que o temperamento é algo que é moldado ao longo de anos. Por isso, se queremos mudar, obviamente precisamos primeiro de agir sobre as emoções, o que ajudará a mudar os nossos humores, o que, por fim, acabará por cristalizar como um temperamento modificado. Por outras palavras, devemos começar por trabalhar com os eventos instantâneos que ocorrem na nossa mente. Como Lorde Chesterfield disse uma vez: se cuidarmos dos minutos, as horas cuidarão de si mesmas.
» Como é que procedemos em termos da experiência em primeira mão?
O período refractário e tudo o resto será um pouco abstracto para alguém que quer lidar com as suas emoções no momento presente. Por isso, um desses pontos-chave tem a ver com a forma como ocorre o encadeamento dos pensamentos, a forma como um pensamento leva a outro.
» O meu professor contou-me a história de um antigo chefe guerreiro no Tibete oriental que renunciara a todas as suas actividades marciais e mundanas e partira para uma caverna para meditar. Aí permaneceu durante alguns anos. Um dia, muitos pombos pousaram em frente à sua caverna e ele deu-lhes alguns grãos. Mas, enquanto os observava, o bando de pombos fê-lo recordar-se das legiões de guerreiros que tinha tido sob o seu comando e esse pensamento fê-lo recordar-se das suas expedições, ficando novamente furioso a pensar nos seus antigos inimigos. Estas recordações cedo invadiram a sua mente e ele desceu para o vale, encontrou os seus antigos companheiros e foi novamente para a guerra!
» Isto exemplifica a forma como um pequeno pensamento pode crescer e tornar-se numa obsessão de corpo inteiro, como uma minúscula nuvem branca incha até se transformar numa poderosa nuvem negra entrecruzada por raios. Como é que conseguimos lidar com isso?
» Quando falamos de meditação, a palavra utilizada no Tibete significa efectivamente «familiarização». Precisamos de nos familiarizar com uma nova forma de lidarmos com o surgimento de pensamentos. No início, quando um pensamento de ira, desejo ou inveja surge, não estamos preparados para ele. Por isso, numa questão de segundos, aquele pensamento deu azo a um segundo e a um terceiro pensamentos, e cedo a nossa paisagem mental fica invadida por pensamentos que solidificam a nossa ira ou ciúme e, nessa altura, é demasiado tarde. Tal como quando uma centelha pega fogo a toda uma floresta: estamos em maus lençóis.
» A forma básica de intervirmos chama-se «olhar novamente» para um pensamento. Quando um pensamento surge, precisamos de observá-lo e olhar novamente para a sua fonte. Precisamos de investigar a natureza desse pensamento que parece tão sólido. Enquanto estamos a olhar fixamente para ele, a sua solidez aparente derreter-se-á e esse pensamento desaparecerá sem originar uma cadeia de pensamentos. A questão não é tentar bloquear o surgimento dos pensamentos (tal não é possível de qualquer forma), mas não os deixar invadir a nossa mente. Precisamos de fazer isto vezes sem conta porque não estamos habituados a lidar com pensamentos dessa forma. Somos como uma folha de papel que ficou enrolada durante muito tempo. Se a tentarmos alisar numa mesa, ela irá enrolar-se novamente assim que levantarmos as mãos. É aqui que entra o treino.
» Podemos interrogar-nos acerca daquilo que as pessoas fazem em retiros, permanecendo sentadas durante oito horas por dia. Pois é isso exactamente que estão a fazer: estão a familiarizar-se com uma nova forma de lidar com o surgimento de pensamentos.
» Quando já nos habituámos a reconhecer os pensamentos assim que surgem, é como conseguirmos descobrir rapidamente um conhecido numa multidão. Quando um pensamento poderoso de atracção forte ou de ira surge e nós sabemos que irá provavelmente levar à proliferação de pensamentos, agora somos capazes de o reconhecer: «Oh, aí vem aquele pensamento.» Isso é o primeiro passo, ajudando-nos muito a evitar sermos assolados por esse pensamento. Quando nos habituámos a isso, o processo de lidarmos com os pensamentos torna-se muito mais natural. Não precisamos de travar qualquer luta interior nem de aplicar antídotos específicos a cada pensamento negativo, porque sabemos como fazê-los desaparecer sem deixarem rastro. Os pensamentos soltam-se sozinhos. O exemplo que se costuma dar é o da cobra. Se, por acaso, der um nó no seu próprio corpo, a cobra consegue desfazer esse nó sem esforço e sem precisar de ajuda externa. Por fim, chegará o momento em que os pensamentos aparecem e desaparecem como um pássaro a atravessar o céu, sem deixar rastro. O outro exemplo que se costuma dar é o de um ladrão a entrar numa casa vazia. Não há nada a perder para o dono e nada a ganhar para o ladrão.
» Esta é uma experiência de liberdade. Não nos tornamos simplesmente apáticos, como um vegetal, mas conseguimos subjugar os nossos pensamentos, que deixam de conseguir dominar-nos. Tal acontece apenas através de um treino continuado e de uma experiência autêntica.
» É assim também que podemos gradualmente desenvolver certas qualidades que se tornarão numa segunda pele, num segundo temperamento. Vejamos o exemplo da compaixão. Houve um grande eremita do século XIX chamado Patrul Rinpoche. Uma vez disse a um dos seus discípulos para ir para uma gruta e meditar durante seis meses, pensando apenas na compaixão. No início, o sentimento de compaixão por todos os seres é, com certeza, forjado, artificial. Depois, gradualmente, a mente vai ficando cheia de compaixão; esse sentimento permanece na nossa mente sem requerer qualquer esforço.
» Após seis meses, o meditador estava sentado na abertura da gruta e viu um cavaleiro solitário no vale, mais abaixo, a cantar. O yogi teve alguma espécie de premonição clara, um sentimento forte, de que o homem ia morrer dentro de uma semana. Depois, o contraste entre a visão daquele homem a cantar alegremente e a súbita intuição que o yogi teve deixou-o infinitamente triste pela existência condicionada, por aquilo a que os budistas chamam samsara. Nesse momento, uma compaixão genuína e avassaladora impregnou a sua mente e nunca mais a abandonou. Tornou-se uma segunda pele, o verdadeiro significado da meditação. Ver o homem foi o que desencadeou o sentimento, mas a familiarização que tinha sido conseguida anteriormente foi essencial. O incidente não teria tido o mesmo efeito se ele não tivesse passado seis meses a impregnar-se de compaixão.
» Estamos a falar de modos de ajudar a sociedade. Se aspiramos a contribuir com algo para a nossa sociedade, para alcançarmos uma nova visão das coisas, precisamos de começar por nós próprios. Precisamos de decidir transformar-nos e isso pode apenas surgir através do treino e não através de ideias passageiras. Essa é a contribuição que pode advir da prática budista."
 
 
Daniel Goleman  em "Emoções Destrutivas e Como Dominá-las - Um diálogo científico com o Dalai Lama"
Círculo de Leitores, 2006
Páginas 264 a 266

sábado, 7 de setembro de 2019

Sobretudo No Instante Em Que O Vento De Outubro

"Sobretudo no instante em que o vento de Outubro
vem com os dedos de geada flagelar os meus cabelos
e eu, preso pelas garras do sol, caminho sobre as chamas
e estendo sobre a terra uma garra sombria
junto à orla do mar, ouvindo o ruído dos pássaros
e o crocitar do corvo nas ramarias de inverno,
é que mais estremece o meu coração com a sua voz
e se derrama o sangue silábico ou as suas palavras perdidas.
 
Assim encerrado numa torre de palavras eu desenho
sobre o horizonte, ao caminhar como as árvores,
os perfis verbais das mulheres e, num parque, as filas longas
das crianças cujos gestos se assemelham a estrelas.
Há quem pretenda que eu te crie das faias vocálicas,
das vozes dos carvalhos ou que te conte uma narrativa
a partir das raízes de muitas províncias espinhosas,
e há quem pretenda que te crie das palavras de água.
 
Através de um vaso de fenos, o relógio que oscila
pronuncia a palavra das horas, o sentido enervado
paira sobre o círculo do pêndulo, declama a manhã
e vem anunciar no cata-vento a tempestade.
Há quem pretenda que dos sinais do prado eu te crie;
a erva memorável que me diz tudo o que já sei
rompe através do olhar com o inverno cheio de vermes.
E há quem pretenda que eu te conte os pecados do corvo.
 
Sobretudo no instante em que o vento de Outubro
(há quem pretenda que te crie de uma outonal magia,
dos sonoros montes do País de Gales ou da baba das aranhas)
vem com os punhos dos bolbos flagelar a terra,
há quem pretenda que te crie com palavras sem coração.
O coração esgota-se, estremecendo com a fuga
do sangue químico, consciente de como a agitação chega.
Junto à orla do mar, escuta as negras vogais dos pássaros."
 
 
Dylan Thomas  em "A Mão Ao Assinar Este Papel"
Assírio & Alvim, 1998

Breve

"Esta manhã comecei a esquecer-me de ti.
Acordei mais cedo que nos outros dias
e com o mesmo sono.
A tua boca dizia-me «bom dia» mas não:
não o teu corpo todo como nos outros dias.
As sombras por aqui são lentas e hoje não
comprei o jornal: o mundo que se ocupe da
sua própria melancolia.
ontem. há uma semana. há muitos meses.
um ano ensina ao coração o novo ofício:
a vida toda eu hei-de esquecer-me de ti."
 
 
Rui Costa  em "Mike Tyson Para Principiantes - antologia poética"
Assírio & Alvim, Setembro de 2017
Página 44
"a cerejeira velha
em flor -
memórias do passado"
 
* A flor de cerejeira está metaforicamente associada à natureza efémera da vida.
 
 
 
"num dia chuvoso de verão
ficarias feliz se te oferecessem
a face da lua?"
 
* Atribuir um rosto humano à lua era muito comum na literatura japonesa antiga.
 
 
 
"por sobre as flores-da-lua
um corpo fascinado
flutua sem pensamento"
 
*A «flor-da-lua» ou «rosto-do-anoitecer» são nomes populares da Lagenaria siceraria, cujas pétalas se abrem ao fim do dia.
 
 
 
Matsuo Basho  em "O eremita viajante [haikus - obra completa]"
Assírio & Alvim, 2016

quarta-feira, 4 de setembro de 2019


"S.M.B. - O escritor não tem de construir teorias. O mais importante para ele é ter tempo livre. Acho também que esta época é uma época sem espaço, as pessoas estão muito em cima umas das outras, há muitos barulhos, muitas interferências. O Fernando Pessoa teve muita sorte e muita inteligência em não ter publicado quase nada em vida ...
J.C.V. - Porquê?
S.M.B - Porque pôde escrever sozinho, à sua maneira, não perdeu tempo. É muito importante o escritor ser muito solitário. O Gide diz isso e eu também penso que sim. Mas é difícil ser solitário intelectualmente e não ser solitário humanamente. Não quer dizer que os escritores não precisem de conversa e diálogo. Mas uma coisa é conversa e diálogo, outra coisa é esta obrigação de falar de si, de dizer porque é que escrevem, essas coisas."
 
 
JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 468, 25 de Junho de 1991.
Entrevista de José Carlos de Vasconcelos a Sophia de Mello Breyner Andresen
"Jamais tive eu amor senão por ti.
Paixões o vento as trouxe e as levou
Qual ave migratória que pousou
Em temporário ninho onde vivi.
Amor, porém, é ave que povoa
O coração da gente e nele exulta
E ocupa de outra ave mais estulta
O coração partido e o perdoa.
Mas que fazer, se amor o dei ao vento
E sinto o coração ninho vazio
E sinto um grão calor e grande frio
E amo em oração no meu convento?
Eu amo quem amei e me deixou;
Não amo quem pousou - só quem voou."
 
 
Daniel Jonas  em "Oblívio"
Assírio & Alvim, 2017
Página 50

Onde Corriam Outrora As Águas Da Tua Face

"Áridas como um túmulo, as tuas coloridas pálpebras
não poderão fechar-se enquanto desliza a magia
com solenidade sobre os céus e a terra;
à volta do teu leito haverá corais
e ao longo das tuas marés nascerão serpentes,
até que morra a nossa crença do mar."
 
 
Dylan Thomas  em "A Mão Ao Assinar Este Papel"
"Há uma noção de abismo que é imanente a toda a experiência humana. A Terra é uma bola suspensa no espaço segundo um equilíbrio que não dominamos. E eu sei que há abismo também na poesia. Mas esta muitas vezes funciona como esconjuro do mal e da sombra e tem uma dimensão catártica que talvez seja o que faz com que o medo não me assalte do mesmo modo. Com a prosa, surge uma dúvida dentro de nós. Não sabemos nunca se estamos a esconjurar, se a convocar. É uma espécie de jogo muito estranho. Porque há esta diferença, não sei bem. Mas é o que se passa comigo. A poesia e a prosa são duas navegações diferentes."
 
 
JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 135, 5 de Fevereiro, 1985
Entrevista de Miguel Serras Pereira a Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

"Aqui nesta tebaida, ouço a paz.
Aceito a tua luz, o teu negrume,
Meus olhos são pastagens p'ra teu estrume,
Aceito o que me deres e o que não dás.
Eu ouço a metafísica das sarças,
As bruxas megalíticas das argas,
Reviro pedras, lágrimas amargas,
Procuro-te nos paus, nas rãs, nas esparsas.
Aceito que te busque e não me fales.
Onde estarás: na urze, na perpétua,
No verso mais perfeito, em rima incerta?
Aceito ouvir-te e tudo tu me cales.
À uma és e não; o tudo e o quase.
Em toda a parte estás, eclipse e fase."
 
 
Daniel Jonas  em "Oblívio"
Assírio & Alvim, 2017
Página 41
"Há coisas em que uma pessoa navega tacteando. Houve uma fase em que reflecti muito sobre a natureza da escrita. Agora não me interrogo muito sobre o modo, o quê e o como do que escrevo. Vou navegando. Vou encontrando, vou dizendo o que surge e o que faço. Sem dúvida, a palavra é uma forma de não se ser devorado pelo caos, pela confusão, pela contradição e o tumulto, apesar de ter um pacto com tudo isso e de sem isso não atingir a sua plenitude."

JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 135, 5 de Fevereiro, 1985
Entrevista de Miguel Serras Pereira a Sophia de Mello Breyner Andresen
"Abstrusa, não me venhas condenar
O meu amor precário, não te afronte
O meu acinte, o já não seres a fonte
De júbilo, tão-só de jubilar.
Nasceu primeiro o ovo ou a galinha?
Assim não me condenes à falência;
Não ralhes a estação da minha ausência,
Não ralhes ter chegado o fim da linha,
Se foi de ti que tanto Outono veio.
Faliu-nos a empresa, a nossa gesta:
Teus lábios são ventosas, torniquetes
Teus abraços, a voz claquete, fretes,
Em suma, tudo o que há e o que lhe resta,
Ao mártir que ama o belo no teu feio."
 
 
Daniel Jonas  em "Oblívio"
Assírio & Alvim, 2017
Página 30

"O que somos nós senão um agregado de mil coisas?"

 
Excerto da entrevista de Lourdes Castro (um dos nomes portugueses mais importantes da arte internacional) na E - A Revista do Expresso (31/Agosto/2019)
Texto de João Pacheco
Página 30
"M.A.P - Num poema seu o «Kaos onde tudo nascia» é o «palácio do Minotauro» da infância ...
 
S.M.B - É um pouco todo aquele mundo de coisas múltiplas, diversas, contraditórias, assustadoras que enfrentamos na infância e que não conseguimos organizar dentro de nós, decifrar, compreender, mas que ao mesmo tempo são muito ricas. A diferença entre o caos e o mal é que enquanto o mal é uma negatividade total, um puro princípio de destruição - do mal não nasce nada -, o caos tem em si uma força de recriação. Em Hesíodo ao princípio era o caos. E na Bíblia «as trevas que cobriam a face do abismo» são ainda o caos, do qual Deus vai tirar o mundo ordenado, dividindo as águas, dividindo a noite do dia ..."
 
 
JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 26, 16 de Fevereiro de 1982
Entrevista de Maria Armanda Passos a Sophia de Mello Breyner Andresen
"Beleza tão lacustre e recolhida
Tão pródiga em tórpidos encantos
E os lagos tão mortiços nos seus prantos ...
Que bom ao campo vir eu de fugida!
Aqui nesta lagoa verde-tudo
É como se admirasse um óleo morto,
Um leito de uvas, peras, figos, o horto
À mesa, a safra triste, o pão sisudo.
Mas p'ra quê ser rural, se apartamentos
Desfrutam destas carnes de verdura
E ao menos no meu quadro sempre dura
A vida destes podres elementos?
Assim eu digo dane-se a natura!
Prefiro a eternidade da clausura!"
 
 
Daniel Jonas em  "Oblívio"
Assírio & Alvim, 2017
Página 13