domingo, 13 de abril de 2025

"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (VI)

 
"Porque o ensaio, ainda que possa retirar grande parte da sua sedução do estilo elíptico ou metafórico, não pode ser um discurso cifrado. Nem se confunde com o fragmento. Nem participa do minimalismo atomizador da cultura mediática e política do nosso tempo: o ensaio, nas suas variantes mais livres, que, no limite, podem ir da crónica jornalística à reflexão de fundo, coloca-se, isso sim, na situação, única e instável, de ter de pensar o seu objecto - à partida qualquer objecto - de forma múltipla, no interior dessa barca onde todos vamos, mas de um ponto de vista que lhe é necessariamente exterior. Porque o ensaio, para sê-lo, ensaia, com a medida de tempo e de espaço que lhe convém, formas de escrita que o levam a pensar também de forma crítica e livre o próprio campo cultural que o gera."


" ... talvez as razões da fraca presença do ensaio se devam ao facto de ele ter uma clara propensão para germinar no espaço universitário, um húmus que, no entanto, se revela quase sempre incompatível com a disponibilidade e a libertação de normas, com a criatividade de pensamento em linguagem que é apanágio do ensaio."



João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Páginas 79 e 80

sábado, 12 de abril de 2025

"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (V)

 "É ainda Barthes quem o sugere: «O fragmento tem um ideal: uma alta condensação, não de pensamento, ou de sabedoria, ou de verdade (como na máxima), mas de música: ao "desenvolvimento" opor-se-ia o "tom", qualquer coisa de articulado e de cantado, uma dicção ...». Uma «escrita de pedras» (Roger Caillois, Pierres) com timbre próprio, sempre fragmentos de outras maiores, mas completas. O fragmento é «arestado» (tem arestas), mas não fechado; cortante, mas não dobrado sobre si próprio, «equilíbrio miraculoso fora de qualquer eixo» (Garrigues: 1995, 19). A sua leitura é uma arqueologia: leitura de vestígios, intuição de marcas deixadas no seu corpo, mas que remetem para instâncias exteriores a ele."


"O leitor de fragmentos, leitor por excelência melancólico e de olhar alegórico, é, numa bela expressão, quase intraduzível, de Pascal Quignard, frappé d'origine (tocado pelo sopro das origens?). Como aquele que os escreve, sente-se atraído pelos começos, e tende a multiplicá-los, adiando sine linea a conclusão."



João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Página 77

sexta-feira, 11 de abril de 2025

"O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento" (IV)

 
"Por sua vez, a poesia (moderna) é sempre fragmento, e na sua história recente tem oscilado entre perder-se na sopa indistinta da totalidade (nos adeptos do poema longo) e concentrar-se no orgasmo do fragmento (nos paladinos do laconismo e da forma breve). O fragmento (o romântico), esse é a materialização mesma do poético: põe em acção a imaginação, eleva as coisas do mundo a uma potência superior, sonha com uma totalidade - é totalidade intensiva, ausência presente convergindo para um centro. Para os primeiros românticos alemães, a expressão do absoluto poético tem de passar por uma forma como a do fragmento «órgão do infinito» em moldes aparentemente finitos e limitados, mas na verdade abertos e sem margens.
(...)
Ou com aquele resto que é condição de possibilidade do alargamento de sentido pela imaginação, próprio dessa forma concentracionária sempre à beira da explosão que é o fragmento?"




João Barrento em "O Género Intranquilo - anatomia do ensaio e do fragmento"
Assírio & Alvim, Setembro de 2010
Página 64