domingo, 31 de maio de 2020

"Tornas-te mais lúcido do que és
À escuta da natureza lês a poesia da vida à vida que lê a poesia 
do homem
a terra é um corpo
a montanha um antepassado
o rio uma veia a floresta música
as estrelas saem para dançar
os pássaros para aplaudir e cantar
as sombras levam as chaves da luz"



"O Arco-Íris do Instante - Antologia Poética" de Adonis
Publicações Dom Quixote, Outubro de 2016
Página 107

Iquebana - A arte japonesa dos arranjos florais

"A arte japonesa dos arranjos florais chama-se iquebana. Também é conhecida como Kadõ, ou o caminho das flores. É tida como uma das três artes japonesas de refinamento, juntamente com Kõdõ (o caminho do incenso) e Chadõ (o caminho do chá). O iquebana é mais do que simplesmente colocar flores numa jarra, é uma forma de arte disciplinada que reúne natureza e humanidade e funde o espaço interior com o exterior. O aspecto espiritual do caminho das flores também é muito importante. A iquebana é uma prática meditativa, que nos proporciona espaço e silêncio para considerarmos a passagem das estações e apreciarmos coisas na natureza a que frequentemente não prestamos atenção por andarmos muito ocupados na nossa vida quotidiana. Para transmitir uma impressão tão natural quanto possível, um arranjo iquebana inclui não somente flores, mas também folhas e ramos. Um vaso baixo e aberto deixa exposta a superfície da água e cria o efeito de uma planta no seu ambiente natural. Até a disposição de uma única flor deve ter em consideração os ritmos das estações e as mudanças constantes no mundo natural."



"Shinrin-Yoku: A Arte Japonesa da Terapia da Floresta" de Dr. Qing Li
Editora Nascente, Abril de 2018
Página 33

O Homem e o Mar

"Homem livre, tu sempre adorarás o mar!
O mar é o teu espelho; a tua alma contemplas
Na sua ondulação, no infinito vaivém,
E o teu espírito é fosso não menos amargo.

Gostas de mergulhar na tua própria imagem;
Chegas mesmo a beijá-la, e o teu coração
Distrai-se algumas vezes do seu próprio som
Com o rumor dessa queixa indomável, selvagem.

Sois ambos, afinal, discretos, tenebrosos:
Homem, ninguém sondou os teus fundos abismos;
Ó mar, ninguém conhece os teus tesouros íntimos,
Tanto que sois dos vossos segredos ciosos!

E porém, desde sempre, há séculos inumeráveis,
Que os dois vos combateis sem piedade ou remorso,
De tal modo gostais da carnagem, da morte,
Ó lutadores eternos, irmãos implacáveis!"



"As Flores Do Mal" de Baudelaire
Assírio & Alvim, Outubro de 1998
Páginas 75

quarta-feira, 27 de maio de 2020

"Shizen - que se traduz como «natureza» ou «naturalidade» - é um dos sete princípios da estética zen. A ideia subjacente ao shizen é a de que estamos todos ligados à natureza, emocional, espiritual e fisicamente, e quanto mais algo se relaciona intimamente com a natureza, mais prazeroso é, quer se trate de uma colher, uma peça de mobiliário ou o modo como uma casa está decorada. Os padrões de um quimono são frequentemente representações do mundo natural, pelo que podemos ficar envoltos em peónias ou glicínias, flores de cerejeira ou crisântemos, ou mesmo paisagens completas de rios, árvores ou montanhas."



"Shinrin-Yoku: A Arte Japonesa da Terapia da Floresta" de Dr. Qing Li
Editora Nascente, Abril de 2018
Página 33
"mais violenta do que a sombra a irromper de dentro de nós
é apenas a ausência da sombra - o limiar
da luz final
que já nada esconde

todo o meu amor sem lugar dentro de ti
é apenas a minha sombra em direcção a ti
que perdeu a sua luz
e palpita como uma pedra que brotou debaixo da tua casa

enquanto toda a tua vinda para o meu amor
não é mais que a sombra do medo obscurecido
da tua vida enregelada
iluminada intermitentemente

tal como o trémulo desta insciência de viver"



"sombras e falésias" de Dinu Flamand
Guerra & Paz, Editores
Março de 2017
Página 31

Tocar a Luz

"Hoje o céu escreveu o seu poema
com tinta branca
Chamou-lhe neve"


"A palmeira fala com o seu tronco
a rosa com o seu perfume"


"Arco-íris?
Unidade do céu e da terra
entrançados numa só corda"


"O céu também chora
mas limpa as lágrimas
com o lenço do horizonte"


"Na floresta dos meus dias
nenhum lugar
excepto para o vento"


"Para chegar à luz
tens de te apoiar na tua sombra"


"Palavras - asas para pássaros que tomam
os sonhos como ninhos"



"O Arco-Íris do Instante - Antologia Poética" de Adonis
Publicações Dom Quixote, Outubro de 2016
Páginas 58, 59 e 62

sexta-feira, 22 de maio de 2020

A hipótese da biofilia

"O conceito de que os seres humanos têm uma necessidade biológica de ligação com a natureza tem recebido o nome de biofilia, que, com origem no grego, significa «amor à vida e ao mundo vivo». O conceito tornou-se popular em 1984, graças ao biólogo americano E.O.Wilson. Este acreditava que, uma vez que evoluímos na natureza, temos uma necessidade biológica de ligação com esta. Adoramos a natureza, porque aprendemos a adorar coisas que nos ajudaram a sobreviver. Sentimo-nos confortáveis em contacto com a natureza, porque foi aí que vivemos a maior parte da nossa vida na Terra. Estamos geneticamente determinados a amar o mundo natural. Está no nosso ADN.

E esta afinidade pelo mundo natural é fundamental para a nossa saúde. O contacto com a natureza é tão vital para o nosso bem-estar como o exercício regular e uma dieta saudável. «A nossa existência depende dessa propensão, o nosso espírito é tecido a partir dela, a esperança alimenta-se do seu fluxo», escreveu Wilson. Estamos «programados» para nos afiliarmos ao mundo natural e, do mesmo modo que colhemos os benefícios de estarmos nele, também a nossa saúde sofre quando nos divorciamos dele."



"Shinrin-Yoku: A Arte Japonesa da Terapia da Floresta" de Dr. Qing Li
Editora Nascente, Abril de 2018
Página 24

Terra Materna

"Não a trazemos ao peito como amuleto,
não soluçamos para ela em verso sentido,
ela não perturba o nosso sonho amargo,
ela não nos parece o éden prometido.
Na nossa alma ela não se molda
em objecto de compra e de venda,
nunca nos lembramos dela na hora
miserável e muda e doente.
Sim, ela é para nós lama nas botas,
sim, terra nos dentes esmigalhada.
E mais amassamos, mais remoemos
este pó que não tem culpa de nada.
Mas nela nos deitamos, nela nos tornamos,
por isso, com direito, nossa lhe chamamos."



"Só o sangue cheira a sangue" de Anna Akhmátova
Assírio & Alvim, Dezembro de 2000
Página 67
"surge como um cervo precedido do seu mugir por entre ramos
esta lua cheia
primeiro o seu brilho e apenas mais tarde ela própria
sobre o mar

a luz e a água não chegam a tocar-se
enquanto a emoção fica de braços cruzados
e o invisível faz-lhe eco

o ar esmiuçado acorda alguns
insones
que abraçam com um intocar semelhante ao sono
a escuridão do próprio colapso

quem nele tiver presente a ausência
sentirá mais do que sente"



"sombras e falésias" de Dinu Flamand
Guerra & Paz, Editores
Março de 2017
Página 62
"Todos sabemos que há fome no mundo. Todos sabemos que há oitocentos ou novecentos milhões de seres humanos - os cálculos oscilam - que passam fome todos os dias. Todos lemos ou ouvimos essas estimativas - e não sabemos ou não queremos fazer nada com elas. Se houve tempos em que o testemunho, o relato mais cru possível, serviu, hoje já não serve.
Que resta então? O silêncio?
(...)
Este livro suscita muitos problemas. Como contar o que é diferente, o mais remoto? É muito provável que o leitor, a leitora, conheça alguém que tenha morrido de cancro, sofrido um ataque violento, perdido o amor, o trabalho, o orgulho; é muito improvável que conheça alguém que viva com fome, que viva a ameaça de morrer de fome. Tantos milhões de pessoas que são o que há de mais remoto: aquilo que não sabemos - nem queremos - imaginar.
(...)
E, sobretudo, como lutar contra a degradação das palavras? As palavras «milhões-de-pessoas-passam-fome» deveriam significar alguma coisa, produzir certas reacções. Mas, em geral, as palavras já não têm esse efeito. Talvez acontecesse algo, se pudéssemos devolver o sentido às palavras."



"A Fome" de Martín Caparrós
Temas e Debates, Março de 2016
Páginas 11 e 12

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Correspondências

"A Natureza é um templo onde vivos pilares
Pronunciam por vezes palavras ambíguas;
O homem passa por ela entre bosques de símbolos
Que o vão observando em íntimos olhares.

Em prolongados ecos, confusos, ao longe,
Numa só tenebrosa e profunda unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Correspondem-se as cores, os aromas e os sons.

Há perfumes tão frescos como a jovem carne,
Doces como oboés e verdes como prados,
- E há outros triunfantes, ricos, corrompidos,

Que se expandem no ar como coisas sem fim,
Como o âmbar, o almíscar, o incenso, o benjoim,
E cantam os arroubos da alma e dos sentidos."



"As Flores Do Mal" de Baudelaire
Assírio & Alvim, Outubro de 1998
Páginas 57 e 59
"Não se deve procurar uma igualdade imaginária entre os homens mas uma equidade decente."


"Pegou no antigo moinho de orações tibetano colocado sobre a secretária e deu-lhe uma ou duas voltas, escutando o débil atrito no interior do tambor, abafado pelos pedacinhos de papel amarelado onde penas piedosas tinham escrito havia muito tempo a invocação Om Mani Padme Hum. Fora um presente do pai no momento da despedida."


"Escreve-se para recuperar uma inocência perdida."


"Escapar - sempre escapar ... O desejo de um escritor de estar a sós consigo próprio - o escritor, o mais solitário de todos os animais humanos."


"Até o santo morre com todas as suas imperfeições na cabeça."



"O Quarteto de Alexandria" de Lawrence Durrell
Publicações Dom Quixote, 2012
Páginas 456, 487, 493, 538 e 544 
"Há dentro de mim uma lembrança,
pedra branca no fundo de um poço,
já não posso, já não quero lutar:
ela é sofrimento, alegre alvoroço.

Acredito: quem olhe bem de perto
nos meus olhos a possa vislumbrar.
E cisme mais triste do que ouvindo
uma história de saudade e pesar.

Diz-se que os deuses mudavam os homens
em coisas, sem matar-lhes a consciência,
para que vivesse a maravilhosa
tristeza. E ficaste-me lembrança."

[Verão de 1916, Sliepniovo]



"Só o sangue cheira a sangue" de Anna Akhmátova
Assírio & Alvim, Dezembro de 2000
Página 19

terça-feira, 12 de maio de 2020

"A única maneira de permanecermos fiéis ao tempo, escreve Balthazar, consiste em intercalar as realidades, porque em cada ponto do Tempo as possibilidades são infinitas na sua multiplicidade."


"A ciência é a poesia do intelecto e a poesia é a ciência das doenças do coração."


"Num livro de poemas: «Tomar de vez em quando por necessidade e deixar dissolver no espírito».


"Ali afirma que as estrelas cadentes são pedras lançadas pelos anjos para afastar os demónios que se aproximam do Paraíso a fim de escutar as conversas onde se enunciam os segredos do futuro."


"Sabes que no Islão todo o homem tem uma estrela que lhe pertence desde que nasceu e o acompanha até à morte?"



"O Quarteto de Alexandria" de Lawrence Durrell
Publicações Dom Quixote, 2012
Páginas 385, 402, 432 e 443
"Quando os nossos pais morrem, ficamos frente a frente com a nossa própria morte."


"Sally, dou em doida se não puder ler quando acordo e antes de adormecer. É um hábito parvo, mas não há nada a fazer."


"Como é que podia falar com Sally sobre o seu alcoolismo? Não era como falar sobre uma morte ou sobre a perda de um marido ou de um peito. As pessoas diziam que era uma doença, mas ninguém a obrigava a pegar nas bebidas."


"Ela fazia isso, às vezes. Quando queria dizer a alguém o que sentia mas era demasiado difícil, mostrava um poema. Geralmente, não compreendiam o que ela queria dizer."



"Manual para mulheres de limpeza" de Lucia Berlin
Alfaguara, Maio de 2016
Páginas 253, 255 e 277
"Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor - 
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição ...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração."



"Só o sangue cheira a sangue" de Anna Akhmátova
Assírio & Alvim, Dezembro de 2000
Página 17

domingo, 3 de maio de 2020

Canções de Camponeses do Japão

"Arrozal De Madrugada

Às quatro da manhã, arranco
ervas daninhas do arrozal.
Mas que é isto: orvalho do campo,
ou lágrimas de dor?"



"As Três Claridades

A Lua a leste,
a oeste as Plêiades,
o meu amado
ao meio."



"Poesia Toda" de Herberto Helder
Assírio & Alvim, Março de 1996
Página 217
"Conhecemos a fome, estamos habituados à fome: sentimos fome duas ou três vezes por dia. Não há nada mais frequente, mais constante, mais presente nas nossas vidas do que a fome - e, ao mesmo tempo, para a maior parte de nós, nada está mais longe do que a fome verdadeira.
Conhecemos a fome, estamos habituados à fome: sentimos fome duas, três vezes por dia. Mas entre essa fome repetida, quotidiana, repetida e quotidianamente saciada que vivemos, e a fome desesperante daqueles que não conseguem suportá-la, há um mundo. A fome foi, desde sempre, a razão de mudanças sociais, de progressos técnicos, de revoluções, de contrarrevoluções. Nada influiu mais na história da humanidade. Nenhuma doença, nenhuma guerra matou mais gente. Ainda hoje, nenhuma praga é tão letal e, ao mesmo tempo, tão evitável como a fome."



"A Fome" de Martín Caparrós
Temas e Debates, Março de 2016
Página 10

Poesia

"Aqui te chamo
aqui me chegas,
aqui te escrevo
e respiro:
botija de oxigénio."


"Antologia Poética" de António Osório
Quetzal Editores, Lisboa 1994
Página 123
"Ele costumava ficar ali sentado a bebericar Jim Beam, a olhar para as minhas mãos. Não directamente, mas pelo espelho à nossa frente, por cima das máquinas de lavar Speed Queen. Ao início, não me incomodou. Um velho índio a olhar fixamente para as minhas mãos pelo espelho sujo, entre «Engoma-se 1,50$ a dúz.» amarelecidos e preces de serenidade em cor de laranja-fluorescente. «Deus, concede-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar.»
(...)
Ele voltou mais tarde, bêbado, precisamente na altura em que as suas roupas começavam a ficar mais leves e secas. Não conseguiu abrir a porta, apagou-se sobre a cadeira amarela. As minhas roupas já tinham secado, estava a dobrá-las.
Eu e o Angel pusemos o Tony no chão da sala de engomar. Quente. O Angel é o responsável por todas as preces e lemas dos AA. «Não penses e não bebas.» Ele pôs uma meia molhada e fria na testa do Tony e ajoelhou-se ao seu lado.
«Irmão, acredita em mim ... Já estive nesse sítio ... nessa mesma sarjeta onde estás agora. Sei perfeitamente como te sentes.»
O Tony não abriu os olhos. Qualquer pessoa que diga que sabe como outra se sente é um idiota."



"Manual para mulheres de limpeza" de Lucia Berlin
Alfaguara, Maio de 2016
Páginas 36 e 37 

Quinze Haikus Japoneses

"A lua deitou sobre as coisas
uma toalha de prata.
Azáleas brancas."



"Poesia Toda" de Herberto Helder
Assírio & Alvim, Março de 1996
Página 221

sábado, 2 de maio de 2020

As Constelações

"Anda ver, Lucrécio, as tuas constelações.
Na noite bebem, animais vagarosos.
Vénus rodeia ainda o sol e sirius
na esfera celeste que foi tua.
Sem deuses, como querias, a máquina
do mundo. Ali tens, em Roma, a tua exacta
longitude. As marés chegam e partem - 
ondas pontuais como as estações.
E Março tudo renova, menos o homem,
matéria volátil. O primeiro, o eco
de sua voz procuramos. Emigrante do paraíso.
E o número incontável de seus filhos
e símbolos. O segredo perigoso dos rostos,
a constância inumana do esperma,
o rastilho aceso à nascença:
gota simiesca, precipício do ser."



"Antologia Poética" de António Osório
Quetzal Editores, Lisboa 1994
Página 290
"Há regiões inteiras do meu ser que não compreendi ainda. Preciso de tempo."


"A verdade é o que existe de mais contraditório ...!"


"(Um dos grandes paradoxos do amor. A concentração exclusiva do objecto amado e a posse são os venenos.)"


"Vivemos de ficções selectivas."


"Há somente tantas realidades quantas pudermos imaginar, escreveu Pursewarden."



"O Quarteto de Alexandria" de Lawrence Durrell
Publicações Dom Quixote, 2012
Páginas 254, 288, 299, 318 e 327

Teoria Sentada (III)

"A minha idade é assim - verde, sentada.
Tocando para baixo as raízes da eternidade.
Um grande número de meses sem muitas saídas,
soando
estreitos sinos, mudando em cores mergulhadas.
A minha idade espera, enquanto abre
os seus candeeiros. Idade
de uma voracidade masculina.
Cega.
Parada.
Algumas mãos fixam-se à sua volta.

Idade que ainda canta com a boca
dobrada. As semanas caminham para diante
com um espírito dentro.
Mergulham na sua solidão, e aparecem
batendo contra a luz.
É uma idade com sangue prendendo
as folhas. Terrível. Mexendo
no lugar do silêncio.
Idade sem amor bloqueada pelo êxtase
do tempo. Fria.
Com a cor imensa de um símbolo.

Eu trabalho nas luzes antigas, em frente
das ondas da noite. Bato a pedra
dentro do meu coração. Penso, ameaçado pela morte.
E uma raiz séca, canta-se
no calor. É uma idade cor da salsa.
Amarga. Imagino
dentro de mim. Trabalho de encontro à noite.
Procuro uma imagem dura.

Estou sentado, e falo da ironia de onde
uma rosa se levanta pelo ar.
A idade é uma vileza espalhada
no léxico. Em sua densidade quebram-se
os dedos. Está sentada.
Os poentes ciclistas passam sem barulho.
Passam animais de púrpura.
Passam pedregulhos de treva.
É para a frente que as águas escorregam.

Idade que a candura da vida sufoca,
idade agachada, atenta
à sua ciência. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita
por um lado a terra
quente.
Trabalhando, nua, diante da noite."



"Poesia Toda" de Herberto Helder
Assírio & Alvim, Março de 1996
Páginas 151 e 152

sexta-feira, 1 de maio de 2020

"Nós vivemos, escreve algures Pursewarden, vidas baseadas sobre uma selecção de ficções."


"Cada psique é na realidade um formigueiro de predisposições contraditórias."


" ... somos nós os criadores dos nossos infortúnios e neles se encontram as nossas impressões digitais."


"Clea era demasiado nobre para amar de outra forma que não fosse apaixonadamente; e, apesar disso, capaz de amar uma pessoa a quem só falasse uma vez por ano. A corrente calma e profunda do seu coração amontoava as imagens, deixando-as reflectirem-se na corrente rápida, deixando-as afundarem-se mais profundamente na memória, de uma forma que a maior parte de nós não é capaz de imitar. A verdadeira inocência não comete trivialidades e, quando aliada à generosidade do coração, a combinação torna-a a mais vulnerável das qualidades que possam existir sob os céus."


"A etiologia do amor e da loucura são idênticas; é tudo uma questão de grau, ..."



"O Quarteto de Alexandria" de Lawrence Durrell
Publicações Dom Quixote, 2012
Páginas 218, 219, 249, 250 e 252

Cada Segundo

"Não desejo a indigência,
a serenidade
dos lugares desertados:
desejo que cada segundo
quando amo
explodisse
e fosse a terra
em sua expansão
durante a primeira noite,
a gestante, do mundo."


"Antologia Poética" de António Osório
Quetzal Editores, Lisboa 1994
Página 131
"Na arte tudo pertence aos domínios da sensibilidade, sobretudo nos seus começos. De início, só através da sensibilidade se atinge a verdadeira arte. Ainda que a construção geral possa ser elaborada unicamente a partir da teoria, o elemento que constitui a verdadeira essência da criação jamais se encontra através da teoria; é a intuição que dá a vida à criação. Agindo sobre a sensibilidade, a arte só pode agir através dela."



"Do Espiritual Na Arte" de Wassily Kandinsky
Publicações Dom Quixote
11ª edição, Setembro de 2017
Página 76