Era uma família jovem que vivia com dez dólares por mês no bairro de Altavista, numa El Salvador dominada por gangues. A mãe nadou de volta ao México quando a corrente mudou mas o pai e a pequena Valeria insistiram no sonho. A fotografia dos seus corpos inertes mas ainda abraçados à margem do rio que separa os Estados Unidos do México voltou a enraivecer toda a gente - e é para isso mesmo que o fotojornalismo serve.
Mantinha-a revestida da sua própria t-shirt para evitar que lhe escorregasse na travessia, que caísse na água e fosse levada pela corrente. Óscar Alberto Martínez Ramírez e Valeria, a sua filha de um ano e 11 meses, morreram este domingo quando tentavam atravessar o rio Bravo que separa Ciudad Juárez, no México, de El Paso, nos Estados Unidos: a última barreira entre o drama e o sonho. Foram encontrados ainda unidos por esse mesmo pedaço de tecido negro, Valeria ainda com um dos braços por cima do pai. Em poucas horas a fotografia tinha exasperado o mundo - e as consequências bem reais desta captura de um desespero que esta imagem torna mundial.
A jovem família, originalmente de El Salvador, tinha chegado à cidade fronteiriça de Matamoros no fim de semana passado, com esperanças de pedir asilo nos Estados Unidos. Mas a ponte internacional estaria encerrada até segunda-feira, disseram-lhes os guardas. Olharam o rio, as águas até pareciam calmas. Segundo o que a mãe da pequena Valeria, Tania Vanessa Ávalos, contou às autoridades depois de saber da terrível notícia, a família lançou-se ao rio domingo à tarde, só que, a meio da travessia, Óscar, com a filha sobre os ombros, começou a acusar cansaço. Tania nadou de volta à margem mexicana. Virou-se e já só viu Óscar e Valeria arrastados pela corrente, já muito perto da margem norte-americana de um rio que em meia hora passou de esperança a carrasco. Nesse mesmo domingo mais dois bebés, uma criança e uma mulher, morreram no Vale do Rio Grande. Uma outra criança foi encontrada morta no deserto do Arizona no início deste mês e, segundo os números recolhidos por Jason de León, antropologista da Universidade de Michigan, por cada pessoa que as autoridades de patrulha de fronteira recuperam pelos menos outras cinco pessoas desaparecem - mas o número pode ir até dez, disse de León ao “New York Times”. Ora, a polícia recolhe 375 corpos por ano, mais do que um por dia. Acreditando nas piores previsões do professor, podem estar a morrer quase quatro mil pessoas por ano na tentativa de chegar aos Estados Unidos.
“As fotografias não podem criar posições morais mas podem reforçar uma já existente - ou fomentar outras que estejam ainda no seu estado embrionário”, escreveu Susan Sontag sobre a fotografia. O que esta imagem tirada no México pela fotógrafa Julia Le Duc alcançou em tão pouco tempo sublinha o poder que uma fotografia continua a encerrar: enquanto se espalhava nas redes sociais, os democratas na Câmara dos Representantes juntavam-se para aprovar uma lei de ajuda humanitária de emergência no valor de mais de 4,5 mil milhões de dólares para tentar de alguma forma mitigar o sofrimento das pessoas que chegam à fronteira do México com os Estados Unidos todos os dias. Joaquin Castro, democrata do Texas, não escondeu a emoção a olhar a fotografia enquanto falava aos jornalistas em Washington e reforçou que espera uma resposta à altura de todos os legisladores. "É muito difícil olhar para esta fotografia", disse Castro. “É a nossa versão da fotografia da Síria - do menino de 3 anos na praia, morto. É isso que é.''
O legislador texano referia-se a Alan Kurdi, o menino sírio resgatado sem vida de uma praia turca em setembro de 2015, no início do que rapidamente se tornou também o pico da crise migratória às portas da Europa. Mais de 20 milhões de pessoas partilharam a imagem da criança nas redes sociais nas 12 horas que se seguiram e um estudo da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, encontrou diferenças significativas na linguagem usada desde então para caracterizar os sírios nas redes sociais - passaram a ser muito mais vezes “refugiados” e “perseguidos” do que “migrantes”.
Tal como Julia Le Duc, Quetzalli Blanco, fotógrafa freelancer que colabora com várias agências internacionais, também está na fronteira em reportagem. Admite ao Expresso que se fartou de chorar e “todos os dias assistimos aqui a coisas horríveis que não podemos transmitir mas temos de documentar”. O que mais lhe dói ver, e o que mais quer transmitir, é o horror por que passam “as mulheres grávidas e as crianças sem apoio” e principalmente “o desespero das pessoas que esperam por documentos para poderem estar no México à espera de outros documentos para tentarem ir para os Estados Unidos”. Esse desespero da espera “não é muito documentado” mas é verdadeiramente exasperante porque “não há apoio nesse limbo, não há medicamentos, não há comida”.
Outras fotografias ao longo dos anos também foram ficando na memória coletiva - e hoje são parte do nosso mosaico de memórias sobre eventos que muitas vezes não vimos em direto -, ou porque ainda não existiam televisões ou porque ainda não tínhamos nascido ou, se fossemos, não tínhamos noção do que estávamos a ver. A mítica fotografia de Eddie Adams no cerco de Saigão, durante a Guerra do Vietname, na qual um general atira à queima-roupa na cabeça de um vietnamita suspeito de ser aliado dos comunistas, provocou uma onda de indignação na América que transbordou das páginas dos jornais para as ruas. Mais recentemente, também sobre a crise migratória na fronteira sul dos Estados Unidos, John Moore venceu o prémio de foto do ano de 2016 da World Press Photo com uma fotografia que mostra uma menina, que não chega a dar pelos joelhos do polícia que naquele momento revista o familiar que a acompanha, a chorar. A chorar com muita força.
Como fotojornalistas, como repórteres de imagem, é difícil passar pela carreira sem ter passado por situações igualmente emocionantes - e, por vezes, outras que colocam questões éticas complicadas. Fotografa-se sempre, grava-se sempre. Tudo. Mas nunca se publica tudo - é a lei da deontologia. Os limites não são bem limites porque cada meio de comunicação tem regras diferentes mas o valor da imagem, filmada ou estática, tem valor pela carga informativa que leva, mesmo que se nela caiba também o arrepio que nos leva a agir de outra forma perante o problema que aquela imagem trouxe à nossa vida - por vezes problemas que, antes de a vermos, não tínhamos.
Mário Cruz, fotógrafo da agência Lusa que recentemente viajou até às Filipinas para documentar as vidas de centenas de pessoas que vivem no meio da mais densa poluição, resolve as dúvidas em relação à publicação de imagens chocantes desta forma: “A realidade, quando é chocante, dificilmente a fotografia não o será”, diz ao Expresso. Escolher sim, esconder quase nunca. A fotografia de Mário Cruz distinguida na categoria “Ambiente” pelo World Press Photo mostra uma criança deitada num colchão no meio do lixo, o horizonte daquela criança é lixo. “Eu, quando estou a fotografar, não penso se a fotografia vai chocar ou não. Eu quero só encontrar a prova que impulsione a criação de diálogo.” Mário Cruz considera que “o fotojornalismo não está refém de ter de agarrar as massas mas é através dele que vemos momentos que de outra forma nunca veríamos, até porque os fotógrafos muitas vezes estão tão em perigo quando os seus sujeitos”. A fotografia, diz, “tem também a capacidade de chegar a qualquer ponto e ser lida da mesma forma, independentemente de quem vê, e essa capacidade é quase única”.
Presenciar atrocidades não é fácil e, por vezes, deixa marcas que só se dissolvem quando a alma morre. O homem que tirou a fotografia ao menino faminto no Sudão, quando um abutre se aproximava dele, suicidou-se pouco depois de receber o Pulitzer. Chamava-se Kevin Carter e disse quando voltou a olhar para o menino só pensava na sua filha, Megan. Mário Cruz fez dos seus mais duros trabalhos no Senegal, junto das crianças talibés, escravizadas pelos seus supostos professores. É escravidão como se vê nos filmes de época: “Vi uma criança talibé a ser chicoteada à minha frente, tenho a certeza que centenas de outras crianças antes desta foram chicoteadas e outras hão de ser”. Apesar disso, depois de publicadas as fotos, muitas foram libertadas, e Mário voltou a encontrar-se com algumas delas. Esta captura de um milésimo de segundo que a fotografia permite “é o presente mas ao mesmo tempo já é o passado do objeto fotografado”, explica o fotógrafo português, de 32 anos. “Eu fotografei o presente que já é o passado de várias famílias”, diz sobre as fotografias no rio Pasig, mas esta frase podia também ser sobre os seus outros trabalhos ou sobre a fotografia tirada na fronteira dos Estados Unidos com o México. “Esta fotografia deveria envergonhar toda a gente nos Estados Unidos, aliás, devia envergonhar-nos a todos. Alguns detalhes fazem toda a diferença: ela estar dentro da t-shirt do pai, por exemplo, não deixa ninguém indiferente. A fotografia segue a realidade, isso é muito importante. Tal como a fotografia em Manila, funciona como forma de alerta e traça uma projeção muito negra para o nosso futuro.”
José Sena Goulão, que trabalha com Mário Cruz na Agência Lusa e igualmente distinguido pelo seu trabalho fotográfico depois de uma viagem com a Marinha portuguesa de resgate de migrantes, é também da opinião que as fotografias têm de servir para nos depararmos com algo que nos incomoda - sem com isso querer dizer que o choque vale pelo choque. A sua experiência a bordo dos barcos portugueses mostrou-lhe que um fotógrafo deixa rapidamente de o ser - e só depois o retoma - quando a realidade se mete no caminho. “Quando soubemos que íamos encontrar um barco com 50 pessoas, fiquei preocupado com o trabalho, mas depois ficas como um leitor ou espectador igual aos outros. Aquelas imagens que eu fiz foi tudo em 20 minutos. Reagir, reagir, reagir primeiro, depois é que vês o que está à tua frente. Os fuzileiros encontraram aquela miúda pequenina e o foco deles passou a ser ela - e então meu também. Mas imediatamente começas a pensar: ‘como é que esta gente está aqui?’”, conta ao Expresso. “Quando os apanhámos, a Marinha disse-nos que mais uma hora no mar e o barco deles ia ao fundo, estava a entrar água e a largar combustível, não iam com rota nenhuma, iam afundar.” Goulão venceu com uma foto desse resgaste a melhor fotografia do ano de 2018 para a Aliança de Agências de Notícias do Mediterrâneo, mas, para o fotógrafo, “em primeiro lugar está sempre a privacidade das famílias”. A realidade tem de ser sempre mostrada, sim, mas, “dentro do choque, temos de tentar mostrar os factos da forma mais delicada possível, com a maior das preocupações com quem é próximo daquelas pessoas”. Tal como Mário Cruz, José Sena Goulão diz que as boas fotografias são as que criam diálogo e que fazem as pessoas irem à procura de saber o que se passou.
As maioria das imagens da repórter Cândida Pinto mexem-se. E por isso talvez tenham mais à volta para ajudar a contextualizar os momentos dramáticos mas aqueles que relembra são quase tão inesperados, tão rápidos, tão pujantes como os captados num momento fotográfico. “Não tenho casos deste calibre, com equivalência à imagem de Alan Kurdi, mas tenho uma que guardo da primeira grande reportagem que fiz para SIC, chamada 'Meninos de Angola'. Um deles, com 11 anos, tinha pisado uma mina e tinha a perna amputada. A certa altura diz uma frase incrível: ‘eu não sonho porque sonhar não é fácil’. O grande sonho dele era andar de bicicleta. A mina rebentou-lhe com os sonhos”, começa por contar a repórter que neste momento está na direção da RTP.
“Isto depois teve um impacto grande porque o parlamento convidou-me a trazer cá esta criança e eu fui buscá-lo e ele foi ajudado, fizeram-lhe uma prótese. Tinha pisado uma mina porque ia à procura de comida ao mercado, ainda por cima.”
Na opinião da jornalista, que com essa reportagem venceu o Prémio "Valores Humanitários e Direitos Humanos" no Festival Internacional de Grande Reportagem – FIGRA (França), em 1996, com imagens como a captada esta semana no México, “cria-se nas pessoas uma identificação com as situações porque mostram uma vulnerabilidade extrema” e ajudam a acelerar a mudança de mentalidades na opinião pública. “As questões éticas deparam-se connosco todos os dias e esse equilíbrio não é fácil. Há um impacto que pode alterar uma situação para sempre mas pode ter a consequência de chocar tanto que afasta as pessoas dos assuntos.”
Texto de Ana França
Expresso Diário 26.06.2019