terça-feira, 1 de outubro de 2024

"Aware" de José Rui Teixeira (VIII)

 "Já não temo a noite.
Desço por fios de fumo
esticados, digo do que cai
apenas poucas palavras,
protuberâncias mínimas,
ditames curativos
para os dias mais escuros.

Sento-me diante do mar
com a incomparável paciência
de quem espera um tsunami.

Sei que a solidão é arúspice.
Fala-me de catástrofes
e da urgência de esperar."



José Rui Teixeira em "Awake"
Officium Lectionis, 2024
Página 76

"Aware" de José Rui Teixeira (VII)

 
"Os figos na fruteira, em cima da mesa,
duas romãs, a luz madura
dos dias pequenos.
Segredei-te um amor de circunstância,
desejei ir embora.

Mas a tua beleza permanece no contorno
da minha memória, mortífera
como humidade ou abandono.

Passaria horas a tocar-te, ambidestro,
desejando ir embora.

Sob a lâmpada da tua nudez
a beleza é um segredo que geme
o lugar que ocupa.

No jardim, as aves canoras
descem à anatomia do silêncio
e a noite recorda
de litania em litania
que eu parti há muito."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 74

"Aware" de José Rui Teixeira (VI)

 
"A tua presença explicava o outono,
trazia a integridade da terra,
um silêncio orbicular alteado
sobre a turbulência de não saber ainda
a morte nas folhas caídas.

Hoje o outono vem sem ti.
Já não me acode o teu silêncio.

Agora falamos, todos falamos.
Somos fluentes na mesma miséria."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 68

"Aware" de José Rui Teixeira (V)

 "Se descer aos infernos não esquecerei
que ensaiei a queda e aprendi a culpa.
Lembrar-me-ei que as pessoas
são as raízes dos lugares
e direi do remorso apenas
o estritamente necessário.
Não esquecerei que o meu corpo
é aí intruso e que são muitos os truques
com que se tornam opacos
os seres e as coisas.
Saberei que não sou de ser
raiz desses lugares."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 57

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

"Aware" de José Rui Teixeira (IV)

 "A roseira ergue-se sobre os destroços,
um pássaro aquieta-se.
Pressinto o poema no movimento
do teu corpo e arrefece
sob a mancha esverdeada
dessa ausência.

Falar-te-ia sobre os povos das ilhas,
suas deidades de terracota
e festas lunares.

Já não sei há quantos anos busco
nos ermos, nas entranhas dos pássaros
mais negros, no assombro dos cegos,
o silabário dos anjos."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 40

"Aware" de José Rui Teixeira (III)

 
"Não há regresso no gesto 
com que empurras as portadas
contra a manhã,
no modo como as mãos aracnídeas
tateiam no vidro o baço sujo brilho
das palavras mais pobres.

Há nas línguas mortas
uma certa decência,
um declive premeditado.

Desenhas no vidro embaçado as promessas
caídas no chão de não haver
percalço para a morte."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 29

"Aware" de José Rui Teixeira (II)

 
"Já não sacudo a morte dos cães
que farejam a minha solidão
nem lhes falo de deus.

Aceito que tenha sido por amor
que deus carregou sobre si
todas as metáforas do mundo.

Preferia ser eu a carregar as minhas,
mas há dias em que acordo sem mistério
e a pergunta é uma lâmina
que se antecipa
à vertigem da fuga."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 24

"Aware" de José Rui Teixeira (I)

"Não sei da vindima mais do que a alegria branca
das mulheres que descem ao rio e fermentam
nas mãos o fruto, a manhã.

No início do outono não temem ainda a morte.
De Calíope escutaram a explicação do luto,
histórias sobre a espessura da sombra, o voo
dos pássaros, as causas de certos suicídios.

A alegria branca das mulheres
é como o halo das uvas
nas mãos de Calíope."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 18

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

"As Estações da Vida" de Agustina Bessa-Luís (IV)

 
"A azulejaria das estações dos caminhos-de-ferro portugueses merece uma observação mais profunda. Nem todos têm o nível que se deseja encontrar, mas revelam o que há de predominante na paisagem portuguesa, a água sobretudo. Os rios, com as lavadeiras e os barcos pesqueiros ou de recovagem, os esteiros, as lagoas, os caudais discretos onde as mulheres batem a roupa e os salgueiros se debruçam, falam de costumes rotineiros que fazem a alma portuguesa mais constante e como que adormecida."
(...)
A azulejaria portuguesa serve também como arquivo de certos pontos afectivos, como acontece com os padrões das vivendas particulares, umas vezes mostrando devoção aos santos protectores, outras vezes reflectindo o gosto pessoal do proprietário quanto a exprimir um culto particular."



Agustina Bessa-Luís em "As Estações da Vida"
Quetzal Editores, 2002
Páginas 38 e 40

"As Estações da Vida" de Agustina Bessa Luís (III)

 
"A gare de São Bento causa uma impressão grandiosa como nenhuma outra em Portugal. O movimento da multidão, os que se apressam e os que correm, os rostos ansiosos e outros tocados de mil expressões, de cautela, de expectativa e de susto, mostram uma variedade infinita de paixões que às vezes não atingem sequer a mudança de expressão. Há quem tenha ar de fugitivo. De abandonado, de predador, de pacato transeunte entre duas vias. Os azulejos são magníficos, assinados por Jorge Colaço, dum azul de Delft verdadeiramente luminoso e profundo. É ainda o tema do rio Douro, o barco que espera ser carregado de pipas, o barco ainda na margem, estando de pé a barqueira com a mão em pala sobre os olhos e já sentadas as passageiras, as feirantes, com arrecadas de ouro e o companheiro de todos os climas, o guarda-chuva de algodão preto. São quadros duma genial composição que referem os trabalhos populares, os moleiros, as mulheres que vão buscar água ao chafariz, os namoros, o descanso na vida que tem os seus lazeres entre dois passos na história do trabalho. Melhor do que férias é aquele pousar do cântaro na fonte enquanto chega a vez de o encher. Adivinha-se o falatório, a má-língua que tem sabor de crítica e de ensino. Os azulejos contam toda uma poesia que não é épica, é o viver de todos os dias, é um sermão sem sotaina, é um contrato social sem filosofia."



Agustina Bessa-Luís em "As Estações da Vida"
Quetzal Editores, 2002
Página 16

"As Estações da Vida" de Agustina Bessa-Luís (II)

 
"As carruagens de primeira classe: os estofos cor de mel, as redes grossas onde às vezes se acomodavam os meninos já grandotes, para não pagar bilhete, tinham um tom elegante e ligeiramente dramático. Como se tivessem ainda o perfume de mulheres bonitas e galãs de chapéu de palhinha. Ninguém levava farnel nas carruagens de primeira classe. Às vezes, alguém comprava água fresca na Ermida ou uma regueifa em Valongo. Mas era tudo muito discreto, muito digno, não se tirava o chapéu nem as luvas nem se abanava o rosto com um papel pregueado. Havia quem lesse um livro durante todo o tempo, as Décadas de João de Barros, não se pode imaginar maior presunção. Levantavam os olhos de vez em quando para gozar a impressão que faziam."


Nas carruagens de segunda classe era tudo mais falado. Faziam-se amizades, trocavam-se merendas, conselhos, as mães diziam coisas dos filhos e como os criavam. Lia-se o jornal, O Comércio do Porto, ia-se à janela, que se abria com fragor para ver como era desprender a correia que a segurava. As mulheres protestavam, muito remexidas nos assentos, e os filhos olhavam como se fossem espectadores duma briga prestes a acontecer. Uma vareja entrava pela janela anunciando o Verão pastoso dum calor que encrespava as folhas. A alma sensata viajava em segunda classe, era opiniosa e moderada; escandalizava-se facilmente, tinha pena das mulheres perdidas e culpava os ricos do luxo e dos maus exemplos. Calavam-se de repente quando passava uma desconhecida de saltos altos que procurava o lugar com o bilhete na mão.


Enquanto que na terceira classe era a festa, diziam-se larachas, derramava-se vinho, ouvia-se o piar dos frangos nas cestas de vime vermelho. Eram os presentes para os padrinhos, para os protectores que livravam da tropa os filhos. Nos açafates forrados com uma toalha de linho, estava o requeijão e as primeiras cerejas em rocas de pau verde. As criadinhas que saíam de casa para servir na cidade sorriam debilmente, apertadas num colete artesanal, ainda de ilhós, muito à antiga. Tinham olhos de quem chorou à despedida, mas o comboio dissipava-lhes a tristeza como se fosse um berço em que as promessas escurecem as recordações."



Agustina Bessa-Luís em "As Estações da Vida"
Quetzal Editores, 2002
Páginas 13 e 14

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

"As Estações da Vida" de Agustina Bessa-Luís (I)

 
"Os cemitérios portugueses merecem uma meditação escrita. Estão feitos à medida da gente que os habita, que são tantos os mortos como os vivos. Tudo são alusões ao que se passa no mundo, uma festa consoladora das suas tribulações."



Agustina Bessa-Luís em "As Estações da Vida"
Quetzal Editores, 2002
Página 10

"Aqui me dói neste mundo de infinitos ..." de Salette Tavares

 "Aqui me dói neste mundo de infinitos
múltiplo de múltiplos,
que do fundo à tona de tão fluidos
de mais ar, de mais céu e de mais flor
zumbem de enxame
e se iludem.
Eu detenho o sentido que se perde
pela manhã em rios de água e cor
e ao sol em poeiras de fulgor
meu olhar se concentra
e não dissolve.
Pelo caminho de ferro
parto e chego
na unidade da linha não quebrada,
se das mãos os dedos se bifurcam
pela estrada
sou a indecisa solidão de quem pressente."



Salette Tavares em "Obra Poética 1957-1994"
Imprensa Nacional - Casa da Moda
1ª edição, Maio de 2022
Página 801

"O Relógio" de Salette Tavares

 
"As horas são as demoras medidas do tempo.
O relógio segue-as mentalmente
e mostra-as
com o dedo."



Salette Tavares em "Obra Poética 1957-1994"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
1ª edição, Maio de 2022
Página 572

quarta-feira, 31 de julho de 2024

"Geórgicas" de Vergílio (IV)

 
"A Primavera é boa para as folhas dos bosques e as árvores.
Na Primavera, as terras intumescem e reclamam as fecundas sementes. Então, o Éter, pai omnipotente, em forma de chuvas fecundadoras desce para o interior do regaço da sua fértil esposa, e, grande, unido a este grande corpo alimenta todas as plantas jovens. Nessa altura, nos matagais impenetráveis ressoam as aves canoras e em dias certos os rebanhos reclamam os dons de Vénus. 
O campo alimentador dá à luz e com as tépidas brisas do Zéfiro as terras aradas relaxam o seio. Em tudo abunda a suave humidade e os pastos ousam em segurança confiar-se a novos sóis. 
Nem a parra receia os Austros que estão para chegar, nem a chuva, que é trazida do céu pelos grandes Aquilões, antes faz brotar os botões e expande as suas folhagens.
Eu acredito que no início da origem do mundo não brilhou um tipo diferente de dias, nem tiveram um movimento diferente: aquilo era a Primavera. A grande Primavera conduzia o mundo e os Euros retinham os seus sopros invernais quando as primeiras manadas beberam a luz e a raça terrena dos homens levantou a cabeça dos duros campos e os animais foram lançados nos bosques e os astros no céu. 
Seres tão delicados não podiam aguentar este esforço se sossego tão grande não se espraiasse entre o frio e o calor e a amabilidade do céu não recebesse as terras."



Vergílio em "Geórgicas"
Livros Cotovia, 2019
Página 61

"Geórgicas" de Vergílio (III)

 
"A árvore mais alta planta-se profundamente na terra, o carvalho primeiro de todas, que se estende tanto com a copa para as brisas do éter quanto com a raiz para o Tártaro. Deste modo, nem o Inverno, a força dos ventos ou as chuvas o arrancam: permanece inamovível e supera muitas gerações, muitas idades dos homens, vendo-as desenrolar durante a sua vida. Então, estendendo bem longe os fortes ramos e os braços em todas as direcções, ele próprio, no meio, sustenta uma enorme sombra."



Vergílio em "Geórgicas"
Livros Cotovia, 2019
Páginas 59 e 60

"Geórgicas" de Vergílio (II)

 "Na verdade, nem todas as terras podem produzir tudo.
Os salgueiros crescem à beira-rio, os amieiros junto a pântanos espessos, os estéreis freixos-silvestres nos montes rochosos. Os litorais são férteis em campos de murta. Enfim, Baco ama colinas abertas, os teixos o Aquilão e as regiões frias."


Vergílio em "Geórgicas"
Livros Cotovia, 2019
Página 53

"Geórgicas" de Vergílio (I)

 
"A natureza tem, antes de mais, várias formas de criar árvores. Umas, sem coacção alguma dos homens, desenvolvem-se de livre vontade e ocupam até bem longe os campos e os rios sinuosos, tal como o suave vime e as maleáveis giestas, o choupo e os salgueiros encanecidos com verde folhagem. Outras surgem, porém, da semente caída, como os altos castanheiros e a maior árvore dos bosques, que cresce para Júpiter, o carvalho, e os robles tidos como oráculos pelos Gregos.
Noutras, um densíssimo matagal de rebentos sai da base de árvores como as cerejeiras e os ulmeiros. Também o loureiro do Parnaso se ergue ainda jovenzinho sob a enorme sombra da mãe. 
Estes métodos deu a natureza em primeiro lugar. Graças a eles, todo o tipo de árvores verdeja, pequenas, grandes e solenes."



Vergílio em "Geórgicas"
Livros Cotovia, 2019
Páginas 49 e 50

quarta-feira, 26 de junho de 2024

As geresianas de Agustina

 "Há uma flor, que se chama a Iris boissieri, de cor violeta, que cresce nas matas do Gerês e que se confunde com muitos outros lírios de curta floração. Enxames de abelhas sobrevoam os jacintos silvestres, o hipericão brilha como uma gota de ouro por cima da folhagem avermelhada e já antiga. Os fetos derrubam a palma majestosa, deixando ver, como pulgões prestes a saltar, a sua semente seca. A estrada interrompe-se no alto e parece não haver mais caminho. Mas esse lírio, de um tom azulado, aparece onde o solo oferece melhor condição ao passo, e brota da terra de uma maneira espontânea, como se acordasse ao grito de Pã.
Nunca ninguém cantou as geresianas, que são a primeira alma portuguesa. Sá de Miranda provavelmente retirou-se no seu solar de Amares para varrer desilusões e mesquinhas avarias da alma. Mas não sei se teve olhos para a grandeza, a solenidade e o fulgor da serra que nos abriu a nacionalidade; onde ela se formou, bebendo da nascente da Fonte Fria, como outros beberam da Castália fonte. E onde os homens do acordo, ricos e pobres e de meia-tigela, se reuniam para encontrar soluções ao seu regime, aos seus desastres, crises da natureza e da fantasia, perseguições e culpas.
É possível que esse mito silvestre que foi Bernardim Ribeiro aí tivesse estado; que a paisagem que topamos como Sintra ou os Alpes Marítimos, da Menina e Moça, fosse afinal geresiana pura. Os ribeiros que se soltavam do alto, trazendo as águas da Primavera, seriam as cascatas e as frechas que por toda a parte mugem e suspiram. Onde melhor lugar de exílio que esses vales peregrinos? Onde melhor tempo para morrer do que o dessa Arícia do Minho, onde haveria ainda um sacerdote de Diana que a Lua seguia em rápido voo sobre os vidoeiros? As geresianas são as profecias que se traduzem daquele fantástico acesso do rio Homem. É possível, sim, que alguém as interprete sem outras alusões senão as de uma razão que todos reúna, partindo dessa origem de esforço e admirável ordem que é fazer a cidade, o lugar e a casa, partindo das paredes, dos rios, das pedras que desenham fronteiras. Mas nenhum país é tão rico como quando se abre para o universo. Há nas ravinas geresianas uma flor que parece igual a outras, um pouco azul e violeta, entre a cólera e a paixão, mas que é diferente. Sem estames, sem caule, suas folhas são diferentes. Só um olhar atento e sábio reconhece isso. Esse lírio, Iris boissieri, indica o piso sólido e que vai direito ao caminho certo. Quem o não descobrir fica perdido nesses imensos lugares, tentando, esquecendo, voltando atrás, trazendo no ouvido o rolar dos ribeiros que se precipitam de grande altura, deixando no ar um vapor de prata. Os antigos espaços exercem um encanto que torna de pedra os que passam. Se não virem debaixo dos seus pés a Iris boissieri, para sempre se reúnem à matéria geresiana; que contém o enigma, mas não as palavras.
(...)
Nos lugares remotos do Gerês há uma planta que produz um lírio azul, planta endémica e maravilhosa. Não sei se se encontra na serra Amarela ou nas ravinas das Terras de Bouro; pode crescer nos fojos abrigados pelo mosteiro beneditino que foi defesa fronteira. Não sei. Penso nela como sendo um olhar que a terra ergue das suas profundezas e que nos empresta para que os segredos novos nos sejam apontados. Pois é a terra quem nos persuade aos caminhos que ela tem ainda invioláveis. Um lírio azul que parece perdido nas alturas roqueiras é talvez algo mais do que a Iris boissieri; é um olhar que nos vigia, passe a candura poética.
Aqui, não há personagens, há só uma confiança que se pode descobrir com a raiz da vida. Não está Ana de Cales, com a sua touca de viúva e o ar ovino e sério; não estão os Alba Pereira nem os Wiesel, ramos dessa casta tenebrosa e amante da propriedade. Não está Francisco de Viana ou Farina, cheio de «ribaldarias» intelectuais; nem Rosamaria, nem José Matildes, o casal ensombrado de batalhas perdidas. Nem os Marcianos, com os seus arranjos e adaptações de classes.
E também não estão as casas: Cales, com as janelas corridas, o telhado caiado, os armazéns que desprendem um cheiro forte a vinho, os laranjais carregados de frutos como os jardins das Hespérides deslocados para nordeste. Ou então Ludwell, meio enterrada na areia, como um bunker abandonado; ou o palácio de Mr. Phil, onde os anjos barrocos de tamanho natural nos seguem com o olhar esgazeado. Ou a casa da Ramada Alta, com escadas que parecem subidas de escotilhas e porões; ou a casa dos Matildes, com um gabinete à prova de som, onde se discutiam tácticas minuciosas para obter um negócio de terrenos, de material de urbanização, de alvarás, de plantas, sei lá! As geresianas não são produto da insistência da relação com objectos e pessoas. São o tempo original em que a alma convive com a eternidade; o coração repousado no amor do seu destino aguarda e vê. O indivíduo escapa ao nosso entendimento, as grandes ideias não se unificam nem se movem em turbilhão; a identidade extinguiu-se porque as pessoas, como chamas, se confundem, para sempre esquecidas da noção de dois mundos, de duas realidades. Desde que se atingem as vertentes das geresianas, um ser humano dissolve-se num outro «como uma gota de orvalho cintilante» - diria o meu poeta, assim como disse que às vezes Deus dá o sinal de que passa pelas trevas distantes, e tudo se imobiliza, cóleras, segredos, vento que desce da serra, ecos das torrentes, palavras que descem como torrentes, tudo - e um amor imenso paira e reconcilia todas as coisas. Velha amiga que é a terra, ela não nos decepciona, e poderemos durante milénios chamar nobre à raça humana. Se uma lágrima descer sobre estas linhas como um fio de prata, é porque existe consolação até ao último homem que por último desaparecer; quando a Terra rolar à volta do Sol, com noites e manhãs, e só talvez o lírio geresiano olhe e pense no seu seio de cinzas."



Agustina Bessa-Luís em "Os Meninos De Ouro"
Relógio D'Água Editores, Abril de 2018, 10ª edição
Páginas 239, 240, 272 e 273

terça-feira, 11 de junho de 2024

"Amigo e Amiga - curso de silêncio de 2004" (III)

 
" ... vistos em latitudes boreais ___ flores, folhas, pedras, areias, e outras arestas de objectos tombados das cenas fulgor."


" ... ficar à espera reparando até que ponto a natureza é uma pessoa de silêncio."


"Flecte agora para o Parque da Liberdade,
na mão o livro de leitura das árvores, onde as estrofes, em nervuredos, rumorejam,
comunicativas; em cada leitura em voz alta há uma acústica 
estimulante, tão variada que estere pressente que a reprodução estética
do mundo, e suas tentações,
se ocultaram nas folhas."



Maria Gabriela Llansol em "Amigo e Amiga - curso de silêncio de 2004"
Assírio & Alvim, Maio 2006
Páginas 133, 151 e 205