"Há uma flor, que se chama a Iris boissieri, de cor violeta, que cresce nas matas do Gerês e que se confunde com muitos outros lírios de curta floração. Enxames de abelhas sobrevoam os jacintos silvestres, o hipericão brilha como uma gota de ouro por cima da folhagem avermelhada e já antiga. Os fetos derrubam a palma majestosa, deixando ver, como pulgões prestes a saltar, a sua semente seca. A estrada interrompe-se no alto e parece não haver mais caminho. Mas esse lírio, de um tom azulado, aparece onde o solo oferece melhor condição ao passo, e brota da terra de uma maneira espontânea, como se acordasse ao grito de Pã. Nunca ninguém cantou as geresianas, que são a primeira alma portuguesa. Sá de Miranda provavelmente retirou-se no seu solar de Amares para varrer desilusões e mesquinhas avarias da alma. Mas não sei se teve olhos para a grandeza, a solenidade e o fulgor da serra que nos abriu a nacionalidade; onde ela se formou, bebendo da nascente da Fonte Fria, como outros beberam da Castália fonte. E onde os homens do acordo, ricos e pobres e de meia-tigela, se reuniam para encontrar soluções ao seu regime, aos seus desastres, crises da natureza e da fantasia, perseguições e culpas.
É possível que esse mito silvestre que foi Bernardim Ribeiro aí tivesse estado; que a paisagem que topamos como Sintra ou os Alpes Marítimos, da Menina e Moça, fosse afinal geresiana pura. Os ribeiros que se soltavam do alto, trazendo as águas da Primavera, seriam as cascatas e as frechas que por toda a parte mugem e suspiram. Onde melhor lugar de exílio que esses vales peregrinos? Onde melhor tempo para morrer do que o dessa Arícia do Minho, onde haveria ainda um sacerdote de Diana que a Lua seguia em rápido voo sobre os vidoeiros? As geresianas são as profecias que se traduzem daquele fantástico acesso do rio Homem. É possível, sim, que alguém as interprete sem outras alusões senão as de uma razão que todos reúna, partindo dessa origem de esforço e admirável ordem que é fazer a cidade, o lugar e a casa, partindo das paredes, dos rios, das pedras que desenham fronteiras. Mas nenhum país é tão rico como quando se abre para o universo. Há nas ravinas geresianas uma flor que parece igual a outras, um pouco azul e violeta, entre a cólera e a paixão, mas que é diferente. Sem estames, sem caule, suas folhas são diferentes. Só um olhar atento e sábio reconhece isso. Esse lírio, Iris boissieri, indica o piso sólido e que vai direito ao caminho certo. Quem o não descobrir fica perdido nesses imensos lugares, tentando, esquecendo, voltando atrás, trazendo no ouvido o rolar dos ribeiros que se precipitam de grande altura, deixando no ar um vapor de prata. Os antigos espaços exercem um encanto que torna de pedra os que passam. Se não virem debaixo dos seus pés a Iris boissieri, para sempre se reúnem à matéria geresiana; que contém o enigma, mas não as palavras.
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Nos lugares remotos do Gerês há uma planta que produz um lírio azul, planta endémica e maravilhosa. Não sei se se encontra na serra Amarela ou nas ravinas das Terras de Bouro; pode crescer nos fojos abrigados pelo mosteiro beneditino que foi defesa fronteira. Não sei. Penso nela como sendo um olhar que a terra ergue das suas profundezas e que nos empresta para que os segredos novos nos sejam apontados. Pois é a terra quem nos persuade aos caminhos que ela tem ainda invioláveis. Um lírio azul que parece perdido nas alturas roqueiras é talvez algo mais do que a Iris boissieri; é um olhar que nos vigia, passe a candura poética.
Aqui, não há personagens, há só uma confiança que se pode descobrir com a raiz da vida. Não está Ana de Cales, com a sua touca de viúva e o ar ovino e sério; não estão os Alba Pereira nem os Wiesel, ramos dessa casta tenebrosa e amante da propriedade. Não está Francisco de Viana ou Farina, cheio de «ribaldarias» intelectuais; nem Rosamaria, nem José Matildes, o casal ensombrado de batalhas perdidas. Nem os Marcianos, com os seus arranjos e adaptações de classes.
E também não estão as casas: Cales, com as janelas corridas, o telhado caiado, os armazéns que desprendem um cheiro forte a vinho, os laranjais carregados de frutos como os jardins das Hespérides deslocados para nordeste. Ou então Ludwell, meio enterrada na areia, como um bunker abandonado; ou o palácio de Mr. Phil, onde os anjos barrocos de tamanho natural nos seguem com o olhar esgazeado. Ou a casa da Ramada Alta, com escadas que parecem subidas de escotilhas e porões; ou a casa dos Matildes, com um gabinete à prova de som, onde se discutiam tácticas minuciosas para obter um negócio de terrenos, de material de urbanização, de alvarás, de plantas, sei lá! As geresianas não são produto da insistência da relação com objectos e pessoas. São o tempo original em que a alma convive com a eternidade; o coração repousado no amor do seu destino aguarda e vê. O indivíduo escapa ao nosso entendimento, as grandes ideias não se unificam nem se movem em turbilhão; a identidade extinguiu-se porque as pessoas, como chamas, se confundem, para sempre esquecidas da noção de dois mundos, de duas realidades. Desde que se atingem as vertentes das geresianas, um ser humano dissolve-se num outro «como uma gota de orvalho cintilante» - diria o meu poeta, assim como disse que às vezes Deus dá o sinal de que passa pelas trevas distantes, e tudo se imobiliza, cóleras, segredos, vento que desce da serra, ecos das torrentes, palavras que descem como torrentes, tudo - e um amor imenso paira e reconcilia todas as coisas. Velha amiga que é a terra, ela não nos decepciona, e poderemos durante milénios chamar nobre à raça humana. Se uma lágrima descer sobre estas linhas como um fio de prata, é porque existe consolação até ao último homem que por último desaparecer; quando a Terra rolar à volta do Sol, com noites e manhãs, e só talvez o lírio geresiano olhe e pense no seu seio de cinzas."
Agustina Bessa-Luís em "Os Meninos De Ouro"
Relógio D'Água Editores, Abril de 2018, 10ª edição
Páginas 239, 240, 272 e 273