sexta-feira, 2 de agosto de 2024

"As Estações da Vida" de Agustina Bessa-Luís (IV)

 
"A azulejaria das estações dos caminhos-de-ferro portugueses merece uma observação mais profunda. Nem todos têm o nível que se deseja encontrar, mas revelam o que há de predominante na paisagem portuguesa, a água sobretudo. Os rios, com as lavadeiras e os barcos pesqueiros ou de recovagem, os esteiros, as lagoas, os caudais discretos onde as mulheres batem a roupa e os salgueiros se debruçam, falam de costumes rotineiros que fazem a alma portuguesa mais constante e como que adormecida."
(...)
A azulejaria portuguesa serve também como arquivo de certos pontos afectivos, como acontece com os padrões das vivendas particulares, umas vezes mostrando devoção aos santos protectores, outras vezes reflectindo o gosto pessoal do proprietário quanto a exprimir um culto particular."



Agustina Bessa-Luís em "As Estações da Vida"
Quetzal Editores, 2002
Páginas 38 e 40

"As Estações da Vida" de Agustina Bessa Luís (III)

 
"A gare de São Bento causa uma impressão grandiosa como nenhuma outra em Portugal. O movimento da multidão, os que se apressam e os que correm, os rostos ansiosos e outros tocados de mil expressões, de cautela, de expectativa e de susto, mostram uma variedade infinita de paixões que às vezes não atingem sequer a mudança de expressão. Há quem tenha ar de fugitivo. De abandonado, de predador, de pacato transeunte entre duas vias. Os azulejos são magníficos, assinados por Jorge Colaço, dum azul de Delft verdadeiramente luminoso e profundo. É ainda o tema do rio Douro, o barco que espera ser carregado de pipas, o barco ainda na margem, estando de pé a barqueira com a mão em pala sobre os olhos e já sentadas as passageiras, as feirantes, com arrecadas de ouro e o companheiro de todos os climas, o guarda-chuva de algodão preto. São quadros duma genial composição que referem os trabalhos populares, os moleiros, as mulheres que vão buscar água ao chafariz, os namoros, o descanso na vida que tem os seus lazeres entre dois passos na história do trabalho. Melhor do que férias é aquele pousar do cântaro na fonte enquanto chega a vez de o encher. Adivinha-se o falatório, a má-língua que tem sabor de crítica e de ensino. Os azulejos contam toda uma poesia que não é épica, é o viver de todos os dias, é um sermão sem sotaina, é um contrato social sem filosofia."



Agustina Bessa-Luís em "As Estações da Vida"
Quetzal Editores, 2002
Página 16

"As Estações da Vida" de Agustina Bessa-Luís (II)

 
"As carruagens de primeira classe: os estofos cor de mel, as redes grossas onde às vezes se acomodavam os meninos já grandotes, para não pagar bilhete, tinham um tom elegante e ligeiramente dramático. Como se tivessem ainda o perfume de mulheres bonitas e galãs de chapéu de palhinha. Ninguém levava farnel nas carruagens de primeira classe. Às vezes, alguém comprava água fresca na Ermida ou uma regueifa em Valongo. Mas era tudo muito discreto, muito digno, não se tirava o chapéu nem as luvas nem se abanava o rosto com um papel pregueado. Havia quem lesse um livro durante todo o tempo, as Décadas de João de Barros, não se pode imaginar maior presunção. Levantavam os olhos de vez em quando para gozar a impressão que faziam."


Nas carruagens de segunda classe era tudo mais falado. Faziam-se amizades, trocavam-se merendas, conselhos, as mães diziam coisas dos filhos e como os criavam. Lia-se o jornal, O Comércio do Porto, ia-se à janela, que se abria com fragor para ver como era desprender a correia que a segurava. As mulheres protestavam, muito remexidas nos assentos, e os filhos olhavam como se fossem espectadores duma briga prestes a acontecer. Uma vareja entrava pela janela anunciando o Verão pastoso dum calor que encrespava as folhas. A alma sensata viajava em segunda classe, era opiniosa e moderada; escandalizava-se facilmente, tinha pena das mulheres perdidas e culpava os ricos do luxo e dos maus exemplos. Calavam-se de repente quando passava uma desconhecida de saltos altos que procurava o lugar com o bilhete na mão.


Enquanto que na terceira classe era a festa, diziam-se larachas, derramava-se vinho, ouvia-se o piar dos frangos nas cestas de vime vermelho. Eram os presentes para os padrinhos, para os protectores que livravam da tropa os filhos. Nos açafates forrados com uma toalha de linho, estava o requeijão e as primeiras cerejas em rocas de pau verde. As criadinhas que saíam de casa para servir na cidade sorriam debilmente, apertadas num colete artesanal, ainda de ilhós, muito à antiga. Tinham olhos de quem chorou à despedida, mas o comboio dissipava-lhes a tristeza como se fosse um berço em que as promessas escurecem as recordações."



Agustina Bessa-Luís em "As Estações da Vida"
Quetzal Editores, 2002
Páginas 13 e 14

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

"As Estações da Vida" de Agustina Bessa-Luís (I)

 
"Os cemitérios portugueses merecem uma meditação escrita. Estão feitos à medida da gente que os habita, que são tantos os mortos como os vivos. Tudo são alusões ao que se passa no mundo, uma festa consoladora das suas tribulações."



Agustina Bessa-Luís em "As Estações da Vida"
Quetzal Editores, 2002
Página 10

"Aqui me dói neste mundo de infinitos ..." de Salette Tavares

 "Aqui me dói neste mundo de infinitos
múltiplo de múltiplos,
que do fundo à tona de tão fluidos
de mais ar, de mais céu e de mais flor
zumbem de enxame
e se iludem.
Eu detenho o sentido que se perde
pela manhã em rios de água e cor
e ao sol em poeiras de fulgor
meu olhar se concentra
e não dissolve.
Pelo caminho de ferro
parto e chego
na unidade da linha não quebrada,
se das mãos os dedos se bifurcam
pela estrada
sou a indecisa solidão de quem pressente."



Salette Tavares em "Obra Poética 1957-1994"
Imprensa Nacional - Casa da Moda
1ª edição, Maio de 2022
Página 801

"O Relógio" de Salette Tavares

 
"As horas são as demoras medidas do tempo.
O relógio segue-as mentalmente
e mostra-as
com o dedo."



Salette Tavares em "Obra Poética 1957-1994"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
1ª edição, Maio de 2022
Página 572