"Pouco a pouco, ela fora insinuando na minha vida hábitos novos, gestos e murmúrios que eu esquecera, reminiscências de um tempo que só vagamente eu conseguiria ainda restituir. Foi ela que me ensinou a nadar por baixo das ondas, e eu abanava levemente a cabeça para sentir a água entre os cabelos; uma noite dançámos ao luar e ela dizia-me ao ouvido que o meu corpo tinha um movimento que eu desaprendera; disse-me o nome das flores e descreveu-me as constelações, conhecia-as todas, desenhava-as com a ponta dos dedos e eu contava-lhe o exílio de Ariane e a maldição do Centauro. De todas estas coisas eu começava a saber como se fosse a primeira vez, aprendia-as de novo, mas como novas, ideias que ficariam para sempre ligadas à sua passagem por mim.
Amávamo-nos de tarde, quando o calor de Julho se detinha sobre a cidade, e vivíamos as noites a percorrer as sombras, adivinhando esquinas para lá de portas, dramas além das janelas, amores fugazes na penumbra das escadas. Como nos amávamos, contávamos histórias um ao outro, porque o amor inventa os enredos e alimenta-se de equívocos. A nossa vida é um desperdício, disse-lhe uma vez. O nosso amor é que é, respondeu, talvez a vida não nos mereça e é isso que faz do nosso o único amor ainda possível. Eu fingia que não podia compreendê-la, mas acreditava nela, como quando se quer acreditar em alguma coisa que traz consigo a suspeita de uma mentira."
António Mega Ferreira & Amy Yoes em "Lisboa Song"
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