"A noite inventa aparências: as sombras,
os ruídos sem fonte, as circulações do susto.
Conheço bem os modos de ser inferior,
perto dos besouros, das formigas,
onde nos chegam abafados o amor e o júbilo.
É disso que me alimento,
curvado sobre a minha própria dor de bicho.
A noite é terna, uma pausa nos trabalhos diurnos.
Sôfrego, revolvo minerais buscando
um pouco de mal, para afastar de mim
a dureza, para acabar com as horas certas
de todos os dias. Dói-me a regra do ofício,
a jornada, os gestos da necessidade avara.
Apareço tarde, quando ninguém está. Sorrio, só.
Práticas milenares fazem de mim absurdo.
Tenho espinhos que lembrarão um campo de trigo,
vivo escondido para não incendiar no excesso.
Em areia vermelha oculto, encontro vestígios
de um mundo que nunca benquis. E porém,
há magias e poderes em tudo o que julgava saber,
nas coisas largadas fortuitamente no meu espaço.
Um garfo pode tornar-se arma fatal.
Um pedaço de madeira, o último reduto da vida.
O resto de uma corda, traço de equilíbrio.
Uma lata ferrugenta, a invenção de uma morada.
A precisão de uma mola de estender roupa,
bê-á-bá da teimosia. Uma moeda já sem uso,
descoberta da natureza contingente dos tesouros.
Escarafuncho tudo isso na minha cabeça,
quase não posso com a concretude mundana.
É esse o grande mistério, que as coisas estejam,
e, no entanto, que nenhum lugar lhes seja especialmente próprio.
Daí que me medite por vezes em surdina.
Questiono-me sobre a possibilidade de gerar
um sítio onde não me perdesse na profundidade saibrosa.
Mas é tão potente a luz exterior,
tão agudo o calor, tão insuportável a visão imediata
do horizonte. Encubro-me outra vez calado.
E faço da sobriedade térrea aconchego da minha dúvida."
Elisabete Marques em "Animais de Sangue Frio"
Elisabete Marques em "Animais de Sangue Frio"
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