sexta-feira, 4 de junho de 2021

Poiêtikê

 
"Vindo o momento, tudo aquilo que separou
ciência e poesia deixará
de existir sobre a terra.
E o mistério terá o seu quinhão
entre as coisas aceites, entre as coisas
que, parecendo sombras, mais não são
do que a graciosidade que se esquiva
àqueles que tudo querem devassar.
(...)
E ela quer saber exactamente onde está o poema,
quer tocar
no nervo do poema, sem que exista
frieza ou impiedade,
sem que exista
golpe de bisturi.
Porque é um toque de delicadeza,
a materna leveza que há nos dedos
de quem levanta uma raiz, tremendo
com tudo o que ali há de irreparável,
de precioso, de finito, como o verso,
com tudo o que ali há de
desumano,
enquanto algo de fino,
de espantoso na sua vibração,
atinge o peito
e deixa as criaturas que nós somos
sob o encantamento do que ignoram."



"Acidentes" de Hélia Correia
Relógio D'Água Editores, Novembro de 2020
Páginas 43, 44 e 45

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