domingo, 28 de maio de 2023

"Fé, Esperança e Carnificina" de Nick Cave e Séan O'Hagan (II)

 
" - Séan O'Hagan: As duas estarão ligadas, talvez - a vulnerabilidade e a liberdade.
- Nick Cave: Acho que ser-se verdadeiramente vulnerável é existir paredes-meias com o colapso ou a obliteração. Nesse lugar, podemo-nos sentir extraordinariamente vivos e recetivos a toda a espécie de coisas, tanto a nível criativo como espiritual. De uma maneira perversa, pode ser uma posição de vantagem, e não de desvantagem, como poderíamos pensar. É um lugar com muitos matizes que nos parece ao mesmo tempo perigoso e cheio de potencial. É o lugar onde se podem dar as grandes mudanças. Quanto mais tempo aí passares, menos te irá preocupar a forma como irás ser olhado ou julgado, e é nesse ponto que, em última análise, reside a liberdade.


" - Nick Cave: Há um grande défice na linguagem em torno do luto. Não é algo em que sejamos proficientes enquanto sociedade, isto porque se trata de algo demasiado difícil de discutir e, mais importante que tudo, demasiado difícil de escutar. São tantas as pessoas que fazem o seu luto e se limitam a ficar em silêncio, fechadas nos seus pensamentos secretos, fechadas nas suas próprias mentes, sendo os próprios mortos a sua única forma de terem companhia."


" - Nick Cave: Não começo com cadernos cheios de ideias, bocados de diálogos, versos fantásticos ou sequer títulos interessantes - resumindo, qualquer coisa coligida durante o tempo que antecede essa data. Não é assim que tiro as minhas notas. Não no que toca a canções, pelo menos. A escrita das letras é um processo que começa a partir do zero e é feito num período pré-definido. Começo com um caderno de apontamentos novo, em branco, o pensamento livre de ideias e uma considerável dose de ansiedade."




"Fé, Esperança e Carnificina" de Nick Cave e Séan O'Hagan
Relógio D'Água Editores, Novembro de 2022
Páginas 54, 57 e 126

segunda-feira, 15 de maio de 2023





"Por vezes o construtor senta-se, sob a folhagem de um plátano, contemplando ao longe os pequenos montes de um azul ténue ou abandonando o olhar à tranquila e cintilante fluência do riacho que circunda a construção. A larga e fresca delícia do sossego é tão grande que ele se demora na contemplação sem pensar, como se se sentisse ele próprio um elemento da paisagem em que a consciência seria totalmente receptiva e aberta aos estímulos dos brilhos, formas, cores, odores e eflúvios. Poderia ficar assim longo tempo, imerso na totalidade viva do instante, sentindo-se limpo e novo e possuído de uma leveza aérea e subtil. É então que adormece e sonha com voluptuosas figuras que nascem de um magma vermelho para onde retornam silenciosas e nuas. Quando acorda a frescura do mundo inunda-o e deslumbra-o. Recomeça então o trabalho numa disposição leve e volúvel, nutrido pela energia renovada pela contemplação e pelo sono. As pedras que modela e coloca formando, pilares, colunas, arcos ou paredes possuem as formas vivas de um corpo flexível e voluptuoso, animado pelos elementos, imprevisível e puro, suave e impetuoso como os gestos de desejo. Mas a paisagem não é o modelo da construção que se inspira na imaginação aberta e autónoma, livremente desencadeada a partir das impulsões vitais e das nebulosas incandescentes do desejo. A água e o fogo ondulam nas colunas, a terra afirma-se na densidade dos pilares, o ar dança na leveza das volutas, o sol transparece e fulgura nas paredes, a casa, toda ela, é uma epifania dos elementos e das forças da natureza. Embora destituída de figuras, a casa é uma figuração imaginária que corresponde às pulsões mais arcaicas do corpo dando-lhes a forma livre e harmónica de um templo consagrado à totalidade de um instante de criação absoluta."



António Ramos Rosa em "O Aprendiz Secreto"
Fotografias da exposição "Subnigrum: Silos" de Ana Vr @ MU.SA - Museu das Artes de Sintra

sexta-feira, 5 de maio de 2023

"Fé, Esperança e Carnificina" de Nick Cave e Séan 0'Hagan

 " - Sean O'Hagan: Se bem que duvidar seja intrinsecamente humano, não achas?
- Nick Cave: Acho, sim. E a certeza inflexível e cheia de si de algumas pessoas religiosas - e de alguns ateus, já agora - é algo que me desagrada. A soberba que há nisso. A santimónia. Deixa-me indiferente. Quanto mais declaradamente inabaláveis são as crenças de alguém, mais diminuídas parecem sair, uma vez que essas pessoas pararam de se questionar, e o não questionamento pode por vezes fazer-se acompanhar de uma atitude de superioridade moral. Um pouco de humildade não faria mal."


" Nick Cave: ... a beleza resplandecente e chocante do quotidiano é uma coisa para a qual eu procuro manter-me sempre alerta, nem que seja como um antídoto para o cinismo e o desencanto crónicos que parecem cercar tudo hoje em dia. Diz-me que, por muito desvirtuada ou corrupta que nos digam que a humanidade é e por muito degradado que o mundo se tenha tornado, esse mundo continua a ser belo. Nem poderia ser de outro modo."


" Nick Cave: ... talvez o sofrimento profundo possa ser considerado uma espécie de estado de exaltação no qual a pessoa que sofre se encontra o mais próximo que alguma vez irá estar da fundamental essência das coisas. Isto porque, ao sofreres, ganhas uma proximidade profunda com a ideia da mortalidade humana. Vais para um lugar muito escuro e experimentas na pele os extremos da tua própria dor - és levado aos limites mais extremados do sofrimento. Tanto quanto consigo perceber, existe um aspecto transformador inerente a este lugar do sofrimento. Somos fundamentalmente alterados ou refeitos por esse lugar. Atenção, todo esse processo é aterrorizador, mas a seu tempo acabas por regressar ao mundo com alguma espécie de conhecimento que terá algo que ver com a nossa vulnerabilidade enquanto participantes neste drama humano."




"Fé, Esperança e Carnificina" de Nick Cave e Séan O'Hagan
Relógio D'Água Editores, Novembro de 2022
Páginas 35, 42, 43 e 44