segunda-feira, 30 de setembro de 2024

"Aware" de José Rui Teixeira (IV)

 "A roseira ergue-se sobre os destroços,
um pássaro aquieta-se.
Pressinto o poema no movimento
do teu corpo e arrefece
sob a mancha esverdeada
dessa ausência.

Falar-te-ia sobre os povos das ilhas,
suas deidades de terracota
e festas lunares.

Já não sei há quantos anos busco
nos ermos, nas entranhas dos pássaros
mais negros, no assombro dos cegos,
o silabário dos anjos."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 40

"Aware" de José Rui Teixeira (III)

 
"Não há regresso no gesto 
com que empurras as portadas
contra a manhã,
no modo como as mãos aracnídeas
tateiam no vidro o baço sujo brilho
das palavras mais pobres.

Há nas línguas mortas
uma certa decência,
um declive premeditado.

Desenhas no vidro embaçado as promessas
caídas no chão de não haver
percalço para a morte."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 29

"Aware" de José Rui Teixeira (II)

 
"Já não sacudo a morte dos cães
que farejam a minha solidão
nem lhes falo de deus.

Aceito que tenha sido por amor
que deus carregou sobre si
todas as metáforas do mundo.

Preferia ser eu a carregar as minhas,
mas há dias em que acordo sem mistério
e a pergunta é uma lâmina
que se antecipa
à vertigem da fuga."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 24

"Aware" de José Rui Teixeira (I)

"Não sei da vindima mais do que a alegria branca
das mulheres que descem ao rio e fermentam
nas mãos o fruto, a manhã.

No início do outono não temem ainda a morte.
De Calíope escutaram a explicação do luto,
histórias sobre a espessura da sombra, o voo
dos pássaros, as causas de certos suicídios.

A alegria branca das mulheres
é como o halo das uvas
nas mãos de Calíope."



José Rui Teixeira em "Aware"
Officium Lectionis, 2024
Página 18