terça-feira, 24 de dezembro de 2024

"Memória De Um Campo" de Joan Margarit

 
"Era um vinhedo antigo junto a uma margem
coberta por um caos de silvas e de mato.
Limpo, ficou subitamente à vista
- firme e alto - um muro de pedra.
Transmitia beleza e verdade,
como um bom poema,
porque, para dizer o que se sabe,
são precisos anos: esperar que as memórias
se confundam connosco.
Como aquele muro tão forte de pedra, súbito,
precisamos de tempo para irmos assentando.
É então que ser velho tem vantagens:
podemos ser fortes e claros, como o muro,
sem ignorarmos a morte, pois ignorá-la
é não ter compreendido nada da vida."



Joan Margarit em "Animal de Bosque"
Língua Morta | Flâneur, Abril de 2024
Página 163

"Vincent Van Gogh" de Joan Margarit

 "Ele devia saber: do mundo real,
a verdade mais difícil
é a simplicidade com que a vida acaba.
Porque fora do mundo real não existe nada.
Uma árvore, uma montanha, o silêncio, a chuva
são sempre verdade. Não precisam
da turbidez das teorias,
do mundo pretensioso que pensa que a morte
- que não é senão o fim de uma vida -
é alguma verdade final e transcendente.
Pintor de firmamentos, de sapatos, de camas e cadeiras,
de trigais sobrevoados pelos corvos,
Vincent Van Gogh não se deixou enganar."



Joan Margarit em "Animal De Bosque"
Língua Morta | Flâneur, Abril de 2024
Página 143

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

"Uma Alegre Prudência" de Joan Margarit

 (César Franck: Sonata para Violoncelo e Piano em Lá Maior)

"Tanto foi o que ignorei e o que perdi.
E no entanto salva-me o poderoso
som de Jacqueline du Pré, a violoncelista
que morreu muito jovem.
Cada um é o solista do seu próprio silêncio:
tem de saber muito bem quando deve entrar.
Se calhar sou um rato empedernido pela dor
que numa manhã de Primavera
parou para ouvir o canto dos pássaros."



Joan Margarit em "Animal De Bosque"
Língua Morta | Flâneur, Abril de 2024
Página 127

"Construir" de Joan Margarit

 
"Construir bem uma casa é falar
com afecto às pessoas
que jamais conhecerás. Como na paixão,
quando há fissuras num edifício
tens de perguntar-te sempre
se é melhor reforçar ou demolir
para construir de novo.
Reforçar às vezes mete medo, é mais difícil.
Só sabemos avançar:
o nosso alimento é a esperança.
Eis o mistério de um fracasso."



Joan Margarit em "Animal De Bosque"
Língua Morta | Flâneur, Abril de 2024
Página 95

domingo, 22 de dezembro de 2024

"Outono Em Elizondo" de Joan Margarit

 
"A chuva e a luz parda fazem brilhar
a calma folhagem das faias, avermelhada.
Com a sua beleza,
tentam confirmar que as árvores pensam
e que, se um dia conseguíssemos perder o medo,
seríamos como o vermelho
faial que agora vejo.
Uma árvore é para mim um mistério calmo.
E sinto que gostaria de morrer num sítio
donde se avistasse um bosque como este,
que das raízes aos ramos é um sinal
de uma paz que ignoro."



Joan Margarit em "Animal De Bosque"
Língua Morta | Flâneur, Abril de 2024
Página 85

"Um Preço" de Joan Margarit

 
"Entre os meus livros, tenho encontrado alguns
de Thomas Hardy: eram os que eu lia
enquanto ela, muito séria, ouvia
a sua música. Ao domingo à tarde
íamos a um café na Rambla.
Há sempre alguma coisa que me lembra
que ainda tenho aquela filha jovem,
apesar de já não estar cá há vinte anos.
E os cafés também não.
Os lugares aos quais
seguramos a nossa vida
são sempre os mais duros: é onde fica
tudo o que tem a ver com amar."



Joan Margarit em "Animal De Bosque"
Língua Morta | Flâneur, Abril de 2024
Página 71