"Os primeiros anos da minha vida passei-os junto ao fogão da cozinha da minha mãe e da minha avó, vendo como estas sábias mulheres, ao entrarem no recinto sagrado da cozinha, se convertiam em sacerdotisas, grandes alquimistas que brincavam com a água, o ar, o fogo e a terra, os quatro elementos que constituem a razão de ser do universo. O mais surpreendente é que o faziam com a maior das humildades, como se não estivessem a transformar o mundo através do poder purificador do fogo, como se não soubessem que os alimentos que preparavam e nós comíamos permaneciam dentro dos nossos corpos por muitas horas, alterando quimicamente o nosso organismo, nutrindo-nos a alma e o espírito, dando-nos uma identidade, uma língua, uma pátria.
Foi aí, junto ao fogão, que recebi da minha mãe as primeiras lições de vida. Foi aí que a Saturnina, uma criada recém-chegada do campo, a quem carinhosamente chamávamos Sato, me impediu um dia de pisar um grão de milho caído no chão, porque nele habitava o Deus do Milho e não se lhe podia faltar ao respeito. Foi aí, no lugar mais comum para receber as visitas, que me inteirei do que se passava no mundo."
Laura Esquível em "Íntimas suculências - Tratado filosófico de cozinha"
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