sábado, 30 de março de 2019

Facto

"poesia cautelosa
e pessoas
cautelosas
duram
apenas o suficiente
para
morrer
em segurança."

Charles Bukowski  em "Os cães ladram facas [antologia poética]"
"Podia ser perfeitamente verdade que não há um sentido profundo nas coisas, que nada, nem ninguém, possui verdadeira dignidade ou mérito, que o mundo é apenas confusão, um escombro e um sonho, mas não seria um embuste supremo fazer com que esta ausência de sentido parecesse constituir a própria essência do nosso ser? Podia ser um artista muito medíocre, mas possuía a capacidade que estes têm para enganar. Decerto seria melhor viver como as pessoas comuns e espertas, com malícia, dor e sexo, encontrando por fim tais coisas no pináculo do próprio espírito. Decerto seria melhor recorrer à santidade do sofrimento e consentir em baptizar (como «amor», por exemplo) as fundações do nosso ser em vez de procurar desfazer desta forma extrema uma essência natural."
 
Iris Murdoch  em "A Máquina Do Amor Sagrado E Profano"

sexta-feira, 29 de março de 2019

Hoje, num qualquer banco de comboio da linha de Cascais

Conselho amigável a imensos jovens adultos

"Vai ao Tibete.
Anda de camelo.
Lê a bíblia.
Tinge os sapatos de azul.
Deixa crescer a barba.
Dá a volta ao mundo numa canoa de papel.
Assina o Saturday Evening Post.
Mastiga com o lado esquerdo da boca apenas.
Casa-te com uma mulher com uma perna e faz a barba
com uma navalha de barbear.
E grava o teu nome no braço dela.
 
Escova os dentes com gasolina.
Dorme todo o dia e trepa às árvores à noite.
Sê um monge e bebe buckshot e cerveja.
Mete a cabeça debaixo de água e toca violino.
Faz dança do ventre diante de velas cor-de-rosa.
Mata o teu cão.
Concorre a Presidente da Câmara.
Vive num barril.
Parte a cabeça com um machado.
Planta túlipas à chuva.
 
Mas não escrevas poesia."
 
 Charles Bukowski  em "Os cães ladram facas (antologia poética)"

terça-feira, 26 de março de 2019

@ Farol Museu de Santa Marta

 
"A um navio em manobra, provido de todos os seus aprestos e obediente ao piloto, o farol é útil. Ele grita cuidado! Ele adverte dos escolhos! Para um navio desamparado ele é apenas terrível. O farol indica-lhe o local supremo, avisa do sítio do desaparecimento, faz luz sobre o enterramento. É a candeia do sepulcro (...) Tudo nele é sóbrio, exacto, despido, preciso, correcto. Um farol é um algarismo."
 
Victor Hugo, L'Homme qui Rit, 1869
"se Philip Larkin soubesse que hoje 
à tarde preferimos Les Fruisanes
de la Tisanière (ananas - noix de coco)
a um very British Breakfast Tea
 
ficaria indignado tomaria isso como
uma afronta à velha aliança luso
inglesa (o termos entregue os lábios
 
às mãos de uma tisana que sabe
tão bem quanto cheira) ritual das
águas a 100º C (perdão: 212º F) as
folhas ficando mais claras deixando
 
na água: a cor. por favor não leve
a mal (não sei o que se passou hoje
comigo nem sequer é meu costume
 
alongar-me tanto assim:) se um
destes dias por acaso eu fingir que
não o vi estarei por certo escondendo
o aroma de fraise-cassis"
 
João Luís Barreto Guimarães  em "Este Lado para Cima"
" - Uma religião bem-sucedida é uma receita para uma vida de fantasias que parecem inocentes e para o sexo feliz.
- Mesmo para quem é um eremita ou um asceta em cima de uma coluna?
- Sobretudo para quem é um eremita ou um asceta em cima de uma coluna.
- O meu pai diz que a religião se baseia na necessidade de auto-punição.
- O teu pai tem o seu próprio ponto de vista favorito. Alguns aspectos da religião constituem uma auto-punição. É uma coisa importante.
- Não acreditas na religião, pois não, Monty?
- Não acredito nesse género de religião.
- Mas acreditas num género qualquer, naquela que realmente seria profunda?"
 
Iris Murdoch  em "A Máquina Do Amor Sagrado E Profano"

domingo, 24 de março de 2019

Domenico Scarlatti - Sonata K9


O Autodomínio

160. Só o próprio homem pode ser dono de si mesmo; quem mais, do exterior, poderá ser o seu dono?
Quando o Senhor e o servo são um, então existe uma verdadeira ajuda e autodomínio.

Buda  em Dhammapada

@ Jardim Botânico de Lisboa


"A quem souber escutar o que as plantas e as flores nos têm que dizer, qualquer pedaço de terreno bem ajardinado fornecerá a melhor consolação após o contacto diário com a tão humana imperfeição do nosso semelhante."

Raul Lino, A Nossa Casa, 1918
"Depressa descobrira, em parte por introspecção, em parte intuitivamente, em parte por interrogar os outros e em parte pelo estudo da literatura, que as mentes humanas, incluindo as dos génios e santos, são dadas à criação de fantasias bizarras e muitas vezes repelentes. Estas fantasias, concluíra, são quase sempre bastante inofensivas. Vivem na mente tal como a flora e a fauna da corrente sanguínea e, tal como estas, podem de certa forma ser benéficas. São, claro, sintomas de uma estrutura mental, mas em si próprias não costumam ser causas, excepto talvez na arte."
 
Iris Murdoch  em "A Máquina Do Amor Sagrado E Profano"

domingo, 17 de março de 2019

"Na literatura, só o que é selvagem nos atrai. O tédio não é senão um sinónimo de mansidão. É o pensamento incivilizado, livre e selvagem de Hamlet e da Ilíada, das Escrituras e das mitologias, que não se aprendem na escola, que nos delicia. Tal como o pato-bravo é mais ágil e gracioso do que o pato doméstico, também mais belo é o pensamento selvagem - o pato-selvagem - que, entre o orvalho que cai, se ergue bem alto sobre os brejos. Um livro realmente bom é algo tão natural, inesperado  e inexplicavelmente perfeito e belo como uma flor silvestre encontrada na pradaria do Oeste ou na selva do Leste."

Henry David Thoreau  em "Caminhada"

Carlos Salzedo - Five Poetical Studies


sábado, 16 de março de 2019

"Porque será tão difícil por vezes determinar um percurso a seguir? Creio que a natureza encerra um subtil magnetismo que, se inconscientemente nos rendermos a ele, dará um rumo aos nossos passos. Não nos é indiferente a direcção que seguimos. Existe um caminho certo; mas somos demasiado propensos, por estupidez ou distracção, a seguir o caminho errado. De bom grado seguiríamos um caminho que nunca antes percorrêramos neste mundo, um perfeito símbolo do percurso que nos aprazaria percorrer num mundo ideal e interior; e, por vezes, é-nos sem dúvida difícil escolher um rumo, uma vez que ainda não temos dele uma noção clara."
 
Henry David Thoreau  em "Caminhada"

sexta-feira, 8 de março de 2019

Katie Melua - Thank You Stars


"Não que as palavras tivessem para ele um significado por aí além. Por vezes, se ligasse ao sentido de cada uma delas e seus conjuntos nas frases, achava até que contradiriam o que ele próprio queria e pensava, mas elas surgiam como o suporte necessário para que os seus lábios se movessem e uma música avassaladora o impelisse para diante, para a escrita futura do seu próprio livro."

Lídia Jorge em "Estuário"

sexta-feira, 1 de março de 2019

Hang Massive - End of Sky


Emoção e Dor

"Siddhartha também tentava cortar o sofrimento pela raiz. Mas não inventava soluções como desencadear uma revolução política, emigrar para outro planeta ou criar uma nova economia mundial.
Não pensava sequer em criar uma religião ou desenvolver códigos de conduta que trouxessem paz e harmonia. Investigou o sofrimento com um espírito aberto e, mediante a sua contemplação infatigável, descobriu que, na raiz, são as nossas emoções que conduzem ao sofrimento. Na verdade, elas são sofrimento. De um modo ou de outro, directa ou indirectamente, todas as emoções nascem do egoísmo, no sentido em que implicam apego ao eu. Além disso, ele descobriu que, por mais reais que pareçam ser, as emoções não são uma parte inerente do nosso ser. Não são inatas, nem são alguma espécie de maldição ou implante que alguém ou algum deus tenha introduzido em nós. As emoções surgem quando determinadas causas e condições se reúnem, como quando nos precipitamos pensando que alguém nos critica, ignora ou despoja de algum ganho. Surgem então as emoções correspondentes. No momento em que aceitamos essas emoções, no momento em que as adquirimos, perdemos a consciência e a sanidade. Ficamos em efervescência. Deste modo, Siddhartha encontrou a sua solução: consciência. Se desejamos eliminar verdadeiramente o sofrimento, devemos desenvolver a consciência, vigiar as nossas emoções e aprender como evitar entrar em efervescência.
Se examinarmos as emoções como fez Siddhartha, se tentarmos identificar a sua origem, descobriremos que se enraízam num equívoco e estão, portanto, viciadas. Todas as emoções são uma forma de preconceito; em cada emoção há sempre um elemento de juízo.
(...)
Enquanto acreditarmos que tais coisas existem verdadeiramente - momentaneamente ou para toda a eternidade -,  a nossa crença enraíza-se numa má compreensão. Esta má compreensão nada mais é do que ausência de consciência. E quando não há essa consciência, os budistas chamam a isso ignorância. É desta ignorância que emergem as nossas emoções.
(...)
Uma insondável variedade de emoções existe neste reino mundano. A cada momento, inumeráveis emoções são geradas com base nos nossos juízos falsos, preconceitos e ignorância. Estamos familiarizados com amor e ódio, culpa e inocência, devoção, pessimismo, ciúme e orgulho, medo, vergonha, tristeza e alegria, mas há muito mais. Algumas culturas têm palavras para emoções que noutras culturas são indefinidas e portanto não existem. Em algumas partes da Ásia, não há uma palavra para o amor romântico, ao passo que os espanhóis possuem numerosas palavras para diferentes tipos de amor. Segundo os budistas, há inúmeras emoções que não estão ainda definidas em nenhuma língua e mais ainda que estão para além da lógica capacidade de definição do nosso mundo. Algumas emoções são aparentemente racionais, mas a maioria é irracional. Algumas emoções aparentemente pacíficas enraízam-se na agressão. Algumas são quase imperceptíveis. Podemos pensar que alguém é completamente impassível ou desapegado, mas isso é em si mesmo uma emoção.
(...)
A ignorância consiste simplesmente em não conhecer os factos, conhecer os factos de modo erróneo ou conhecê-los de forma incompleta. Todas estas formas de ignorância conduzem a incompreensão e má interpretação, a sobrestimar e subestimar."

Dzongsar Jamyang Khyentse  em "O Que Não Faz De Ti Um Budista"