quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

"A declaração de Hans Küng sobre a admissibilidade ética da eutanásia - tema que nos reuniu neste ano - tem, em última instância, as suas raízes numa determinada compreensão de Deus, compreensão que se revela apropriada a fundamentar a nossa confiança no mesmo Deus. Se Deus for o fundamento da sua confiança, não poderá proibir ao ser humano que disponha da sua vida quando não veja qualquer outra saída de um sofrimento que se lhe tornou insuportável. O Deus que proibisse ao ser humano pôr fim à vida, quando a vida lhe impõe sofrimentos permanentes que já não pode suportar, não seria um Deus benevolente. Seria um Deus tirânico, a cujos olhos a imposição do seu direito ao poder significaria mais do que o destino do ser humano que nele confia. Esta imagem de um Deus absolutista, que se reserva como privilégio a decisão sobre a vida e sobre a morte no final da vida, tem, com efeito, uma longa tradição, que remonta à Antiguidade, no pensamento ocidental - tradição que dominou não só a teologia cristã, mas também, e durante muito tempo, a nossa filosofia. John Locke, um dos pais fundadores em termos filosóficos da democracia moderna, sustentava firmemente a opinião de que os seres humanos são propriedade de um senhor soberano e de que, sendo nisso a sua condição comparável à de escravos, teriam de deixar a esse senhor o juízo da vida e da morte. Hans Küng contrapõe a uma tal imagem de Deus uma pergunta simples: como pode um Deus que ama as suas criaturas obrigar os seres humanos a perseverar no sofrimento? O dogma da indisponibilidade da própria morte é, considerado à luz das suas consequências, essencialmente inumano.
(...)
Como é natural, Hans Küng sabe também que não se trata de evitar todo o tipo de sofrimento na vida das pessoas. Os sentimentos profundos, as esperanças profundas e os apegos profundos estão associados de modo quase iniludível ao risco de um sofrimento grave. As dimensões profundas da vida não podem alcançar-se sem sofrimento. Uma vida sem os sentimentos atravessados pela dor do sofrimento, como a tristeza, a mágoa, a compaixão, a preocupação, a culpa, o arrependimento, seria uma vida animicamente empobrecida. No entanto, em todos estes casos, o sofrimento tem caracteristicamente uma significação precisa: o sofrimento é o preço a pagar pelas perdas de bens vitais ou por uma mudança de direção crítica. É um sentido semelhante que falta em muitos dos estados de sofrimento da última fase da vida, fazendo com que a revalorização cristã do sofrimento como imitação de Cristo caia no vazio."



Hans Küng  em "Uma Boa Morte"
Relógio D' Água Editores, Dezembro de 2017
Páginas 45 e 46

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Confissão Do Fugitivo

"Só sou feliz partindo.

Não entre quatro paredes, à mercê das espadas,
mas entre aqui e ali, uma e outra casa,
ambas de preferência alheias.

Já não posso, nem quero, estar quieto.
Nem agora nem depois. Nem aqui nem ali.
Em todo o caso aí, onde tu estás,
sejas tu quem fores, põe o teu nome
nos meus lábios sedentos, insaciáveis.

Eu não sou eu nem posso ter casa.
Não digo já porque foi sempre assim,
nunca a tive, sempre fui estrangeiro
dentro e fora de mim. Sou o que não sou:
o mendigo que dorme debaixo da ponte
que une as minhas duas margens e que cruzo
dia e noite sem poder deter-me.

Escrevo porque procuro, porque espero.
Mas já não sei o quê, perdeu-se na memória.
Espero que escrevendo
acabe por lembrar-me. Insisto na intempérie.
Sobrevivo entre parêntesis
no espaço vivo e no tempo morto
da espera de quê, entre dois aquis.

Nunca em mas entre. Sai de mim,
sejas quem fores, deixa-me em paz
ou acaba já comigo e com o mel
amargo de estar só a falar só.

Decidi que a minha pátria seja
não decidir, não estar em nenhum sítio
mas de passagem, pontes, naves, comboios,
onde eu seja só o passageiro
que sei que sou, sentindo
que me inquieta a paz,
que a quietude me assusta,
que a segurança não me interessa,
que só sou feliz quando me sei fugaz."



Juan Vicente Piqueras  em "Instruções Para Atravessar O Deserto"
Assírio & Alvim
1ª edição: Fevereiro de 2019
Páginas 11 e 13

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

"Mas a capacidade de pensar pensamentos que valem a pena ser pensados, quanto mais serem expressos e preservados, é comparativamente rara. Não são muitos os que entre nós sabem pensar com uma finalidade exigente, quanto mais original. Menos ainda os que são capazes de reunir na íntegra as energias e o potencial de pensamento e de dirigir estas energias para aquilo que é designado por «concentração» ou percepção intencional. Um rótulo idêntico obscurece os anos-luz de diferença que há entre o ruído de fundo e as banalidades da ruminação comuns a toda a existência humana (tal como é talvez à dos primatas) e a complexidade e forças miraculosas do pensamento de primeira ordem."



"Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento" de George Steiner
Relógio D' Agua Editores, Novembro de 2015
Página 59

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Deve Ser Por Isso

"Não esgotei na altura própria
a criança que temos de ser e de gastar.

Deve ser por isso
que eu não distingo as realidades,
que eu não vejo onde começa o impossível,
que eu sinto a insatisfação dum mesmo sítio
e desejo outro lugar constantemente;
deve ser por isso
que eu não escolho um destino para me assentar depois
e ando a tropeçar à espera, à espera,
sem mesmo disso ter perfeita consciência ...
deve ser por isso
que eu estendo a mão para um objecto
e ele está mais longe que o comprimento do meu braço.

Deve ser por isso
o meu anseio de conjunto universal,
a minha curiosidade do que se disse e se escreveu,
a desordem, gritante dentro e lenta fora, que em mim ondeia [e me transporta
e eu não sei expulsar nem quero.
Deve ser por isso
que jamais lembrei o desmedido infinitamente frágil de [minha alma
e que, agora, lembrado e conhecido de mim mesmo,
não hei-de ainda ter emenda ...

Nunca fui a criança a desgastar-se com as outras entre as outras ...
- vejo-me brincando, soturno e transformista,
a ter de ser o polícia, o ladrão e a vítima,
a ter de ser o caixeiro e o comprador,
a ter de ser ambos os partidos em guerra ...
a ter de ser o comandante do barco e a própria tempestade ...

[Vejo-me mais: a conversar contente
sendo no fundo o marido que volta e encontra a casa na
mesma porque a mulher não existe]
deve ser por isso
que não consigo ser «pessoa grande»,
que a minha ansiedade vai além da prática,
(da prática que me foge dos dedos e, a todas
as horas, as minhas mãos têm de reaprender)
e eu vivo afogado em sonho - «O que seria se não fosse?» -
E em teoria ...
Nem teoria, nem sonho - criança quase intacta ...
e ainda por cima
sem perceber as meias frases, os gestos, os sinais ...
sem conhecer o avesso ..."



Jorge de Sena  em "Post-Scriptum II - 1º volume"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
Páginas 206 e 207
"o permitido ou o proibido deixavam de ser regidos por normas e critérios exteriores, sempre passíveis de serem questionados ou infringidos, para situarem dentro de mim mesmo a sua linha de demarcação."


"Anunciação" de H.G. Cancela
Edições Afrontamento, 1999
Página 11
"Schelling, entre outros, atribui à existência humana uma tristeza fundamental, inescapável. Mais particularmente, esta tristeza oferece o fundamento sombrio sobre o qual assentam a consciência e a cognição. Este fundamento sombrio deve, na verdade, ser a base de toda a percepção, de todo o processo mental. O pensamento é rigorosamente inseparável de uma «melancolia profunda e indestrutível». A cosmologia actual oferece uma analogia à crença de Schelling. Aquela do «ruído de fundo», dos comprimentos de onda cósmica, esquivos mas inescapáveis, que são os vestígios do Big Bang, do surgimento do ser. Em todo o pensamento, de acordo com Schelling, esta radiação primitiva, esta «matéria negra», é uma tristeza, um pesar (Schwermut), que também é criador. A existência humana, a vida do intelecto, significa uma experiência desta melancolia e a capacidade vital de a superar. Nós somos, por assim dizer, criados «entristecidos». Nesta noção existe, quase indubitavelmente, o «ruído de fundo» do universo Bíblico, das relações causais entre a aquisição ilícita do conhecimento, da discriminação analítica e do banimento da espécie humana do estado de felicidade inocente. Um véu de tristeza (tristitia) cobre a passagem, por muito positiva que ela possa ser, do homo para o homo sapiens. O pensamento carrega em si um legado de culpa."



"Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento" de George Steiner
Relógio D' Agua Editores, Novembro de 2015
Página 11