"Não esgotei na altura própria
a criança que temos de ser e de gastar.
Deve ser por isso
que eu não distingo as realidades,
que eu não vejo onde começa o impossível,
que eu sinto a insatisfação dum mesmo sítio
e desejo outro lugar constantemente;
deve ser por isso
que eu não escolho um destino para me assentar depois
e ando a tropeçar à espera, à espera,
sem mesmo disso ter perfeita consciência ...
deve ser por isso
que eu estendo a mão para um objecto
e ele está mais longe que o comprimento do meu braço.
Deve ser por isso
o meu anseio de conjunto universal,
a minha curiosidade do que se disse e se escreveu,
a desordem, gritante dentro e lenta fora, que em mim ondeia [e me transporta
e eu não sei expulsar nem quero.
Deve ser por isso
que jamais lembrei o desmedido infinitamente frágil de [minha alma
e que, agora, lembrado e conhecido de mim mesmo,
não hei-de ainda ter emenda ...
Nunca fui a criança a desgastar-se com as outras entre as outras ...
- vejo-me brincando, soturno e transformista,
a ter de ser o polícia, o ladrão e a vítima,
a ter de ser o caixeiro e o comprador,
a ter de ser ambos os partidos em guerra ...
a ter de ser o comandante do barco e a própria tempestade ...
[Vejo-me mais: a conversar contente
sendo no fundo o marido que volta e encontra a casa na
mesma porque a mulher não existe]
deve ser por isso
que não consigo ser «pessoa grande»,
que a minha ansiedade vai além da prática,
(da prática que me foge dos dedos e, a todas
as horas, as minhas mãos têm de reaprender)
e eu vivo afogado em sonho - «O que seria se não fosse?» -
E em teoria ...
Nem teoria, nem sonho - criança quase intacta ...
e ainda por cima
sem perceber as meias frases, os gestos, os sinais ...
sem conhecer o avesso ..."
Jorge de Sena em "Post-Scriptum II - 1º volume"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
Páginas 206 e 207
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