quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

"Escrever era como mergulhar as mãos em argila (algo de sensual e assustador), criar formas que depois voltavam à massa amorfa, ao caos, ao início; e surgiam de novo, durante algum tempo, revelavam-se e desapareciam ..."


"À noite ia para o jardim das traseiras estudar os astros, ou pelo menos era isso que parecia, ficava a observá-los durante horas e depois fazia desenhos complicados num caderno.
Marisa levou algum tempo a perceber que o jardim não era selvagem mas que nele nada estava feito por acaso, o homem conhecia intimamente as plantas, as que se davam bem umas com as outras, as que deviam ficar separadas. Quando enxertava os arbustos, consultava antes os astros, a posição dos astros.
E numa manhã em que cruzou duas árvores diferentes, fez sexo com ela, na terra, por trás, como se fosse um ritual; tapou-lhe a boca com a mão para a impedir de gritar e depois beijou-a com ternura, como se a sua dor tivesse sido necessária para fins que ela ignorava.
Um dia descobriu que estava grávida.
E então, vindo de fora, veio o medo.
Algo desconhecido crescia dentro de si, algo que fora engendrado naquele lugar estranho, talvez de acordo com determinada posição dos astros, na fase certa da Lua, segundo leis de que ela não sabia nada."
 
 
"Gostava da sua companhia, de mergulhar naqueles olhos cinzentos, de deixá-la revelar-lhe os segredos das plantas (as que se podiam comer, as que eram venenosas; as que pertenciam a determinado signo do Zodíaco - «as plantas de Gémeos são quentes e ligeiramente húmidas, as suas flores são brancas ou muito pálidas, as folhas têm sete pontas» ...), de vê-la fazer desenhos com as pedras, silenciosa, grave."

Ana Teresa Pereira  em "A Coisa Que Eu Sou"

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