quarta-feira, 28 de março de 2018
"No solstício de Inverno (um dia estranho em que havia qualquer coisa no ar, uma proximidade, não sei) ele deu-me uma teia de apanhar sonhos. Era um objecto bonito, uma teia circular com uma abertura no centro, feita em fio muito resistente, e da qual pendiam plumas de pássaros, de um azul fortíssimo, artisticamente intercaladas com missangas.
Disse-me que a lenda se relacionava com os índios oneida, nos Estados Unidos. Na verdade, os índios em geral acreditavam nos sonhos, tudo o que era visto, sonhado ou captado nas visões era igualmente real.
Uma teia de sonhos numa casa, apanhava os que flutuavam no ar da noite. Os pesadelos ficavam presos nos fios como insectos e desfaziam-se de manhã com a luz do sol.
Mas os sonhos bons escapavam pela abertura no centro da teia e tornavam-se reais."
Ana Teresa Pereira em "O Rosto de Deus"
Ana Teresa Pereira em "O Rosto de Deus"
segunda-feira, 26 de março de 2018
As Fogueiras de S. João
"O nosso destino, chumbo fundido, não pode mudar
nada pode fazer-se.
Deitaram o chumbo fundido na água debaixo das estrelas e
as fogueiras podem arder.
Se ficares nua diante do espelho à meia-noite
vês
vês o homem passar no fundo do espelho
o homem dentro do teu destino que governa o
teu corpo,
dentro de solidão e do silêncio o homem
da solidão e do silêncio
e as fogueiras podem arder.
À hora em que findou o dia e não começou o outro
à hora em que se cortou o tempo
aquele que desde agora e antes do princípio governava
o teu corpo
tens de encontra-lo
tens de procura-lo para que pelo menos
outro alguém o encontre, quando tiveres morrido.
São as crianças que acendem as fogueiras e gritam
diante das labaredas dentro da noite quente
(Houve acaso alguma fogueira que não fosse acesa
por uma criança, oh Eróstrates)
e deitam sal dentro das chamas para que crepitem
(Como olham estranhamente as casas de súbito para nós,
cadinhos das pessoas, quando as afagar
um reflexo).
Mas tu que conheceste a graça da pedra no rochedo
batido pelo mar
o entardecer em que a serenidade caiu
ouviste de longe a humana voz da solidão
e do silêncio
dentro do teu corpo
aquela noite de S. João
quando se apagaram todas as fogueiras
e estudaste a cinza debaixo das estrelas."
* Entre os vários rituais adivinhatórios, na aldeia de infância do poeta na Ásia Menor (para lá dos habituais relativos a estas fogueiras), destacam-se dois que têm a ver com o título e com o poema: 1) Uma rapariga deita chumbo fundido num vaso com água e a forma que toma o chumbo ao solidificar indica o negócio ou a profissão do seu futuro marido. 2) A rapariga despe-se à meia-noite e fica nua diante do espelho, pedindo a S. João que lhe revele o nome do seu futuro marido; o primeiro nome a ouvir ao acordar na manhã seguinte virá a ser o nome dele.
* Entre os vários rituais adivinhatórios, na aldeia de infância do poeta na Ásia Menor (para lá dos habituais relativos a estas fogueiras), destacam-se dois que têm a ver com o título e com o poema: 1) Uma rapariga deita chumbo fundido num vaso com água e a forma que toma o chumbo ao solidificar indica o negócio ou a profissão do seu futuro marido. 2) A rapariga despe-se à meia-noite e fica nua diante do espelho, pedindo a S. João que lhe revele o nome do seu futuro marido; o primeiro nome a ouvir ao acordar na manhã seguinte virá a ser o nome dele.
Yorgos Seferis em "Poemas Escolhidos"
sexta-feira, 23 de março de 2018
"Ainda no século dezassete eram usados métodos xamânicos para procurar a inspiração (ligar-se aos outros mundos). As casas de escuridão, sem janelas para deixar entrar a luz do sol, onde o poeta se deitava de costas, tendo por companhia algumas pedras, e ficava durante um dia inteiro; a uma certa hora da noite acendiam-se umas velas e ele começava a escrever. Mas ninguém sabia o que se passara no escuro e no silêncio, o que vira, para onde viajara.
Escrever poemas era um acto mágico ...
A poesia estava muito próxima da linguagem dos pássaros, da linguagem dos anjos. E dos demónios."
Ana Teresa Pereira em "O Rosto de Deus"
Ana Teresa Pereira em "O Rosto de Deus"
"E no fim do Verão comecei a afastar-me um pouco. Saía de casa de madrugada, antes que os outros se levantassem, vestia uma camisola velha sobre o fato de banho e ia para as rochas apanhar conchas e pedras. Havia umas muito bonitas, mas o importante era que eu aprendera a senti-las, segurava-as na mão durante algum tempo até ficarmos ligadas.
Uma manhã encontrei uma pedra polida pelas águas, misteriosa, que trouxe para casa. Tinha muitas cores, azul, verde, vermelho; na sua superfície estendiam-se prados com flores campestres, talvez papoilas, e pedaços de céu. Pensei que Tom saberia o seu nome.
Claro que Tom saberia o seu nome. Conservá-la-ia na mão durante uma eternidade, sentindo-a, escutando-a ... tornando-a dele.
E ouvi-me dizer baixinho, quase sem querer:
- Meu amor.
(...)
Ele gostou da pedra (disse-me que se chamava unakite), colocou-a no velho armário do estúdio, entre os livros e as maçãs esverdeadas. Também tinha algumas para mim, águas marinhas de um azul muito suave, pedras da lua quase brancas."
Ana Teresa Pereira em "O Rosto de Deus"
Ana Teresa Pereira em "O Rosto de Deus"
sábado, 17 de março de 2018
"Todos trouxeram um presente. Muitos de vós se negaram algum conforto para que as necessidades dos outros pudessem ser satisfeitas. Todos vós contribuíram com algo de acordo com as vossas possibilidades, sem pensarem no valor do presente que irão receber em troca. Para nós, é perfeitamente natural partilharmos com os outros. Há muito que percebemos que é mais importante dar do que receber."
Carson McCullers em "O Coração É Um Caçador Solitário"
Carson McCullers em "O Coração É Um Caçador Solitário"
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