"Os próprios noticiários são cada vez mais uma variante do folhetim: o desaparecimento de Maddie, o rapto de Esmeralda, o caso Casa Pia, o assassinato de Carlos Castro, a Crise; mas também a invasão do Iraque, o tsunami, o tremor de terra no Japão, o derrube dos ditadores no Médio Oriente, tudo são motivos de ficções efémeras, que se esgotam depressa e a que falta o essencial: um autor, uma voz, alguém que as ordene e lhes dê forma e sentido.
Com esse culto do efémero, que a televisão e agora a Internet promovem, ao que estamos a assistir é a uma conspiração contra a memória; ou então, ao seu embalsamento (o que é o mesmo), em museus oferecidos a turistas distraídos. Há muitas maneiras de destruir novamente a Biblioteca de Alexandria: uma delas é transformá-la num supermercado de informação e divertimento e enchê-la de atraentes futilidades.
Senão, vejamos. Nunca como hoje tivemos tanta informação disponível; mas também nunca como hoje tivemos a sensação frustrante de que não somos informados e, sobretudo, de que deixámos de ser capazes de interpretar o mundo.
Tudo é feito para nos fazer ganhar tempo: desde a Via Verde e o Multibanco à velocidade sem limites das comunicações. Mas nunca como hoje tivemos tão pouco tempo para nós.
A liberdade prometia-nos a felicidade e o conforto. Nunca tivemos tantas liberdades. Mas também nunca, como hoje, nos sentimos tão pouco felizes e tão pouco seguros.
Os progressos da globalização trouxeram consigo uma atomização da cultura, uma proliferação das ficções e uma democratização dos meios de as produzir. Hoje, qualquer um pode ser criador. E, no entanto, nunca houve tão poucos criadores.
Aumentaram os contactos na Internet, nas redes sociais. Mas nunca estivemos tão sozinhos.
Não se trata de fazer julgamentos morais sobre o presente. Podemos lamentar este século, mas não temos meios para o corrigir. Os moralistas são sempre conselheiros impotentes, patéticos velhos do Restelo, incapazes de mudar a realidade. As coisas irão acontecer comandadas pelos ciclos naturais da História. Não se inventam artistas com subsídios, nem ficções por decreto.
Mas é bom estarmos atentos aos sinais dos tempos. Como vimos, as épocas em que a ficção floresceu foram sempre períodos curtos em cada país ou continente, e seguiram-se-lhe sempre longos períodos de vazio criativo e de decadência. Mas a ficção renasceu sempre pouco depois, noutro sítio e sob outras formas, em função da hegemonia histórica de cada país e de cada cultura, em cada momento; os temas foram sempre apropriados por outros, noutro lugar, por outros meios, aprofundados, modificados, combatidos, mas nunca houve rupturas totais, como parece haver hoje, com o passado.
Excepto uma vez. Houve um período em que o vazio se prolongou por cerca de dez séculos: entre o colapso do mundo greco-romano e o Renascimento. E a pergunta que se impõe é esta: estaremos nós diante de uma nova crise tão profunda e tão longa como a que se seguiu à queda do Império Romano?
Os sinais permitem a comparação: triunfo do hedonismo, do individualismo, da satisfação fácil dos prazeres, longo período de paz, abundância de facilidades, mas, também, triunfo da ganância, do cinismo, da futilidade e, sobretudo, da descrença; crise de confiança, descrédito da política e da justiça, falta de horizontes, colapso da energia, quebra da solidariedade. Repito, por isso, a pergunta com que comecei: neste século, que ainda há pouco começou, qual será o futuro da ficção?
A minha convicção é que esta Europa que está em coma desde a queda do Muro de Berlim, só acordará deste sono profundo se for sacudida por um novo cataclismo - ou por uma séria ameaça - social, económica, ecológica, terrorista ou tecnológica, como prevê Paul Virilio, quando vê no que chama o "cibermundo" os sinais anunciadores de uma catástrofe global.
Posso e espero enganar-me; mas uma coisa me parece certa: para se imporem, aqui ou noutro sítio, as novas ficções terão que recuperar a tradição humanista e aristotélica que fundou o "Cânone Ocidental" e que, ao longo dos séculos, foi reescrevendo, através da imaginação dos seus génios criadores, a mesma história: a História do Homem capaz de identificar o mal e denunciar a tirania, de lutar contra a adversidade e de superar-se a si próprio, de dar uma ordem ao caos e um sentido ao seu destino.
Será que essa tradição é irrecuperável? Estaremos no limiar de um novo paradigma em que o Homem já não é a medida de todas as coisas e em que o Cânone é descartável? Será a Europa vítima do seu sucesso, como foi o Império Romano? Será que a seguir à "Idade do Caos", de que fala Bloom, teremos uma nova "Idade das Trevas", como a que se seguiu aos últimos imperadores?
Os sinais dos tempos são confusos e pouco animadores. E, sobretudo, deixam-nos perplexos, com a esperança suspensa, hesitante, à espera de um sinal. Os tempos que aí vêm serão portadores de um novo e radioso impulso criador, que anuncie um retomar do Cânone, ou de um longo e desastroso crepúsculo do Humanismo? Devemos confiar que esse testemunho, que passou de Homero a John Ford, não se vai perder? Ou, pelo contrário, teremos de esperar novamente dez séculos, os mesmos que levámos a redescobrir Aristóteles?"
António-Pedro Vasconcelos em "O Futuro da Ficção"
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Páginas 59 a 62
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