sexta-feira, 16 de julho de 2021

 "Gosto de pensar
que pensas em mim quando penso em ti,
mesmo se passaram anos desde que te vi,
moras noutra cidade, vives noutra casa,
chamas amor a outra mulher.

Gosto de pensar,
às vezes, minudências, e penso em ti,
um parágrafo de um livro,
um arco-íris,
a elegância de um ganso a passear-se num jardim,
a sombra de uma figueira,
o cheiro dos figos assados pelo calor,
canções de Natal.
Gostavas de canções de Natal, gostavas do Natal,
contigo quase gostei do Natal,
continuo a não suportar o Natal,
as pessoas mudam-nos mesmo quando ficamos iguais."



"Silêncio sálico" de Raquel Serejo Martins
Poética Edições, Julho de 2020
Página 129

 
"O poeta faz poesia
como quem tece uma casa,
paredes de tijolo e argamassa,
telhado em telha vã, talvez cortinas,
um pedaço de verde e de azul pendurado à janela,
barulho de pássaros, de cigarras, de grilos, de estrelas,
da motorizada do último cliente do café da rua,
talvez uma lareira acesa,
que um fogo é bom para aquecer os pés,
bom para queimar a solidão.

O poeta quer viver num mundo mais habitável,
chegar à noite e ter um quarto e no quarto uma cama,
o corpo inteiro e o cansaço inteiro,
o cheiro a sabão dos lençóis,
se a cama de casal, ao lado um corpo que o ame
ou que o suporte ao ponto de lhe aquecer os pés,
que um corpo é bom para aquecer os pés,
e o barulho dos segundos no relógio despertador,
que vai tocar para o enfiar num dia igual aos outros,
para que possa, com fundamento, queixar-se da rotina."




"Silêncio sálico" de Raquel Serejo Martins
Poética Edições, Julho de 2020
Página 17
 
"BOLETIM METEOROLÓGICO
Hoje, só chove dentro de ti."


"Há silêncios que só tu és capaz de ouvir."



"Silêncio sálico" de Raquel Serejo Martins
Poética Edições, Julho de 2020
Páginas 110 e 150
 
"Fugir à servidão
mesmo que tenha de passar
o resto da vida em silêncio a varrer o chão."



"Coisas que me fazem quase chorar
pessoas com o coração no sítio,
corações incansáveis como se tivessem baterias de lítio,
o metal mais leve e menos denso
entre os elementos sólidos,
corações facilmente inflamáveis,
corações sobre os demais, sobretudo, amáveis."



"PARAÍSO DOMÉSTICO
Quando estou contigo
sobra-me sempre o vestido."



"É no Verão
que melhor percebo como sou feita de Inverno,
escureço mais cedo do que os dias da estação."




"Silêncio sálico" de Raquel Serejo Martins
Poética Edições, Julho de 2020
Páginas 19, 49, 57 e 78
 
"Se eu tivesse pontaria e tu tivesses asas.
Se eu soubesse semear e tu fosses semente.
Se eu uma ilha e tu continente.
Se eu cautelosa e tu imprudente.
Se eu fosse chuva e tu fosses chão.
Se eu fosse a casa e tu o botão.
Se eu Josefina e tu Napoleão.
Se eu a modéstia e tu a vaidade.
Se eu fosse trânsito e tu a cidade.
Se eu fosse um pomar e tu respigador.
Se eu fosse água e tu fosses vedor.
Se eu um peixe e tu pescador.
Se eu um funeral e tu uma festa.
Se eu uma giesta e tu uma floresta.
Se eu o devedor e tu o fiador.
Se eu fosse um farol e tu faroleiro.
Se eu fosse a solidão e tu a saudade.
Se eu escuridão e tu claridade.
Se eu uma maçã e se tu Adão.
Se eu a decepção e tu o perdão.
Se eu fosse a fome e tu a vontade.
Se eu soubesse esperar e tu fosses pontual.
Se eu soubesse amar e tu fosses amável."




"Silêncio sálico" de Raquel Serejo Martins
Poética Edições, Julho de 2020
Página 20

quinta-feira, 15 de julho de 2021

 
"Descrever um lugar indescritível é torná-lo inamovível para o resto da minha vida, que certamente decorrerá ao lado da árvore, como sempre tem decorrido no jardim que o pensamento permite. O jardim não é criado pelo pensamento, o jardim permite pensar, tem a sua própria forma de pensar o pensamento."


"Todas as árvores batem com as folhas no mar."


"... grande é o alvoroço na folhagem a perder de vista do Grande Maior. É rara, de facto, uma tão grande simbiose entre o humano e o vegetal."


"Se eu tropeçar nalgum sonho, posso sempre recorrer à memória que tenho da sua melodia."


"Imagens repletas do silêncio e da fascinação dos sons. Guardando a palavra como sua indefectível preciosidade. Ou folhas que se entregavam com um prazer consciente e austero,
voluntariamente,
a uma espécie de simbiose bravia. Gerando híbridos de luar libidinal. Um deles, o da Noite Obscura, desfolhava-se no teclado dos sentimentos e fazia surgir, como um banal milagre do ritmo, um florilégio de emoções estranhas."




"Parasceve" de Maria Gabriela Llansol
Relógio D' Água, Abril de 2001
Páginas 12, 73, 82, 106 e 168

quarta-feira, 14 de julho de 2021

 
"A fotografia, escreveu ele uma vez com a sua letra maternal, é o impulso espontâneo de uma atenção visual perpétua, que capta o instante e a sua eternidade."


"A estrada estava sempre repleta de surpresas, porque o solo ressequido, as lascas de pedra, as ervas, os cardos, os lagartos, os fósseis de conchas do mar, a chicória-brava, a trovoada quando havia uma tempestade, o prateado das folhas molhadas das oliveiras, e, no dia seguinte, a calma do calor da tarde à volta dos nossos tornozelos enquanto a percorríamos, todas essas coisas eram intermináveis como a própria infância, e nenhuma delas se mantinha durante muito tempo, pois acabava por se escapar no final para só regressar no dia seguinte."


"Enquanto olha sonhadoramente para o cesto feito por Jean-Marie, o homem sozinho na sua cozinha numa noite de Inverno pensa que, tal como as gatas não precisam de dormir com os seus amantes, o género dos animais, ao contrário do dos seres humanos, não indicia uma divisão ou separação em duas partes de algo que na sua origem estava unido. Só os homens e as mulheres é que procuram uma unidade perdida."




"Fotocópias" de John Berger
Antígona Editores Refractários
1ª edição, Novembro de 2020
 
"O desconhecido parecia sempre mais ameaçador do que o conhecido, mesmo quando este último era intolerável."


"Os olhos são de um azul-claro intenso e de vez em quando estremecem, como o focinho de um cão ao investigar um cheiro. É difícil observar-lhe os olhos sem nos sentirmos indelicados. Estão absolutamente desprotegidos  - não por inocência, mas por uma paixão pelo acto de observar. Se os olhos são a janela da alma, esta não tem vidros, nem cortinas, e ele aparece na moldura, mas não se pode ver mais além do seu olhar."


"Nada se perde, diz ele, tudo o que vemos permanece connosco."




"Fotocópias" de John Berger
Antígona Editores Refractários
1ª edição, Novembro de 2020
Páginas 63, 74 e 79

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Encanto Da Floresta

 
"Parque da Pena, encanto vegetal
da terra, a erguer-se em frémitos de altura, 
na ansiedade das rudes escaladas
na direcção gloriosa do Infinito;
naves sombrias de uma catedral
onde o verde de exóticas ramadas
descreve ogivas, arcos, colunatas,
e onde o beijo da luz vai fecundar
recônditas penumbras misteriosas,
criando aquelas vidas silenciosas
que a floresta transforma num altar ...

Quem foi que em ti semeou tais maravilhas,
decantado e fantástico jardim?
Que deus ou génio te dotou assim
dessa atmosfera de distantes ilhas
com que outros climas e outros horizontes
nos fazes pressentir por um momento
na arfante e clamorosa voz do vento,
ao som cantante e lírico das fontes?

Em ti há todo o encanto das baladas,
das histórias fantásticas de fadas
onde dançam as bruxas com os gnomos
e onde o sol, como um fruto tropical,
entorna o loiro sumo dos seus gomos
sobre a alma fechada do pinhal.

Cedros, palmeiras, faias e araucárias!
Que encanto quase humano há no segredo
de todas essas almas do arvoredo
que em si guardam as múltiplas virtudes
das longínquas e ignotas latitudes
onde a luz as beijou na sua origem! ...

Flutuam na atmosfera sonhos vagos;
aromas de mistério sobem no ar,
em tudo pondo o ritmo singular
de uma quase dramática ansiedade.
E os cisnes, deslizando sobre os lagos
numa hierática serenidade,
em si concentram a quietude mesta
do sonho ascensional e em flor do parque,
da alma silenciosa da floresta.

Parque da Pena, ramo senhoril
no regaço granítico da serra,
em teu condão de lírica beleza
ficaste neste mundo de tristeza
como um sonho de amor primaveril
 - verde estrofe de um canto panteísta,
paraíso que a alma nos conquista
e que, por dom de Deus, desceu à Terra! ..."



"À Esquina Do Tempo" de Oliva Guerra
Edição da Autora, Lisboa, 1975
Páginas 219 a 222