sábado, 21 de maio de 2022

 
"o vento agita as sombras
na minha mão, lança-me
vultos, um nome em chamas, versos
afiados contra os dedos.

sempre pressenti a distância mínima
entre o poema e o medo
de não saber regressar a casa."



"Um Circo no Nevoeiro" de Renata Correia Botelho
Editora Averno, Outubro de 2009
Página 40
 "encosto a face à parede
mais triste do quarto, fiel
guardiã do sol posto.

o coração que me deixaste
é uma casa difícil de habitar."



"Um Circo no Nevoeiro" de Renata Correia Botelho
Editora Averno, Outubro de 2009
Página 18
 
"falhámos tudo: entregámos
os livros ao sepulcro
das estantes, ao amor

demos um colo de horas
certas, deixámos de abrir
janelas para cheirar a noite.

já nada nos lembra
que o poema só se forma
no fio da navalha."



"Um Circo no Nevoeiro" de Renata Correia Botelho
Editora Averno, Outubro de 2009
Página 11

"Imagens - uma antologia de inéditos" de Luísa Freire

 
"Meio-dia vertical -
a sombra esconde-se dentro
de nós"


"Perfeição é aceitar
sem lamento e sem remorso
a nossa própria imperfeição"


"Prendemos o que já perdemos, com medo de o perder."



"Imagens - uma antologia de inéditos" de Luísa Freire
Companhia das Ilhas
1ª Edição, Janeiro de 2022
Páginas 19, 105 e 138

domingo, 8 de maio de 2022

 "As palavras certas: não há palavras certas.
Há certas palavras não assinaladas
as que nada fazem senão dar a presença
da perturbação - só o bastante
para converter e desarmar."



"Arte Nenhuma" de Carlos Poças Falcão
Língua Morta / Livraria Snob
Outubro de 2020
Página 391
 
"Pergunto se é preciso dizer tudo do princípio:
viver é pelo centro e quando a morte existe
nada repousa em nada. Talvez que um poema
nunca chegue ao fim, talvez ele ressoe
só antes de início. Quantas vezes peço às árvores:
dai-me o som de uma ramagem, uma luz de primavera.
Mas é-me oferecido um balbuciar impuro,
a luz de um deus maciço. Recomeçar então
a escutar folhagens, a terra a macerar
desde os anéis às ramas. Criação pelo princípio.
Mãe, embebimento, labareda mergulhada
que centra e ramifica, solve e coagula."



"Arte Nenhuma" de Carlos Poças Falcão
Língua Morta / Livraria Snob
Outubro de 2020
Página 227

Os Dias

 
"Nos dias de chuva não é tão simples ver
a orientação dos cumes, os movimentos altos
que se manifestam numa incerteza estranha.
Banha-nos a água, em sossego, como plantas.
Países inteiros deixam-se molhar, assentem
na precipitação. Mas tudo desconhecem
dos caules que estremecem, das ramificações.
Apenas ficam escuros, trabalham, ficam escuros.
Durante as estações tanta coisa quer morrer!
Um aguaceiro, porém, encanta as folhas,
perfuma as argilas, e um dia é consumado
para exemplo da alma, sem sombras, mas difuso."



"Arte Nenhuma" de Carlos Poças Falcão
Língua Morta / Livraria Snob
Outubro de 2020
Página 217

sábado, 7 de maio de 2022

 
"Nas regiões lacustres e nos deltas, nessas
disposições da alma onde as águas só murmuram,
há movimentos fundos, inquietações
que flutuam, elas e as recordações.
Os pescadores mergulham, os olhos procuram
os sinais e por estações luxuriantes
ungem-se os amantes, espalham-se perfumes.
Regiões que passam e não voltam: eu já
fui fragrante. Essas ilusões que alimentam,
tardes pensativas, paisagens que se perdem
de memória - é a palavra amor que as recorda
com o coração contido, as águas estuantes."



"Arte Nenhuma" de Carlos Poças Falcão
Língua Morta / Livraria Snob
Outubro de 2020
Página 127
 
"Falarei da luz que há na luz
na treva que há na treva dessa luz.
Jogarei com as árvores e a terra
toda a infância será ressuscitada.
Direi que o poema é obscuro. Dele
direi que é um sol negro. Da pele
falarei, do mais profundo.
Falarei dos astros com silêncio
e de mim como do mar murmurarei.
Aviso que nada descobrirei."



"Arte Nenhuma" de Carlos Poças Falcão
Língua Morta / Livraria Snob
Outubro de 2020
Página 19
 
"Amar agora os fragmentos. Os nítidos
pedaços de sentidos. Os momentos
fixados a brilhar. A quase perfeição
que há nesses momentos. Somos líquidos
amamos a fragmentação, a incansável
desordem da matéria. Com a pequena voz
enfrentamos o tempo, com a brancura
de uma subtil lenta paixão. Ao unirmos
separamos. Intuímos uma funda duração
um denso envolvimento, uma gravitação."



"Arte Nenhuma" de Carlos Poças Falcão
Língua Morta / Livraria Snob
Outubro de 2020
Página 15