segunda-feira, 19 de maio de 2014

"Haveis ouvido o conto taoista do Domar da Harpa?
Certa vez, em tempos idos, na Ravina de Lungmen havia uma árvore Kiri, verdadeira rainha da floresta. Erguia a cabeça para conversar com as estrelas; as raízes desciam no fundo do solo, emaranhando as suas serpentinas brônzeas nas do dragão prateado que dormia por baixo. E aconteceu que um mago poderoso fez desta árvore uma harpa maravilhosa, cujo espírito obstinado havia de ser domado apenas pelo maior dos músicos. Durante muito tempo o instrumento foi estimado pelo imperador da China, mas foram em vão todos os esforços dos que, à vez, tentaram extrair melodias daquelas cordas. Em resposta às suas melhores tentativas soltavam-se da harpa apenas notas roufenhas de desprezo, em desarmonia com as canções que eles gostariam de cantar. A harpa recusava reconhecer um mestre.
Por fim chegou Peiwoh, o príncipe dos artistas. Com mão meiga acariciou a harpa, como quem tentasse acalmar um cavalo obstinado, e tocou suavemente as suas cordas. Cantou a natureza e as estações, montanhas altaneiras e águas correntes, e todas as memórias da árvore despertaram! O doce sopro da primavera tornou a brincar entre os seus ramos. As jovens cataratas, dançando pela ravina, riram-se para as flores em botão. Em seguida escutaram-se as vozes sonhadoras do verão, com a sua miríade de insectos, o gentil tamborilar da chuva, o grito do cuco. Escutai! ruge um tigre - o vale volta a responder. É outono; na noite deserta, afiada como uma espada brilha a lua sobre a erva molhada de geada. Agora reina o inverno, e pelo ar cheio de neve redemoinham flocos de cisnes, e pedras de granizo ruidosas fustigam os troncos numa delícia feroz.
Então Peiwoh mudou de tom e cantou o amor. A florista balançou como um mancebo ardente embrenhado em pensamentos. Lá alto, qual donzela altiva, correu uma nuvem reluzente e linda; passageiras apenas, longas sombras rastejaram pelo solo, negras como o desespero. De novo o tom mudou; Peiwoh cantou a guerra, o embater do aço e os corcéis em tropel. E na harpa cresceu a tempestade de Lungmen, o dragão cavalgando o corisco, a avalanche tempestuosa embatendo pelos montes. Em extâse, o monarca celeste questionou Peiwoh quanto ao segredo deste vitória. «Senhor», replicou ele, «outros falharam porque apenas se cantaram a si próprios. Eu deixei que a harpa escolhesse o seu tema, e não soube verdadeiramente se a harpa era Peiwoh, ou se Peiwoh foi a harpa.»

Kakuzo Okakura  em "O Livro do Chá"

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