"sabes meu ícaro
não é verdade que desde sempre
tenha estado disposta a desenterrar
as minhas ideias uma a uma à colher
até esta paisagem mental ser um deserto
para melhor poder aplanar a aterragem
do teu voo de belo efeito
não sei o que te pode ter dado essa ideia
não é também verdade que me preocupassem
a botânica e os labores domésticos
a costura e a cozinha
enquanto a ti te ocupavam
os seminários necessários
para que te convertesses no rapaz-bala
que em breve tão orgulhosamente serás
ninguém aqui proporia ler a tua trajectória
tão pungente e cortante por entre as nuvens
da mesma maneira que lemos aquele caso
espinhoso de édipo com o pai
talvez aqui os psicanalistas do passado
tenham desperdiçado uma bela oportunidade
para um substancial estudo de caso, mas que sei eu
a tua história é demasiado
sobre pecado e punição
para qualquer um de nós
ter a paciência necessária
para te dar a atenção
que podias ter merecido
nas direcções em que o meu olhar procura
considera já inscrita a tua trajectória mirabolante
e até podes argumentar que isto é
porque desde a escola primária
me deram a ler bell hooks
e biografias de muhammad ali
mas com esta mistura que poeta cantaria
eficazmente a minha morte vertical
que estudioso senil se atreverá agora
a apontar a falta de originalidade
que tem sido apanágio
da minha geração
eu descerei a lugares gelados
às grutas de despenhamento e kryptonite
à procura do que resta de ti
o gelo que cifra tudo em mitologia
há-de devolver-me o teu sorriso
sempre para baixo e a toda a velocidade
rapaz-pássaro
eu trago-te na minha concentração
e reconheço a impaciência da tua fome
se te parece que aqui falta algum calor
é porque nada disto se confunde
com as cenas finais do paciente inglês
e sei ainda havemos de arrastar
os nossos corpos cansados
para fora do círculo da queda
onde um de nós
assobiará de raiva
um tu ainda não me desiludiste."
Tatiana Faia em "um quarto em atenas"
Tinta-da-china, Janeiro de 2018
Páginas 63 a 65
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