domingo, 13 de outubro de 2019

"A poesia, senhor fidalgo, em meu parecer é como uma donzela terna e de pouca idade e em todo o extremo formosa, a qual têm cuidado de enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e ela se há-de servir de todas, e todas se hão-de autorizar com ela; mas esta tal donzela não quer ser manuseada, nem trazida pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças nem pelos rincões dos palácios. É feita de uma alquimia de tal virtude, que quem a sabe tratar a volverá ouro puríssimo de inestimável preço; há-de a ter o que a tiver em seu lugar, não a deixando correr em torpes sátiras nem em desalmados sonetos; não há-de ser vendível em maneira alguma, se não for em poemas heróicos, em lamentosas tragédias ou em comédias alegres e artificiosas; não há-de tratar com os truões, nem com o ignorante vulgo, incapaz de conhecer e estimar os tesouros que nela se encerram. E não penseis, senhor, que chamo aqui vulgo somente à gente plebeia e humilde, que todo aquele que não sabe, ainda que seja senhor e príncipe, pode e deve entrar em número de vulgo. E, assim, o que com os requisitos que disse tratar e tiver a poesia, será famoso e estimado seu nome em todas as nações políticas do mundo.
(...)
... segundo é opinião verdadeira, o poeta nasce: quer-se com isto dizer que do ventre de sua mãe o poeta natural sai poeta, e com aquela inclinação que o céu lhe deu, sem mais estudo nem artifício, compõe coisas, fazendo verdadeiro aquele que disse: Est Deus in nobis *, etc.
(...)
Se o poeta for casto em seus costumes, sê-lo-á também em seus versos; a pena é língua da alma; quais forem os conceitos que nela se engendrarem, tais serão seus escritos; e quando os reis e príncipes vêem a milagrosa ciência da poesia em sujeitos prudentes, virtuosos e graves, honram-nos, estimam-nos e enriquecem-nos, e coroam-nos ainda com as folhas da árvore que o raio não ofende **"


* "Est Deus in nobis": verso de Ovídio («há um deus em nós»)

** ... folhas da árvore que o raio não ofende: Dom Quixote refere-se às coroas de louro, emblemas de Apolo e da glória.



Miguel de Cervantes  em "Dom Quixote de la Mancha"
Publicações Dom Quixote
3ª edição (Setembro de 2015)
Páginas 572 a 574

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