terça-feira, 29 de outubro de 2019

Aula De Natação Para Fedra

"é verdade que nem nunca lhe passou pela cabeça
apanhar-se a nadar neste tipo de piscinas
mas o mundo é aquático
antes de ela chegar aqui
toda esta água podia já ser encontrada
em dias abafados no peso do ar
e em rios, lagos, charcos, poças
em reservatórios e outros espaços
artificialmente construídos
como saunas, piscinas, banheiras
tão eficazes a conter toda esta água
como os corpos que com os seus dramas nela se debatem

como por exemplo o do nadador
que compareceu na piscina deserta
à primeira aula da madrugada
ou o remador solitário
a sua t-shirt um ponto branco
na solidão do rio que corre pelas manhãs
com um rasto de lama junto às represas

mas não é um mero rumor
que os dias sejam simplesmente aquáticos
ela mete-se pela água todos os dias
e gesticula e esperneia
e água segue-a para toda a parte
é o que lhe enche os bolsos
quando ela se apressa para pagar
a conta no café
e dobra as esquinas com ela
e assoma às janelas para a espiar
quando com respiração regular
ela corta a alface do jantar no lava-loiças,
na faca, nas folhas, nas mãos

quando ela fecha os olhos
alguém podia acrescentar
que eles são fechados
com a precisão
com que as moedas dos desejos
são atiradas às fontes
que será ainda assim
que um dia eles serão fechados

o amado que ela escolheu
cala-se junto às fontes
preocupa-se em farejar a caça
correr atrás de deusas castas
que o hão-de despedaçar
pela pureza de uma exactidão que não paga
uma vida amortalhada pelo hábito

a transpirar por todos os poros
as verdades inquestionáveis do hábito
e ele não perguntou
não pergunta
nunca perguntará

o que hipólito não sabe agora

tudo o que vive para lá do faro dos seus cães
e das palavras subservientes
e pesadas proferidas nos altares
da sua deusa preferida

ele não vai aprender nunca

esta é apenas uma das muitas tragédias possíveis

fedra separa a cabeça do corpo
ela não soube escolher a palavra adequada
na verdade ela não se lembra de ter escolhido nada
e ponderar opções só veio muito mais tarde
gota a gota as manhãs prosseguiram
com o seu trabalho de encher o mundo de água
ela tem entrado e saído dos mesmos quartos
com as mãos nos bolsos
rasando os ouvidos como lâminas
ela descortina o desejo como as estátuas
em cerimónias oficiais são inauguradas

e o tempo tem sido uma cegueira
que corre contra ela
hipólito não existe já
os espelhos enchem-se de água
nos quartos do entardecer

ela está agora sozinha com a longa
corrida do equilíbrio
e o tempo entre as braçadas diminui
ela vai precisar de respirar
cada vez menos

e em algum momento
os factos hão-de flutuar
até à superfície
tão óbvios e inevitáveis
como brinquedos de plástico
num aquário"


Tatiana Faia  em "um quarto em atenas"
Tinta-da-china, Janeiro de 2018
Páginas 69 a 72 

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