sexta-feira, 14 de agosto de 2020

 "Nem desejo nem deixo de desejar que tivéssemos uma vida depois da morte e também não quereria alimentar ideias dessas; mas, para dar a palavra à realidade, tenho de constatar que, sem o meu desejo e sem o meu contributo, há ideias desse género a girar em mim. Não sei minimamente se são verdadeiras ou falsas, mas sei que existem e podem ser expressas, se eu não as reprimir por causa de um qualquer preconceito. Mas os preconceitos incapacitam e deterioram a manifestação plena da vida psíquica, sobre a qual sei demasiado pouco para poder corrigi-la com um saber superior. Ultimamente, a razão crítica fez, aparentemente, desaparecer a ideia da vida depois da morte, junto com muitas outras concepções místicas. Isto só foi possível porque as pessoas, hoje em dia, se identificam, na maior parte, exclusivamente com a sua consciência, e imaginam que são apenas aquilo que sabem de si próprias. Quem quer que faça uma mínima ideia da psicologia pode facilmente dar-se conta de como este conhecimento é limitado. O racionalismo e o doutrinarismo são a doença da nossa época; fazem de conta que sabem tudo. Mas ainda há-de descobrir-se muitas coisas que, hoje, da nossa perspectiva limitada, designamos como impossíveis. Os nossos conceitos de espaço e de tempo só têm uma validade aproximada e deixam, portanto, em aberto um vasto campo de desvios relativos e absolutos. Tendo em consideração tais possibilidades, eu empresto aos mitos maravilhosos da alma um ouvido atento e observo as coisas que me acontecem, independentemente de se ajustarem aos meus pressupostos teóricos ou não."




"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Páginas 299 e 300

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