domingo, 2 de agosto de 2020

Mesmo que só um instante

"Mesmo que só um instante, desejamos
descansar. Sonhamos entregar-nos.
Não sei, mas em qualquer lugar
desde que a vida deponha seus espinhos.

Um instante, talvez. E regressamos
atrás, ao passado enganoso que se fecha
sobre o temor actual, que dia a dia
outrora também conhecemos.

Esquece-se
depressa, esquece-se o suor de tantas noites,
a ânsia nervosa que amarga o melhor ganho,
levando-nos a ele rendidos de antemão
sem mais que esse vazio de chegar,
a indiferença estranha do que já está feito.
De modo que cada vez que este temor
o eterno temor que possui nosso rosto
nos assalta, gritamos invocando o passado
- invocando um passado que jamais existiu -

para crer ao menos que em verdade vivemos
e a vida é mais do que esta pausa imensa,
vertiginosa,
quando a própria vocação, aquilo
sobre que fundamos um dia o nosso ser,
o nome que demos à nossa dignidade
vemos que não era mais
que um desolador desejo de esconder-se."



"Antologia Poética" de Jaime Gil de Biedma
Edições Cotovia
2ª edição, 2003
Páginas 21 e 23 

Sem comentários:

Enviar um comentário