domingo, 22 de janeiro de 2023

"Misericórdia" de Lídia Jorge (IV)

 
"Este é o meu lugar de exílio. Aqui me depositaram a meu pedido e por minha livre vontade, vinda da casa dos meus pais, e onde não mais voltarei, também por minha livre determinação. A vida é um arco, tem o seu começo e o seu fim, inicia-se num berço, faz o seu voo ascendente, e a partir de certa altura a curva desce até nos entregarmos à terra, de novo dentro de uma caixa de madeira que em nada difere de um berço."



Lídia Jorge em "Misericórdia"
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Novembro de 2022
Página 119

"Misericórdia" de Lídia Jorge (III)

 
"No conjunto, os teus livros são um vale escavado num deserto repleto de gente pobre. Rotos, descalços, abandonados, loucos, emigrados sem eira nem beira, imigrantes sem lugar onde cair mortos, raparigas feias que todos enjeitam, pelintras de todo o jeito, gente assassinada, gente que se atira à água para morrer, para o destino, em troca, lhes salvar os filhos, gente sem religião, sem abrigo, sem pátria, sem casa, sem modos nem figura. E eu só me pergunto porque te sentes atraída por esse tipo de criaturas. Figuras que não se levantam do chão. Miseráveis entre os miseráveis. Ora diz-me, quem gosta de lidar com a vida dos miseráveis? Os teus personagens parecem os esfarrapados que São Francisco de Assis visitava. Se ao menos escrevesses sobre São Francisco, mas não, tu escreves sobre os pobres de quem ninguém conhece o nome. Como tua mãe, pergunto-me porque escreves sobre esse tipo de figuras e não sobre as outras, as que vencem, as que ficam, as que toda a gente já conhece, os fortes, os bons, os heróis, os santos, os válidos ..."



Lídia Jorge em "Misericórdia"
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Novembro de 2022
Página 111

"Misericórdia" de Lídia Jorge (II)

 "Não é possível dispor de um objecto secreto onde tudo é visto e revisto, pesquisado e inventariado pelos olhos dos outros, pois aqui onde me encontro nenhum canto é meu, nenhum objecto me pertence, até mesmo o meu corpo não é mais um recanto privado da minha alma como antes era. Só os meus pensamentos me pertencem, só esses não são vigiados, e ainda assim, há quem tente adivinhar os motivos por que falo ou por que estou calada."



Lídia Jorge em "Misericórdia"
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Novembro de 2022
Página 70

"Misericórdia" de Lídia Jorge (I)

 
"Mas eu tenho este feitio, quero demais, mando demais, amo demais alguma coisa que não alcanço, e quando não a atinjo, procuro desesperadamente transformar o que existe de modo a aproximar o objecto defeituoso da realidade inalcançável. Não sei onde colocar os meus pensamentos que são demasiado amplos para o vaso da minha cabeça e para o volume do meu coração."



Lídia Jorge em "Misericórdia"
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Novembro de 2022
Página 43

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Por Todos Os Poros

 "Alguém disse que a beleza entra em nós por todos os
poros, sobretudo quando sofremos. Entra ao mesmo
tempo que a raiva com as suas cores e o viço da repulsa.
O mundo ferido é mais belo e confere-nos o perigo da
santidade.

É bela a mácula que um punhado de pardais deixa no sol
do meio-dia. São belas as lajes do sol porque as turbam
os pardais - e cantam a manhã tíbia das coisas, e partem
cristais nos poços do silêncio.

Um amante é mais belo quando nos deixa. A agulha de
uns olhos cruéis cinge todos os detalhes com que o nosso
amor se tece."



Andreia C. Faria em "Canina"
Edições Tinta-da-China
1ª edição, Julho de 2022
Página 78

Parte Incerta

 
"Já nem sei onde moras, onde fica
a tua porta, nudez corredia a que fui
sentinela, intrusa tão nítida
como as coisas recortadas pelo fogo.
Como deve ser quem espera
do amor uma relíquia magra,
como deve ser quem guarda
ossos, cerrados horizontes,
a elegância ferida.
Póstuma e de boa imprensa, já te ofereço
o meu cadáver, nó de leite
no azedo da memória, ou os meus seios
que se abrigam dobrados na nudez.
Nunca soube de onde vinha
tanta esperança, um poço
acendendo desde o fundo todo o ar,
e a minha boca tua imunda fera
morta, dividida ao estertor,
como em noites muito exactas
de calor nas mãos se racha
a madeira de um móvel que estimas."



Andreia C. Faria em "Canina"
Edições Tinta-da-China
1ª edição, Julho de 2022
Página 69

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

 "Morrer
é talvez mudar de luz
como quem muda os lençóis
ou sacode
na erva o calor
de mantas sombrias."



Andreia C. Faria em "Canina"
Edições Tinta-da-China
1ª edição, Julho de 2022
Página 51

Enquanto escrevo esta mensagem

 "o telemóvel vibra
como um pássaro que batesse as asas
entre as minhas mãos.
Apiedo-me dele, da luz morna que expele
como um hálito, da sofreguidão
de cria sondando-me
os dedos à procura de alimento.
Enraízo-me nele, na sua
lógica de pios e de palhas vãs,
e enraíza-se ele nos meus sonhos, trazendo
luas e marés às minhas mãos,
terra rara onde pousar palavras,
doces escoriações na alma por cada
homem que me lembra
e esquece
lembra
e esquece."



Andreia C. Faria em "Canina"
Edições Tinta-da-China
1ª edição, Julho de 2022
Página 40

Impraticável

 "Digo que sou uma mulher
e como tal acedo à espécie pelo seio, pelas partes
mais sensíveis.
Pelo espinho quase rouco, impraticável
e os sentidos uma claridade fria.
Mas nunca soube como fere o flanco
a cicatriz
tão funda que a mulher concede.
As minhas unhas
como pequeninos seixos na doce podridão da terra
sempre se livram de tanger metais."



Andreia C. Faria em "Canina"
Edições Tinta-da-China
1ª edição, Julho de 2022
Página 10

domingo, 1 de janeiro de 2023

Modinha extravagante

 
"Romântica, a poeta
dizia estas coisas:
se me quiseres, quer-me inteira. *
Eu não. 
Ama-me em pedaços
que não me importa.
Descobre primeiro um pé com alvoroço.
Depois uma mão subtil dias e dias.
Dez anos de carícias
saboreando com a língua
a penugem da nuca
e meio século
de exploração equinocial
nas dunas do umbigo.
Quando vislumbrares do joelho
a sua imponente epifania
seremos velhos,
o temível império
terá caído
e um novo
estará afiando
as suas garras
no berço.
Terá passado a revolução
sem nos darmos conta.
Ama-me apenas um mamilo
perfeito enigma
onde por fim
se perde
a vida inteira."

* De um poema de Dulce María Loynaz (Cuba, 1902-1977)


Márgara Russotto em "As Quatro Estações da Poesia"
Edições Afrontamento, Julho de 2019
Páginas 61 e 63