domingo, 22 de janeiro de 2023

"Misericórdia" de Lídia Jorge (III)

 
"No conjunto, os teus livros são um vale escavado num deserto repleto de gente pobre. Rotos, descalços, abandonados, loucos, emigrados sem eira nem beira, imigrantes sem lugar onde cair mortos, raparigas feias que todos enjeitam, pelintras de todo o jeito, gente assassinada, gente que se atira à água para morrer, para o destino, em troca, lhes salvar os filhos, gente sem religião, sem abrigo, sem pátria, sem casa, sem modos nem figura. E eu só me pergunto porque te sentes atraída por esse tipo de criaturas. Figuras que não se levantam do chão. Miseráveis entre os miseráveis. Ora diz-me, quem gosta de lidar com a vida dos miseráveis? Os teus personagens parecem os esfarrapados que São Francisco de Assis visitava. Se ao menos escrevesses sobre São Francisco, mas não, tu escreves sobre os pobres de quem ninguém conhece o nome. Como tua mãe, pergunto-me porque escreves sobre esse tipo de figuras e não sobre as outras, as que vencem, as que ficam, as que toda a gente já conhece, os fortes, os bons, os heróis, os santos, os válidos ..."



Lídia Jorge em "Misericórdia"
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Novembro de 2022
Página 111

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