terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Parte Incerta

 
"Já nem sei onde moras, onde fica
a tua porta, nudez corredia a que fui
sentinela, intrusa tão nítida
como as coisas recortadas pelo fogo.
Como deve ser quem espera
do amor uma relíquia magra,
como deve ser quem guarda
ossos, cerrados horizontes,
a elegância ferida.
Póstuma e de boa imprensa, já te ofereço
o meu cadáver, nó de leite
no azedo da memória, ou os meus seios
que se abrigam dobrados na nudez.
Nunca soube de onde vinha
tanta esperança, um poço
acendendo desde o fundo todo o ar,
e a minha boca tua imunda fera
morta, dividida ao estertor,
como em noites muito exactas
de calor nas mãos se racha
a madeira de um móvel que estimas."



Andreia C. Faria em "Canina"
Edições Tinta-da-China
1ª edição, Julho de 2022
Página 69

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