domingo, 26 de novembro de 2017

"Há, de facto, uma proporção ideal entre a quantidade de clareza e a quantidade de obscuridade que um verso deverá ter para manter a ligação aos homens. Se esta proporção não for atingida, o verso desliga-se dos homens (como o barco se desliga do cais quando o marinheiro corta a corda que o amarra). Se um verso não se liga a pelo menos um homem, ficará apenas nas mãos de quem o escreveu, o que poderá não ser suficiente.
Claro está que na poesia não se trata de falar com a velha avó sobre o frio que faz de noite. Como dissemos, há uma clareza exigida ao verso, mas também se exige uma certa obscuridade."

Gonçalo M. Tavares  em "O Senhor Eliot e as conferências"

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Adília Lopes 💗

Thomas Feiner & Anywhen - All that Numbs You


"Chuvosa tarde, eléctricos me doem.
O céu um só, por toldo sobre o mundo,
Aviões o cortam, facas sobre chumbo;
Postais lacrimejantes me comovem.
 
Além, do vinte e oito, descem duas
Colinas de um sagrado coração
Vindo da Graça, pela Sé, visão
Do céu caída, a Virgem pelas ruas.
 
Convalescendo os lábios de batom,
Agulhas na calçada me apontou
E sobre os seus dois círios caminhou
E a graça ao vir a mim me deu frisson.
 
Fugi-lhe. Acoitei-me num café.
Fiquei, invés, a ideá-la, anti-Tomé."
 
 
Daniel Jonas em "Canícula"

sábado, 18 de novembro de 2017

"Há quem diga que as palavras são coisas mastigáveis como os alimentos, e há ainda quem entre em pormenores como quem entra numa sala, dizendo que se todas as palavras são mastigáveis e transportáveis pela língua de um lado para o outro da boca, nem todas alimentam os homens; só certos versos o farão.
Poderão os versos de grandes poetas alimentar um homem durante alguns dias, senhor Breton? Eis uma pergunta. Possuirão os versos, questiono, qualidades de energia surpreendentes, como se tivessem componentes semelhantes a proteínas e glícidos?
Sabe-se já, há muitos anos, que certos produtos se decompõem em outros produtos mais pequenos, libertando energia nesse processo. Resta saber o que sucede quando um verso se decompõe nos seus constituintes; quando depois de balançar na boca que o diz, desce ao estômago e se divide.
(...)
Em que se dividirá o verso? Em letras? Em outra coisa? E o que resultará dessa decomposição? Que energia será aí libertada? Será uma energia inútil, ou, pelo contrário, será algo capaz de influenciar os nossos actos? A energia de decomposição de um verso será capaz de fortalecer o estômago e a vontade?"
 
Gonçalo M. Tavares  em "O Senhor Breton e a entrevista"

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Ainda Não Foi Hoje Que Choveu

"I
A chuva anda por longe, entretida
a causar inundações na Indonésia.

A chuva dir-se-ia que por estes lados
deixou de ser possível
e que a morte à míngua de água
traz debaixo de olho a Terra Quente.
 
 
II
Hoje acumularam-se umas quantas nuvens
e chegou a parecer que choveria.
As pessoas punham, desassossegadas,
olhos e rogos no céu.
 
Mas logo o vento mudou
e dispersou a esperança, enxotou-a
como se enxota um velho cão vadio
que vem coçar as pulgas para junto de nós.
 
 
III
Um velho de sacho ao ombro
segue cismando em direcção à horta
- lugar onde pertencem os dias que lhe restam - ,
cruza-se comigo no caminho.
 
Com modos que já só a aldeia sabe,
levanta o chapéu e diz com desalento:
ainda não foi hoje que choveu.
 
E é o seu próprio olhar que vai chovendo
conformação sobre a pesada, opaca
poeira do caminho."


A.M. Pires Cabral  em "Gaveta do Fundo"

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

"Isto filhos, a poesia e a cozinha são irmãs" (XIX)

 
Risotto de espargos e ervilhas. Raspa de limão a perfumar. 💗😋😋💗

Nils Landgren Funk Unit - House Party


Espanta-Espíritos

"Amanhã tudo será pior
ainda, eu sei: o hábito, a inércia,
o sem remédio da vida - tão pouco
haverá a salvar.
 
Por toda a cidade os desconhecidos
subirão outro degrau para o escuro
da noite, e a memória será talvez
um remorso:
 
aquela manhã de sol
na varanda, o espanta-espíritos
com peixes de alumínio num rosário
de contas profanas.
 
Ainda o tens? Ainda canta,
de madrugada, se o vento sopra
do mar?
 
Não importa. Foi sempre de menos
o muito que pedimos
 
e a parte que tivemos."

Rui Pires Cabral em "Capitais da Solidão"

Sintra e o seu Castelo (IV)

Outono

"Outono.
(A palavra é cansada ...)
Tudo a cair de sono,
Como se a vida fosse assim, parada!
 
Nem o verde inquieto duma folha!
O próprio sol, sem força e sem altura,
Olha
Dum céu sem luz e levedura.
 
Fria,
A cor sem nome duma vinha morta
Vem carregada de melancolia
Bater-me à porta."
 
Miguel Torga  em "Diário I"

Lawrence Ferlinghetti, A Poesia como Arte Insurgente

sábado, 4 de novembro de 2017

"a areia fria da manhã que cheira
a cardos a maresia
 
as pegadas disformes
impressas pela multidão rumorosa da véspera
ao fundo o som do mar
 
os nossos pés miúdos mal
sarados da ferroada de um peixe-aranha
enfiados
nas sandálias de borracha
 
as dunas rodeando a baía
as primeiras toalhas empoladas pelo vento
as riscas recolhidas dos toldos
 
a gaivota branca o escaravelho preto
o peixe na lota prateado
 
em espasmos graves no topo
do balde
a abrir e a fechar a boca num turvo sermão
que ninguém escuta."
 
Miguel Manso  em "Persianas"

The National - The System Only Dreams in Total Darkness


Exercício Espiritual

"Ouço-os de todo o lado.
Eu é que sou assim,
Eu é que sou assado,
Eu é que sou o anjo revoltado,
Eu é que não tenho santidade ...
 
Quando, afinal, ninguém
Põe nos ombros a capa da humildade,
E vem."

Miguel Torga  em "Diário I"

"Isto filhos, a poesia e a cozinha são irmãs" (XVIII)

 
Millet de alecrim. Couve de bruxelas em cama de couve roxa assada e alho-francês. Pêra recheada com puré de feijão preto e cebola roxa. 💗😋😋💗

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

TAROT DE MARSEILLE para Alejandro Jodorowsky

"dentro de um café na Bastilha
anódino
a uma mesa do fundo bruxuleia a cada quarta
um oráculo
rodeado de respirações
 
na algibeira de um casaco negro envolto
numa bolsa lilás
incerto baralho blinda um coração
antigo
 
e na voz preta e branca
de Jung
e nos volumes obscuros em obscuros alfarrabistas
também no logro de burlões
de entre os quais os mais hábeis terão assento
mediático
 
um baralho de 78 cartas range no precipício
pede sossegos meditações
procura que o enxerguemos através não
da crendice
mas de um persistente estudo
 
investigações que demoram uma vida
ou mais
e por tão fundo que vão não extinguem
dilatam
 
como dilata a noção de quem aprende
a cair
são estas cartas aliadas dos meus versos
desde o primeiro fôlego
decifro-as como destapo os vocábulos e soçobro
a cada sílaba
que o desconhecido articula"

Miguel Manso  em "Persianas"