sexta-feira, 22 de maio de 2020

"Todos sabemos que há fome no mundo. Todos sabemos que há oitocentos ou novecentos milhões de seres humanos - os cálculos oscilam - que passam fome todos os dias. Todos lemos ou ouvimos essas estimativas - e não sabemos ou não queremos fazer nada com elas. Se houve tempos em que o testemunho, o relato mais cru possível, serviu, hoje já não serve.
Que resta então? O silêncio?
(...)
Este livro suscita muitos problemas. Como contar o que é diferente, o mais remoto? É muito provável que o leitor, a leitora, conheça alguém que tenha morrido de cancro, sofrido um ataque violento, perdido o amor, o trabalho, o orgulho; é muito improvável que conheça alguém que viva com fome, que viva a ameaça de morrer de fome. Tantos milhões de pessoas que são o que há de mais remoto: aquilo que não sabemos - nem queremos - imaginar.
(...)
E, sobretudo, como lutar contra a degradação das palavras? As palavras «milhões-de-pessoas-passam-fome» deveriam significar alguma coisa, produzir certas reacções. Mas, em geral, as palavras já não têm esse efeito. Talvez acontecesse algo, se pudéssemos devolver o sentido às palavras."



"A Fome" de Martín Caparrós
Temas e Debates, Março de 2016
Páginas 11 e 12

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