"As mulheres da família sempre tiveram um jeito quase póstumo
de existir: guardar o lume
em silêncio, comer depois de
servir os outros, morrer primeiro.
Saíam à hora de ponta do destino
para lerem os caminhos perdidos
e coleccionavam a abdicação
em caixinhas de folha, entre bilhetes
caducados ou dentes de infância alheias.
Esperavam a vida toda por uma vida
próxima, de alma presa a alfinetes
no vestido preferido para o enterro,
os passos medidos nas suas varandas
a dar para o fim do mundo.
Retomo-lhes às vezes os gestos
neste meu exílio inventado,
mas acaba aqui: vou encher de corpo
a sombra, mesmo que nem tempo
me reste já para a pesar."
"Cerveja & Neve" de Inês Dias
Edições Averno, Setembro de 2020
Página 18