"Há palavras que são sombras de árvores ou um bálsamo da terra,
um pressentimento de espuma,
um incêndio do tacto,
uma reverência ao desconhecido.
Amo as palavras que são às vezes sonâmbulos cavalos,
satélites de granito,
raparigas cegas no fundo das casas,
veias de uma estrela submarina.
Como não amá-las pela brisa
se são pétalas de um clamor silencioso
ou anjos sossegados dormindo sobre a terra
ou lúcidas e ébrias, majestosas e puras,
magníficas como um dorso recamado de estrelas,
intacta revelação de invioladas luas?
Desconfio das palavras, mas às vezes são leves, musicais,
aves que planam sobre uma cidade branca,
ilhas mágicas, selados vasos, cordeiros recém-nascidos,
caravanas vermelhas, armadilhas de cristal,
amoroso tremor da matéria terrestre.
Como um boi nocturno das águas eu procuro
essas guitarras plantadas nas plantas
que através de eclipses e da distância
erguem uma árvore de música ou uma pirâmide
ou as lianas vivas que me defendem dos abismos.
Como estátuas de ar as palavras levantam-se
na harmonia delirante do nómada do deserto.
Quer sejam suspiros entre arbustos ou sonâmbulas melodias
estão sempre à altura dos seus próprios desejos.
Quer o cérebro sangre ou a terra estremeça
o seu cerimonial é inesgotável, as suas relíquias vivas.
São abelhas ou astros que buscam alimento
nos ninhos de amêndoa ou nos espelhos da lua?
Amo as palavras, acredito nos seus cristais secretos,
nos seus cavalos subterrâneos, nos seus densos diamantes.
Escrevo-as com minucioso ardor entre nascentes e sombras,
sei que são anjos de argila, antiquíssimos arqueiros
que disparam as flechas de erva sobre estrelas vivas."
António Ramos Rosa em "Obra Poética II"
Assírio & Alvim
1ª edição, Outubro de 2020
Páginas 160 e 161