terça-feira, 26 de dezembro de 2017
"A morte de um livro, por exemplo. Ao chegar ao fim de um livro, que ao longo das suas páginas me deu tanto prazer, tanta reflexão, tanta vida, invade-me um sentimento que não sei precisar. A morte é sempre uma falta.
(...)
(...)
Mas o que é que morre, o que é que me falta quando chego ao fim de um livro? O livro jaz diante de mim como sempre esteve antes de iniciar a sua leitura, contudo já não é o mesmo livro anónimo, já não é um livro, mas aquele livro determinado, e determinado pelo meu tempo de leitura. O livro já não é a lombada, a encadernação, o volume de folhas, a gramagem do papel, os caracteres e a sua composição página a página. O livro deixou de ser um mero objecto. O livro é uma amálgama de coisa e eu-mesmo. Este eu-mesmo é duas mortes: a minha e a do autor. O fim do tempo que demorei a ler o livro, o fim do tempo que ele demorou a escrevê-lo."
Paulo José Miranda em "Um prego no coração"
quinta-feira, 7 de dezembro de 2017
domingo, 26 de novembro de 2017
"Há, de facto, uma proporção ideal entre a quantidade de clareza e a quantidade de obscuridade que um verso deverá ter para manter a ligação aos homens. Se esta proporção não for atingida, o verso desliga-se dos homens (como o barco se desliga do cais quando o marinheiro corta a corda que o amarra). Se um verso não se liga a pelo menos um homem, ficará apenas nas mãos de quem o escreveu, o que poderá não ser suficiente.
Claro está que na poesia não se trata de falar com a velha avó sobre o frio que faz de noite. Como dissemos, há uma clareza exigida ao verso, mas também se exige uma certa obscuridade."
Gonçalo M. Tavares em "O Senhor Eliot e as conferências"
Gonçalo M. Tavares em "O Senhor Eliot e as conferências"
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
"Chuvosa tarde, eléctricos me doem.
O céu um só, por toldo sobre o mundo,
Aviões o cortam, facas sobre chumbo;
Postais lacrimejantes me comovem.
Além, do vinte e oito, descem duas
Colinas de um sagrado coração
Vindo da Graça, pela Sé, visão
Do céu caída, a Virgem pelas ruas.
Convalescendo os lábios de batom,
Agulhas na calçada me apontou
E sobre os seus dois círios caminhou
E a graça ao vir a mim me deu frisson.
Fugi-lhe. Acoitei-me num café.
Fiquei, invés, a ideá-la, anti-Tomé."
Daniel Jonas em "Canícula"
sábado, 18 de novembro de 2017
"Há quem diga que as palavras são coisas mastigáveis como os alimentos, e há ainda quem entre em pormenores como quem entra numa sala, dizendo que se todas as palavras são mastigáveis e transportáveis pela língua de um lado para o outro da boca, nem todas alimentam os homens; só certos versos o farão.
Poderão os versos de grandes poetas alimentar um homem durante alguns dias, senhor Breton? Eis uma pergunta. Possuirão os versos, questiono, qualidades de energia surpreendentes, como se tivessem componentes semelhantes a proteínas e glícidos?
Sabe-se já, há muitos anos, que certos produtos se decompõem em outros produtos mais pequenos, libertando energia nesse processo. Resta saber o que sucede quando um verso se decompõe nos seus constituintes; quando depois de balançar na boca que o diz, desce ao estômago e se divide.
(...)
Em que se dividirá o verso? Em letras? Em outra coisa? E o que resultará dessa decomposição? Que energia será aí libertada? Será uma energia inútil, ou, pelo contrário, será algo capaz de influenciar os nossos actos? A energia de decomposição de um verso será capaz de fortalecer o estômago e a vontade?"
Gonçalo M. Tavares em "O Senhor Breton e a entrevista"
quinta-feira, 16 de novembro de 2017
Ainda Não Foi Hoje Que Choveu
"I
A chuva anda por longe, entretida
a causar inundações na Indonésia.
A chuva dir-se-ia que por estes lados
deixou de ser possível
e que a morte à míngua de água
traz debaixo de olho a Terra Quente.
II
Hoje acumularam-se umas quantas nuvens
e chegou a parecer que choveria.
As pessoas punham, desassossegadas,
olhos e rogos no céu.
Mas logo o vento mudou
e dispersou a esperança, enxotou-a
como se enxota um velho cão vadio
que vem coçar as pulgas para junto de nós.
III
Um velho de sacho ao ombro
Um velho de sacho ao ombro
segue cismando em direcção à horta
- lugar onde pertencem os dias que lhe restam - ,
cruza-se comigo no caminho.
Com modos que já só a aldeia sabe,
levanta o chapéu e diz com desalento:
ainda não foi hoje que choveu.
E é o seu próprio olhar que vai chovendo
conformação sobre a pesada, opaca
poeira do caminho."
A.M. Pires Cabral em "Gaveta do Fundo"
A.M. Pires Cabral em "Gaveta do Fundo"
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
quinta-feira, 9 de novembro de 2017
Espanta-Espíritos
"Amanhã tudo será pior
ainda, eu sei: o hábito, a inércia,
o sem remédio da vida - tão pouco
haverá a salvar.
Por toda a cidade os desconhecidos
subirão outro degrau para o escuro
da noite, e a memória será talvez
um remorso:
aquela manhã de sol
na varanda, o espanta-espíritos
com peixes de alumínio num rosário
de contas profanas.
Ainda o tens? Ainda canta,
de madrugada, se o vento sopra
do mar?
Não importa. Foi sempre de menos
o muito que pedimos
e a parte que tivemos."
Rui Pires Cabral em "Capitais da Solidão"
Rui Pires Cabral em "Capitais da Solidão"
Outono
"Outono.
(A palavra é cansada ...)
Tudo a cair de sono,
Como se a vida fosse assim, parada!
Nem o verde inquieto duma folha!
O próprio sol, sem força e sem altura,
Olha
Dum céu sem luz e levedura.
Fria,
A cor sem nome duma vinha morta
Vem carregada de melancolia
Bater-me à porta."
Miguel Torga em "Diário I"
sábado, 4 de novembro de 2017
"a areia fria da manhã que cheira
a cardos a maresia
as pegadas disformes
impressas pela multidão rumorosa da véspera
ao fundo o som do mar
os nossos pés miúdos mal
sarados da ferroada de um peixe-aranha
enfiados
nas sandálias de borracha
as dunas rodeando a baía
as primeiras toalhas empoladas pelo vento
as riscas recolhidas dos toldos
a gaivota branca o escaravelho preto
o peixe na lota prateado
em espasmos graves no topo
do balde
a abrir e a fechar a boca num turvo sermão
que ninguém escuta."
Miguel Manso em "Persianas"
Exercício Espiritual
"Ouço-os de todo o lado.
Eu é que sou assim,
Eu é que sou assado,
Eu é que sou o anjo revoltado,
Eu é que não tenho santidade ...
Quando, afinal, ninguém
Põe nos ombros a capa da humildade,
E vem."
Miguel Torga em "Diário I"
Miguel Torga em "Diário I"
"Isto filhos, a poesia e a cozinha são irmãs" (XVIII)
Millet de alecrim. Couve de bruxelas em cama de couve roxa assada e alho-francês. Pêra recheada com puré de feijão preto e cebola roxa. 💗😋😋💗
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
TAROT DE MARSEILLE para Alejandro Jodorowsky
"dentro de um café na Bastilha
anódino
a uma mesa do fundo bruxuleia a cada quarta
um oráculo
rodeado de respirações
na algibeira de um casaco negro envolto
numa bolsa lilás
incerto baralho blinda um coração
antigo
e na voz preta e branca
de Jung
e nos volumes obscuros em obscuros alfarrabistas
também no logro de burlões
de entre os quais os mais hábeis terão assento
mediático
um baralho de 78 cartas range no precipício
pede sossegos meditações
procura que o enxerguemos através não
da crendice
mas de um persistente estudo
investigações que demoram uma vida
ou mais
e por tão fundo que vão não extinguem
dilatam
como dilata a noção de quem aprende
a cair
são estas cartas aliadas dos meus versos
desde o primeiro fôlego
decifro-as como destapo os vocábulos e soçobro
a cada sílaba
que o desconhecido articula"
Miguel Manso em "Persianas"
Miguel Manso em "Persianas"
quinta-feira, 26 de outubro de 2017
quarta-feira, 25 de outubro de 2017
domingo, 22 de outubro de 2017
"Isto filhos, a poesia e a cozinha são irmãs" (XVII)
Salada de quinoa com cogumelos e romã. Almôndegas de grão e coco em creme de rosas e rebentos de soja. Batata assada no forno. 💗😋😋💗
Paradigma
"Hoje, de manhã, lavei a cara
com quatro sabonetes diferentes.
Cada um cheirava a uma estação do ano
e cada um prometia uma sensação nova,
uma mudança radical na nossa pele.
À noite vi-me ao espelho:
a minha cara era a mesma de sempre."
Paulo Assim em "Celulose"
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
terça-feira, 17 de outubro de 2017
A Máscara
"Um homem com uma máscara de gás na cara.
O rosto disforme. Como se fosse um monstro.
Ele faz depois os gestos de um chimpanzé. Põe as
mãos curvadas e simula os pequenos saltos e
movimentos do chimpanzé.
O plano abre-se. Vemos para quem ele está
a fazer aquilo. É para uma mulher. Uma mulher
muito velha. Moribunda; ligada a várias máquinas
e com soro a entrar no braço. Mesmo assim,
a velha mulher sorri, primeiro; depois ri, ri muito,
não consegue parar de rir. Só a vemos a rir, como
se tivesse perdido o controlo."
Gonçalo M. Tavares em "Short Movies"
domingo, 15 de outubro de 2017
sábado, 14 de outubro de 2017
Proema
"Às vezes, a poesia é a vertigem dos corpos e a
vertigem da sorte e a vertigem da morte;
o passeio, de olhos cerrados, à borda do
despenhadeiro
e a verbena nos jardins submarinos;
o riso que incendeia preceitos e santos
mandamentos;
a descida das palavras paraquedadas sobre os
areais da página;
o desespero que embarca num barco de papel e
atravessa,
durante quarenta noites e quarenta dias, o mar da
angústia nocturna e o pedregal da angústia diurna;
a idolatria do eu e a execração do eu e a
dissipação do eu;
o degolar dos epítetos, o enterro dos espelhos;
a compilação dos pronomes acabados de cortar no
jardim de Epicuro e no de Netzahualcoyotl;
o solo da flauta no terraço da memória e o baile
de chamas na cave do pensamento;
as migrações de miríades de verbos, asas e garras,
sementes e mãos;
os substantivos ósseos e cheios de raízes, plantados
nas ondulações da linguagem;
o amor do nunca visto e o amor do nunca ouvido
e o amor do nunca dito: o amor do amor.
Sílabas sementes"
Octavio Paz em "Árvore Adentro"
quinta-feira, 12 de outubro de 2017
Três Sonhos
"Vi-me num sonho de folhas caindo,
De lagos escuros num bosque perdido,
De tristes palavras ecoando -
Mas não sabia entender-lhes o sentido.
Vi-me num sonho de estrelas caindo,
De preces chorosas num olhar ferido,
De um sorriso que vinha ecoando -
Mas não sabia entender-lhes o sentido.
Como estrela caindo, folha tombando,
Assim me via num vai-vem perdido,
Eternamente esse sonho ecoando -
Mas não sabia entender-lhe o sentido."
Georg Trakl em "Outono Transfigurado"
Georg Trakl em "Outono Transfigurado"
domingo, 8 de outubro de 2017
Liberdade
"A minha estranha forma de ser livre!
Sei que o sou, por direito e vocação,
E sinto-me por vezes algemada
Apenas por ter alma e coração."
Soledade Summavielle em "Movimento de Asas"
sexta-feira, 6 de outubro de 2017
As maçãs
"Dantes as macieiras davam maçãs,
que eram guardadas em toalhas de linho.
E só haviam umas que eram melhores,
que eram as do quintal do vizinho!
Agora só há maçãs «golding» ou «starking»,
agora só há maçãs «normalizadas».
E eu não me admiro que, em vez de redondas,
um dia destes passem a ser quadradas!"
Jorge Sousa Braga em "Herbário"
Jorge Sousa Braga em "Herbário"
segunda-feira, 2 de outubro de 2017
domingo, 1 de outubro de 2017
"Isto filhos, a poesia e a cozinha são irmãs" (XVI)
Cesto grego de estufado de feijoca e coentros a perfumar. Batata parisiense assada com ervas em cama de couve roxa. Caviar de beringelas, cogumelos e alho-francês. 💗😋😋💗
terça-feira, 26 de setembro de 2017
Mãe e Filho
"O poeta
bebe a água do Tigre e do Eufrates,
passa a noite sem dormir e às vezes tem caspa.
e nos salões tem reservado o seu lugar
e os raposos lambem-lhe a mão antes de fugir espantados
pelo áspero som do seu verso.
De puas, de facas, é a pele do poeta.
Com o despertar da luz sangra a pele do poeta.
Às vezes, desasado, silencioso,
deserto dos pés à cabeça,
anoitece de bruços na sua cama.
A inveja do poeta é amarela,
o seu sonho é azul como um céu sem guardas.
Por vezes devora-se a si mesmo, corta-se aos pedaços, reparte-se,
olha-se ao espelho, cospe, chora
sobre o mosaico da infância.
O poeta envelhece, engorda, arrota,
e ocasionalmente o poeta morre.
A poesia, que é imortal, olha-o de cima,
cega de luz e alheia como uma estrela antiga."
Poema de Piedad Bonnett (1951)
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
Poema de Piedad Bonnett (1951)
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
domingo, 24 de setembro de 2017
Ninho das Águias
"Já eras misteriosa desde então
e nos mapas antigos chamavam-te Lissabona.
À distância contava as tuas sete colinas
como a Roma dos Césares, e repetia-me
as histórias de navegadores e as tuas lendas de conquista.
Apesar de nos separar a imensidade
do mar Atlântico, desde a minha carteira de colégio
acariciava a curvatura do globo terráqueo,
jurando que um dia chegaria às tuas margens.
Tantas vezes cortejada e celeste
apareceste aos meus olhos num dia de verão
de 1984, quando te vi do quarto
do Ninho das Águias,
um hotel estreito e suicida
que se persigna no monte de S. Jorge
de cada vez que Lisboa amanhece.
Um mapa durante dois anos dobrado e desdobrado
ardeu de véspera e de espera
sobre milhares de degraus, ardeu sobre as praças,
sobre a constante inclinação
das suas ruas, sobre o seu soçobrar marinho,
e atiramo-lo de uma ponte
para que seja o acaso a única bússola a orientar-nos.
Tento olhar os dias desde então
como se estivesse a uma janela do quarto
do hotel do Ninho das Águias,
vendo pela primeira vez como amanhece
a fragrante, a profunda, a ondulada
cidade de Lisboa."
Poema de Ramon Cote Baraibar (1963)
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
Poema de Ramon Cote Baraibar (1963)
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
terça-feira, 19 de setembro de 2017
Conto
"Pergunto-me: porque escrevo poesia?
E desde algum lugar do misterioso bosque
(de outro conto que em vão estou tratando de escrever neste poema)
responde o lobo
movendo socrático a peluda cauda:
- Para melhor te conhecer"
Poema de Rómulo Bustos Aguirre (1954)
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
domingo, 17 de setembro de 2017
O Homem Morto de Brooklyn
"Por trás do inverno de Nova Iorque
Que traz para os vidros
Um branco da Lapónia,
Alguns solitários
São encontrados mortos
Em frente de um televisor aceso.
Enquanto o homem se ajeita
Ao grande recinto da morte,
A voz de um modelo
Anuncia um cruzeiro pelas águas do Caribe
Ou o estado das estradas no Nebrasca.
Ao inspector,
Ao serralheiro,
À porteira do edifício,
Aos encarregados da autópsia,
Não deixa de os encher de melancolia
O televisor aceso
E a voz áspera
Que anuncia o fim da emissão."
Poema de Juan Manuel Roca (1946)
Da antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
sábado, 16 de setembro de 2017
Deus e Tu
"No princípio eram a noite e o caos.
Veio Deus e criou os céus e a terra
e a luz e o dia e o homem.
Depois deteve-se, pensou um instante:
fez-te a ti.
E olhou-te fixamente, fixamente ...
teve medo e disse para consigo:
«Eram mais seguros a noite e o caos»
«Eram mais seguros a noite e o caos»
Poema de Jorge Valencia Jaramillo
Da antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
Da antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
"Não me restou outro remédio senão inventar a minha própria teoria. Teoria filosófica e absurda, que menciono aqui por simples curiosidade. Dei comigo a pensar que, de acordo com Empédocles, os quatro elementos primordiais da Natureza são o ar, a água, a terra e o fogo. Todos eles estão vinculados à origem da vida e à sobrevivência da nossa espécie. Com a ar estamos em contacto permanente, visto que o respiramos, o expelimos, o climatizamos. Com a água também, dado que a bebemos, nos lavamos com ela e fruímos do prazer de nadar ou de andar de barco. Com a terra igualmente, pois caminhamos sobre ela, cultivamo-la, modelamo-la com as nossas mãos. Mas com o fogo não podemos ter uma relação direta. O fogo é o único dos quatro elementos de Empédocles que nos arreda, pois a sua proximidade ou contacto faz-nos mal. A única maneira de nos relacionarmos com ele é através de um mediador. E esse mediador é o cigarro. O cigarro permite-nos comunicar com o fogo sem sermos consumidos por ele. O fogo está num extremo do cigarro e nós no oposto. O cigarro a arder é a prova de que esse contacto é estreito, embora seja a nossa boca que expele o fumo. Graças a essa invenção satisfazemos a nossa necessidade ancestral de nos religarmos aos quatro elementos naturais da vida. Tal relação era sacralizada pelos povos primitivos através de diversos cultos religiosos - terrestres ou aquáticos - e, no que respeita ao fogo, através de cultos solares. Adorou-se o Sol porque encarnava o fogo e os seus atributos, a luz e o calor. Secularistas e descrentes que somos, já não podemos render homenagem ao fogo a não ser por meio do cigarro. O cigarro seria assim um sucedâneo da antiga divindade solar, e fumar uma forma de perpetuar o seu culto. Uma religião, em suma, por mais banal que possa parecer. Daí que renunciar ao cigarro seja um acto grave e lancinante, como uma abjuração."
Julio Ramon Ribeyro em "A Palavra do Mudo"
Julio Ramon Ribeyro em "A Palavra do Mudo"
segunda-feira, 11 de setembro de 2017
Há Um Instante
"Há um instante do crepúsculo
em que as coisas brilham mais,
fugaz momento palpitante
de uma morosa intensidade.
Aveludam-se as ramagens,
lustram as torres o seu perfil,
burila uma ave a sua silhueta
sobre a alta luz de safira.
Muda a tarde, concentra-se
para o esquecimento do dia,
e penetra-a um dom suave
de melancólica quietude,
como se o orbe recolhesse
todo o seu bem e sua beleza,
toda a sua fé, toda a sua graça,
contra a sombra que virá ...
O meu ser desponta nessa hora
de misterioso florescer;
levo um crepúsculo na alma,
de sonhadora placidez.
Nele rebentam os botões
da ilusão primaveril,
e nele embriaga-me com aromas
de algum jardim que há mais além! ..."
Poema de Guillermo Valencia
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
Da Antologia "Um País Que Sonha - cem anos de poesia colombiana"
sábado, 9 de setembro de 2017
Canção Para Uma Guitarra Triste
"When everything we felt fails
and some music soft and distant sails
but it didn't sound like it did before
then I know I'm left with nothing more
than my own soul
when pretty pictures face back
but your coats aren't hanging on the rack
and blue water turns to
a place I can't get, a place that I can't get
in the room all I feel is the cold that you left
through the air all I see is your face full of blame
what's left to see
what's there to see
in the room all I feel is the cold that you left
through the air all I see is your face full of blame
what's left to see, what's left to see"
"Quando tudo o que sentíamos falha
e uma música suave e distante paira
mas já não soa como dantes
então sei que não me resta nada mais
do que a minha própria alma
quando fotografias bonitas se voltam para trás
mas os teus casacos não estão pendurados no bengaleiro
e a água azul se dirige para
um lugar que não posso visitar, um lugar que não posso
no quarto tudo o que sinto é o frio que deixaste
através do ar tudo o que vejo é a tua cara cheia de culpa
o que restará para ver
o que haverá para compreender
no quarto tudo o que sinto é o frio que deixaste
através do ar tudo o que vejo é a tua cara cheia de culpa
o que restará para ver, o que restará para ver"
"Noites de Atropelo" de Mark Kozelek
Tradução de Vasco Gato
Tradução de Vasco Gato
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