segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Ao nível

"Sensíveis as palavras que se ocultam
na seiva dos pinheiros   na ternura rugosa
das oliveiras mansas
de pé, sobre a côdea da terra.
Oh   como o poeta espera o alimento
que lhe não fora nunca prometido
qual às plantas do céu e às aves subterrâneas:
o esforço comedido   o vão alento
o grão de trigo germinando no ar.

Sensíveis as palavras insensíveis
na lâmina subtil de um horizonte
apenas desenhado um pouco mais acima
do fim do dia   do princípio da noite
na face do crepúsculo
que sem princípio ou fim se anunciasse.

O golpe exacto para a respiração."



"Poesia Completa" de Maria Alberta Menéres
Porto Editora
1ª edição, Março de 2020
Página 376
"Deus nasceu do coração dos homens, porque temos medo."

"Ter uma família é ter amor. Não é um laço biológico."

"Uma vez criança invisível ... Não se é igual às outras, é-se obrigatoriamente incomum, em desavença com a ordem do mundo. Não se pertence. Alvo de compaixão e simpatia, decerto, mas sem o código descodificador ninguém entenderá o que é ser dali, ter vivido ali, numa Casa onde as crianças correm e riem, mas também choram e perguntam o que é uma mãe."



"As Crianças Invisíveis" de Patrícia Reis
Publicações Dom Quixote
1ª edição, Maio de 2019
Página 109 e 112
"Vivemos uma vida normal, verdadeira, e no entanto - e por isso - temos aspirações. Terráqueos, conseguimos às vezes chegar tão longe como os deuses. Alguns elevam-se com a arte, outros com a religião; a maioria com o amor. Mas quando subimos também podemos despenhar-nos. Há poucas aterragens suaves. Podemos dar connosco aos saltos pelo chão, com uma força capaz de partir pernas, arrastados para uma qualquer via-férrea estrangeira. Todas as histórias de amor são potenciais histórias de dor. Se não no princípio, depois. Se não para um, para o outro. Às vezes para ambos.

Então porque aspiramos continuamente a amar? Porque o amor é o ponto onde se encontram a verdade e a magia. A verdade como na fotografia; a magia como no balonismo."



"Os Níveis da Vida" de Julian Barnes
Quetzal Editores
1ª edição, Novembro de 2013
Página 40

domingo, 29 de novembro de 2020

O Jogo dos Silêncios

"Aqui posso medir tudo o que digo
pelo eco em montanhas indomáveis:
toco a crosta da terra e de repente
logo um som me anuncia em claridade.
Ouvir fica para lá de qualquer voz
junto à fonte mais triste onde se guarde
uma pequena lágrima que esqueça
o que de mim se lembra em tenra idade."


"Poesia Completa" de Maria Alberta Menéres
Porto Editora
1ª edição, Março de 2020
Página 359
 
"Uma família é um homem e uma mulher. Ou dois homens, ou duas mulheres. Com mais crianças ou não. Às vezes, com outras pessoas. Uma família é sempre um retrato intrincado, cheio de pormenores que não são simples de reter. Coisas que fazem sentido para os adultos na sua ânsia de explicar o mundo. Não existe uma explicação simples para o que é uma família e adquiri-la por escrito, ordens de alguém, decisão de ser mãe ou pai e, em consequência, fazer de alguém tio ou avó, não significa entender que tecido amoroso se irá tecer e como se deve vestir esse amor que se pretende para sempre. Uma família não natural, M. tinha ouvido. Era uma expressão infeliz e, ao mesmo tempo, entendia que o não natural significava apenas que o amor não era espontâneo e obrigatório, não nascia do corpo, do crescer dentro de si."



"As Crianças Invisíveis" de Patrícia Reis
Publicações Dom Quixote
1ª edição, Maio de 2019
Página 23

domingo, 22 de novembro de 2020

Pelo Amor Saberemos de Nós

 
"O teu destino de árvore me toca.

Nasceste neste momento, para que eu te visse
com a serenidade maciça dos teus braços
e do entendimento.

Para que eu te visse,
todas as cores tomaram forma.
Dentro da minha alma, uma raiz esquecida
clama por ti!

Por isso entendo o instante de nascer,
a idade certa da aproximação.
Por isso estas palavras vão serenas:

o tempo de as dizer é a nossa eternidade."



"Poesia Completa" de Maria Alberta Menéres
Porto Editora
1ª edição, Março de 2020
Página 108

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Mulheres - Entre Renoir e Amadeo

Joan Brull
Mes de Maria
c. 1894

Lluís Masriera i Rosés
Clase de canto
c. 1900


Ramon Martí i Alsina
Segadora
c. 1850


Modest Teixidor
La lectura
c. 1910


Francesc Miralles
La lectura
c. 1897



Román Ribera
La lectura preferida
c. 1904



"A esfera da mulher e da intelectualidade é representada de diferentes formas. A construção da identidade feminina é realizada fundamentalmente por meio da literatura. A mulher leitora adquire um protagonismo sem precedentes. A imprensa, com o seu boom no século XIX, é um dos principais veículos de acesso a leitura e ao conhecimento para as mulheres da época. São lançadas várias revistas para mulheres, que superam os homens em hábitos de leitura, o que persiste até hoje. Além das novas esferas industriais, a mulher continua a trabalhar nas tarefas tradicionais, ligadas à agricultura, ao cuidado dos animais e à pesca. Impressionam o realismo e a força de Segadora, obra de Martí i Alsina de 1850, na qual mostra o corpo feminino sem qualquer tipo de idealização."




Mulheres - Entre Renoir e Amadeo
Exposição patente ao público de 13 de Novembro 2020 a 14 de Fevereiro 2021
Palácio Anjos - Centro de Arte Contemporânea
Alameda Hermano Patrone, 1945-064  Algés

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Outono

 
"Fácil me vem a tarde, como um rio.
- E tudo à minha volta permanece
como um gesto concreto que eu tivesse!

Fácil me vem a tarde, e já não sei
se há folhas cor de mel nos arvoredos,
ou se das folhas arranquei os dedos
para colher o outono que lhes dei ..."



"Poesia Completa" de Maria Alberta Menéres
Porto Editora
1ª edição, Março de 2020
Página 27

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Poema ao Estilo Antigo I

 
"No segundo mês da Primavera
chega a estação das chuvas,
logo que o primeiro trovão
se ouve como um estrondo a leste,
todos os seres escondidos
mostram o semblante aterrorizado
ervas e árvores espalham-se
em todas as direcções
e alegres se agitam as andorinhas
que acabaram de chegar,
um casal entra na minha cabana
mas em conjunto conseguem
regressar à antiga morada
o ninho que deixaram
continua intacto
desde que nós nos separámos,
o pátio vai-se aos poucos cobrindo
de vegetação rasteira
se é verdade que o meu coração
é uma autêntica rocha
de que é feito o sentimento?"


"Poesia e Prosa" de Tao Yuanming
Assírio & Alvim
1ª edição, Outubro de 2019
Página 91
 
"A logoterapia afasta-se da psicanálise na medida em que considera o Homem um ser cuja principal preocupação é o preenchimento de um sentido e não a mera gratificação e satisfação de impulsos e instintos, ou a mera reconciliação de pretensões conflituantes de id, ego e superego, ou ainda a mera adaptação e ajustamento à sociedade e ao meio ambiente."

"O Homem é capaz de mudar o mundo para melhor, se possível, e de se mudar a si próprio para melhor, se necessário."



"O Homem em Busca de um Sentido" de Viktor E. Frankl
Editora Lua de Papel
6ª edição, Setembro de 2017
Páginas 106 e 130

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Canções de Beber

 
"O comportamento das pessoas
é tão variado,
como saber de que lado está a razão?
Certo ou errado, levianamente
julgamos tantas vezes.
É como o som da trovoada,
que significado tem!?
Na parte final das Três Dinastias
todas estas coisas se tornaram correntes
mas o homem sensato
não se comporta assim
ele deixa brilhar os tontos
e as suas vulgaridades
e, como os eremitas Huang e Ch'i,
prefere o silêncio
seguindo assim os bons exemplos."


"Poesia e Prosa" de Tao Yuanming
Assírio & Alvim
1ª edição, Outubro de 2019
Página 49
 
"Terrível como efectivamente foi, a sua experiência em Auschwitz reforçou o que era já uma das suas ideias centrais: a vida não é essencialmente uma busca de prazer, como pensava Freud, ou uma busca de poder, como ensinou Alfred Adler, mas sim uma busca de sentido. A mais importante tarefa de qualquer pessoa é descobrir sentido para a sua vida. Frankl considerou três possíveis fontes de sentido: o trabalho (fazer alguma coisa significativa), o amor (cuidar de outra pessoa) e a coragem em tempos difíceis. O sofrimento, em si mesmo e por si mesmo, é destituído de sentido; conferimos sentido ao sofrimento pela maneira como lhe reagimos."


"O Homem em Busca de um Sentido" de Viktor E. Frankl
Editora Lua de Papel
6ª edição, Setembro de 2017
Página 10

domingo, 15 de novembro de 2020

Regresso ao Campo

"Semeei uns feijões
nas encostas voltadas a sul
mas as ervas daninhas espalharam-se
e os rebentos de feijão atrofiaram
levanto-me cedo
e aproveito para mondar o quintal
de sacho aos ombros, regresso a casa
em companhia da lua
o caminho torna-se estreito
no meio das ervas e da mata cerrada
o orvalho do crepúsculo molha a minha roupa
mas isso a mim não me incomoda nada
aproveito para praticar a não-contrariedade
e o que me importa mesmo
é não trair os sonhos."


"Poesia e Prosa" de Tao Yuanming
Assírio & Alvim
1ª edição, Outubro de 2019
Página 26

sábado, 14 de novembro de 2020

Prece No Mediterrâneo

Milagre dos pães e dos peixes, Anónimo, Basílica Sant' Apollinare Nuovo, século VI


 "Em vez de peixes, Senhor,
dai-nos a paz,
um mar que seja de ondas inocentes,
e, chegados à areia, 
gente que veja com coração de ver,
vozes que nos aceitem

É tão dura a viagem
e até a espuma fere e ferve,
e, de tão alta, cega
durante a travessia

Fazei, Senhor, com que não haja
mortos desta vez,
que as rochas sejam longe,
que o vento se aquiete
e a vossa paz enfim
se multiplique

Mas depois da jangada,
da guerra, do cansaço,
depois dos braços abertos e sonoros,
sabia bem, Senhor,
um pão macio,
e um peixe, pode ser,
do mar

que é também nosso"



"Ágora" de Ana Luísa Amaral
Assírio & Alvim
1ª edição, Novembro de 2019
Páginas 136 a 138

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

A Leste do Paraíso

 
A morte de Caim, George Frederic Watts, c. 1872-1875
"Antes ser tudo e livre
do que bom mas humilde

Assim pensara então

e agira

E o oriente lhe foi destinado:
terra de mil castigos
de difíceis colheitas; mais
suor

Só depois descobriu
que lá o sol nascia
e que podia falar das coisas
todas

Mas com quem?"



"Ágora" de Ana Luísa Amaral
Assírio & Alvim
1ª edição, Novembro de 2019
Páginas 112 e 113

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Madalena: Rectificar a História

 
Madalena penitente, Georges de La Tour, 1640
"ainda assim,
tentar

rectificar 
o sol:

um agasalho
interno
para o coração"




"Ágora" de Ana Luísa Amaral
Assírio & Alvim
1ª edição, Novembro de 2019
Páginas 88 e 89

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A Agonia no Jardim

A agonia no jardim, William Blake, 1789-1800


"A solidão avança como onda,
ausente 
toda a luz

Saísse eu deste quadro,
poderia tocar o tronco amargo,
os ramos mais esguios dessa oliveira,
libertar-me das mãos

Podia ainda, se quisesse,
inventar vento
aproveitando a chama que ele
ostenta

Devo ceder a quê?
À história que contaram
sobre mim?

Eles não sabem da história mais de dentro,
a que me fez chegar até aqui,
sabendo finalmente:

que dizer sim
era morrer por dentro
que dizer não
era afogar-me nessa longa chama,
numa Palavra -

em mim"



"Ágora" de Ana Luísa Amaral
Assírio & Alvim
1ª edição, Novembro de 2019
Páginas 25 e 26

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

"O Japão no Feminino II - Haiku ( Séculos XVII a XX )"

Será uma nuvem
ou um véu a esconder
o rosto da lua? *
- Den Sutejo

* Na cena outonal que se descreve, a lua é comparada a uma jovem tímida, relutante em tirar o véu e mostrar-se aos outros.


Floresce a cerejeira
só para ensinar ao mundo
seu breve florir? *
- Den Sutejo

* A curta floração da cerejeira é sinónimo da brevidade da vida na terra


Batendo nas folhas
e quebrando-as em bocados -
aí vem o frio.
- Shiba Sonome


Perdida nos bosques -
apenas um som de folha
cai no meu chapéu.
- Tagami Kikusha


Búzios sobre a mesa
guardando em si melodias
do profundo mar.
- Takeshita Shizunojo


O sol redondo,
a lua esguia e, entre eles,
um papagaio de papel.
- Takeshita Shizunojo


Biblioteca em fim de dia -
os gnomos saem dos livros,
brincam na penumbra.
- Takeshita Shizunojo


Uma lua
e um lago gelado
reflectem-se um ao outro.
- Hashimoto Takako


Cigarras da tarde -
rostos que passam e cruzam
sem dizer palavra.
- Ishibashi Hideno


Dia de Primavera -
um vento que vem do mar
sem que o mar se veja.
- Katsura Nobuko


Como quem remenda
peúgas, remendo a mente
e prossigo a vida.
- Yoshino Yoshiko


Será deste mundo
ou dum mundo além? No mar
o brilho do poente.
- Tsuda Kiyoko


Eis a erva morta -
a vida a jazer dormente
no rosto da terra.
- Inahata Teiko


Este som das ondas -
desenhando-as, faço parte
da cena de Inverno.
- Kuroda Momoko


Com o som das ondas
chegando à ponta dos pés,
recosto-me na cadeira.
- Katayama Yumiko


Ondas no Inverno -
põem a gente à distância,
tal é seu azul.
- Mayuzumi Madoka




"O Japão no Feminino II - Haiku ( Séculos XVII a XX )" de Luísa Freire
Assírio & Alvim, Setembro 2007
Páginas 24, 26, 36, 53, 60, 61, 74, 83, 92, 96, 104, 108, 119, 131 e 140

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

"Primeiro Amor e outros poemas" de Yosa Buson

 
Sobre o mar
o sol poente
no fio da bruma


Carregador na montanha -
nem um olhar
para as cerejeiras bravas em flor


Trabalhamos os campos
- até a nuvem imóvel
já desapareceu


Chuva de Primavera
conversando seguem
uma capa de palha e um guarda-chuva


Entre trovões
o som do orvalho
escorrendo pelos bambus


Noite breve -
na poça de água
o reflexo da lua


Felicidade -
no Verão atravessar a ribeira
de sandálias na mão


No sino de templo
uma borboleta
dorme


Lua cheia de verão -
as vozes dos aldeões
regando os campos


Crepúsculo de Outono -
a solidão
também pode ser feliz


Templo da montanha
na pedra de escrever
precoce a primeira geada


Nortada
o som da chuva
afiado pelas rochas


Silêncio
um carvalho no meio do prado
e a lua de inverno



"Primeiro Amor e outros poemas" de Yosa Buson
Editora Licorne, Outubro de 2013
Páginas 17, 20, 22, 24, 26, 31, 34, 35, 45, 50 e 54

quinta-feira, 5 de novembro de 2020


"Nada mundano é divino;
Nada divino é mundano."



"O Pangolim e Outros Poemas" de Marianne Moore
Relógio D' Água Editores, Novembro de 2018
Página 171

"Os animais [haikus]" de Kobayashi Issa (IV)

lado a lado
cada veado
lambe a geada que cobre o outro


no cão
enrolado a dormir
pousou uma borboleta


anoitecer de outono -
nem o grou nem a tartaruga
fogem ao seu destino *

* Fim do dia. Outono. A ideia de envelhecimento. A tartaruga e o grou, símbolos da longevidade, não conseguem escapar à morte.


demora-se
no papel da porta
o canto do insecto *

* Haiku de grande intensidade poética. Em vez de ser o insecto a ficar preso no papel da porta, é o seu canto.


pássaros
fazendo os seus ninhos -
mendigos debaixo da ponte



"Os animais [haikus]" de Kobayashi Issa
Assírio & Alvim, Março de 2019
Páginas  339, 363, 378, 397 e 400

Matrimónio

"Esta instituição,
ou melhor será dizer empresa,
dado o respeito por aquilo
em que não se pensa voltar atrás
naquilo em que se acreditou,
exigindo promessas públicas
da intenção de cada qual
cumprir uma obrigação pessoal:
pergunto-me que ideia terão disso
Adão e Eva a esta altura,
o resplandecente minério
de ígneo tom dourado;
como parece brilhar -
"de tradições e imposturas circulares
infligindo estragos vários",
exigindo todo o ilícito engenho
para se evitar!
A psicologia que tudo explica
não explica nada,
e continuamos na dúvida.
Eva: uma mulher bela -
bem bonita era 
quando a vi e
impressionou-me deveras,
capaz de escrever três línguas
ao mesmo tempo -
inglês, alemão e francês -
e falar entretanto;
tão firme a reclamar comoção
como a impor sossego:
"Eu gostava de estar só",
ao que replica o visitante
"Eu gostava de estar só;
e se estivéssemos os dois sós?"



"O Pangolim e Outros Poemas" de Marianne Moore
Relógio D' Água Editores, Novembro de 2018
Página 49