terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Marcações

 
"A minha árvore está livre,
vejo-a daqui,
os ramos oscilando ao ritmo
dos meus passos

Como cadeira antiga
que não precisa nome, assim
é ela: minha,
e a ela aporto
como navio, agora

Convocaria exército de abelhas,
batalhão de formigas do fundo
do jardim, se sentisse
outro corpo?

Imagino-a cantando, dizendo
que está livre, se preparou
para me receber

Acaba de lançar
miríade de folhas sobre mim,
oferta descomposta pela cor,
e o hino atravessado a negro
que lhe faço
ficou mais rico na poeira de oiro -

tal como a minha camisola branca
que seriamente exibe
as suas manchas, o seu cheiro
de morte anunciada:
esse cansaço bom depois do amor -

ou êxtase de outono a ser"



"Mundo" de Ana Luísa Amaral
Assírio & Alvim
1ª edição, Outubro de 2021
Páginas 82 e 83

Dois Cavalos: Paisagem

 "Estão lado a lado,
naquela praça em frente da igreja,
nesse calor de quando o mundo oscila
na linha de horizonte,
e o rio quase defronte:
uma miragem

Estão lado a lado,
sujos de pó, as cabeças tombadas para a frente,
unidos pelo jugo desigual, a carroça apoiada no muro
mas pronta a ser unida aos corpos deles

Estarão feitos assim: velhos amigos,
os corpos encostados mesmo neste calor,
pela aliança muda?

Arreios, cabeçadas, todos os instrumentos
do que parece ser mansa tortura
mais o freio, ou bridão,
parecido com aquele colocado na boca das mulheres
que desobedeciam,

e era isso há muito tempo,
pelo menos quatro séculos,
ou semelhante ao que se usava
nos escravos, cobrindo-lhes a boca
para que não se envenenassem,
porque se recusavam a  viver
escravos
e era isso quase agora, no século passado

Mas eles não criam caos nem desacato,
não se revoltam nem tentam o veneno
se o freio agudo lhes fere, pungente,
gengiva, língua, osso

Só se encostam quietos, um ao outro,
cabeças derrubadas para a frente,
à espera do chicote
que chegará depois com a carroça, pronta
para a entrega das coisas
humanas, o comércio

E é esta a mais perfeita
das colonizações"



"Mundo" de Ana Luísa Amaral
Assírio & Alvim
1ª edição, Outubro de 2021
Páginas 38 e 39

O Peixe

 
"É de metal
que ao sol
parece azul
o anzol
que o prende
à morte

E os sons
que pela areia
do verso
o arrastaram
têm o som
metálico
do medo"



"Mundo" de Ana Luísa Amaral
Assírio & Alvim
1ª edição, Outubro de 2021
Página 16

A Pega: As Outras Cores Do Mundo


"No jardim tangente à minha casa
por entre os pássaros
que lhe habitam as árvores e cantam
em trinado desacerto,
vive uma pega

O seu nome não é um nome belo
como andorinha ou rouxinol,
que lembram odes e mornas tradições,
ou como arara, quetzal ou beija-flor,
nomes felizes com as cores inteiras
que o olho humano entende
- e ainda outras
que as entendem eles

Mas ela, elegante no corpo todo negro, a cauda longa,
só laivo a branco leve na asa e pelo peito,
parece que vestiu alta-costura
para voar pelos ramos de outono e
os telhados das casas
que estão perto

Dizem os entendidos
que reconhece ao espelho o seu reflexo,
algo que ao bicho humano
exige anos de vida

Nestes dias tão magros
em que os cavalos de apocalipse e espanto
cavalgam livres, trazendo novas pestes, guerras, fomes,
é um prazer de afago

alegria sem nome
vê-las todos os dias a voar

equilibrista bicolor,
dona do mundo"




"Mundo" de Ana Luísa Amaral
Assírio & Alvim
1ª edição, Outubro de 2021
Páginas 14 e 15

domingo, 31 de outubro de 2021

Pássaros

 
"Não sei nada sobre pássaros
Só de os ouvir cantar para mim em bosques antigos
Pendurados nos galhos das árvores."



"Roupão Azul" de Ana Paula Jardim
Guerra & Paz Editores
1ª Edição, Janeiro de 2021
Página 81

Ruínas

 
"Se algum dia me procurares e me quiseres falar
Procura primeiro no convento junto ao rio
Não no novo reconstruído e estranho
Mas no antigo
Em ruínas
Procura bem nos arcos das janelas que se erguem como espectros nas águas do Mondego
Procura nas manhãs geladas de Inverno
Nos tempos antigos
Imemoriais
Procura-me na sombra das árvores
Que existiam junto ao portão a dar frutos com o teu nome
Procura-me no silêncio secular das pedras
E no som dos sinos da igreja a chamar por ti
A guiar os teus passos para dentro de mim
Para o meu corpo virgem sepultado nas tuas mãos
Procura-me nos olhos de Inês
Que espreitam pelas fechaduras à tua espera
Iludidos, claros, cheios de labirintos
Vê se me encontras nas pétalas de rosa semeadas pelo chão
As que florescem em Janeiro no regaço da Rainha
As que caíram do manto e eram pão."



"Roupão Azul" de Ana Paula Jardim
Guerra & Paz Editores
1ª Edição, Janeiro de 2021
Páginas 79 e 80

Liturgias

 
"Poemas são orações que se escutam nas ruínas de um convento
São rezas matinais em busca da salvação
Poemas são murmúrios de monjas enclausuradas
Que escrevem palavras ilegíveis com os pés no chão de pedra
São como credos depositados no altar para dizer a nossa solidão
Poemas são cânticos de louvor entoados por anjos exilados
Em igrejas à espera de libertação
Anunciações de uma verdade pura e redentora
No ventre impossível de uma virgem estéril
Contas de um rosário de Ave-Marias
A procurar narrar o mistério do mundo
Poemas são flagelos
Chagas abertas em corpos incomunicáveis e crucificados como o meu
Sem sacrifício ou Agnus Dei profético que o consiga resgatar
Poemas são rituais litúrgicos
Pautas de música gregoriana com o som da tua voz a ecoar dentro de mim
Livro de Salmos de um amor impossível."



"Roupão Azul" de Ana Paula Jardim
Guerra & Paz Editores
1ª Edição, Janeiro de 2021
Página 76

Margem

 
"É possível pertencer a um lugar sem lhe pertencer verdadeiramente
Percorrer caminhos antigos com pés emprestados
Entrar em bosques e jardins proibidos
Como quem entra na alma de alguém
Sentir coisas muito verdes e húmidas
Debaixo das árvores
Beijos. Murmúrios. Passos e risos
Mulheres esfíngicas e medievais
É possível caminhar com pés de monjas que não amaram
E de rainhas que se dedicaram a inventar milagres
Com rosas e piedosas vozes
É possível fundar conventos desobedientes e dissidentes
Na margem esquerda de um rio
Errada. Errante. Alagada
E tentar resgatá-los continuamente
É possível olhar a cidade com olhos fossilizados no tempo
Com olhos estrangeiros de Inês e de Isabel
E compreender o mesmo
Ver os seus amanheceres degolados e os seus entardeceres cheios de conspiração
Dourados e efémeros
Com torres e muralhas erguidas
Com palácios legítimos e ilegítimos
E o casario branco com muita gente alinhada lá dentro
Desalinhada connosco
É possível vestir vestidos compridos e feudais
Bastardos e de azul real
Ajustarem-se ao nosso corpo em esperas inúteis nas ruínas dos claustros."



"Roupão Azul" de Ana Paula Jardim
Guerra & Paz Editores
1ª Edição, Janeiro de 2021
Páginas 74 e 75

sábado, 30 de outubro de 2021

Anel

 
"Olho o teu anel no meu dedo
No médio, que no anelar fica lasso
Olho o teu anel no meu dedo
E é como se a tua história estivesse incrustada na minha mão
A fazer lembrar a tua
Deformada
Olho o teu anel no meu dedo de pedra amarela
Semipreciosa
O único que recebeste
Esse que guardaste no fundo da gaveta da tua cómoda
E que envelheceu contigo
Entre comprimidos, papéis inúteis e cartas alheias
Sem envelope
E que te esqueceste de deitar fora
No teu quarto de reposteiros gastos, fora de moda e solitários
Enlouquecidos
Cheios das tuas insónias e das tuas mágoas
Com a roupa do teu amor mal dobrada a um canto
Abandonada
Olho o teu anel de ouro antiquíssimo
Elegante
Fundido num nome que odiavas
Com as tuas memórias gravadas que o tempo não oxidou
Olho o teu anel no teu dedo
Esse que usavas em todos os teus dias
Aborrecidos
Banais
Nas tuas mãos que nunca foram bonitas
Nas minhas que são iguais."



"Roupão Azul" de Ana Paula Jardim
Guerra & Paz Editores
1ª Edição, Janeiro de 2021
Páginas 40 e 41

Canetas

 
"Escreveste sempre muito para quem aprendeu tarde
Cartas, sobretudo
De amor
A mulheres desconhecidas com quem te cruzavas nas ruas
Escreveste sempre muito com canetas de tinta permanente
A tentares fixar com o bico a vida no papel
Em letra desenhada e com traços bem vincados
Excessivos
Cheios de tinta e de amargura
Escreveste sempre muito com olhos analfabetos
Que existem mais verdades fora do que dentro dos livros
E o maior escritor é o que escreve a existência
A pulso
Com as mãos calejadas e doridas
E a alma sempre em desassossego
Escreveste sempre muito pela noite dentro
Numa secretária improvisada e sem gavetas
No fundo do teu quarto."



"Roupão Azul" de Ana Paula Jardim
Guerra & Paz Editores
1ª Edição, Janeiro de 2021
Página 37

Volkswagen

 
"Nunca gostei de domingos
Nem do teu Volkswagen azul de bancos reclinados
Nunca gostei da forma como gostavas dele
Obstinada
Nem do barulho do motor
Nunca gostei das várzeas que teimosamente percorrias junto ao rio
Nem dos teus olhos férteis cheios de hortas e laranjais
Como o ventre das tuas mulheres
Nunca gostei quando dizias que tinhas feito estes caminhos descalço
E que depois a vida te tinha calçado
Nunca gostei dos juncos e salgueiros junto da estrada
E de como paravas e me arrastavas
Nunca gostei da tua aldeia
Nem do barulho dos sinos da igreja
Ou da cal branca nas casas de pedra
Amontoadas
Nunca gostei dos teus conventos nas encostas
Escondidos nos bosques e com descidas inclinadas
Como tu."



"Roupão Azul" de Ana Paula Jardim
Guerra & Paz Editores
1ª Edição, Janeiro de 2021
Página 28

domingo, 17 de outubro de 2021

Sintra Azul-Lunar

 "sim
perguntas-me
e eu respondo-te
querida deusa
sim
é disto que eu gosto
de ser o teu primeiro animal nocturno
de caminhar entre as nuvens da madrugada
pelas ruas desertas
quando o vento açoiteia as folhas de outono

sim
gosto de ser espreitada pelos espíritos da montanha
ocultos nos seus tronos de muros e heras
enquanto eu cantarolo
passando sem temor
sobre o chão molhado pelas lágrimas de uma princesa de névoa

sim
gosto do meu jardim selvagem e das rosas
que se abrem na madrugada para contemplarem diana
banhada pelo luar do solstício de inverno
como na pintura de uma fada do jardim epicureano

sim
gosto deste silêncio e deste assombro só para mim
de ouvir as vozes dos anjos que em coro celebram
num templo perdido no bosque sagrado
meu destino de ser o poeta das tuas luas
ó sintra azul-lunar

gosto também   meu irmão
sim
da tua mística luz eterna
de ti
que escreveste no aparente silêncio das pedras
a dor escultural da tua busca interior
por um diálogo entre o homem
deus
e a natureza

sim
confesso
gosto das coisas que vivem na penumbra
deste aprender contigo deusa querida
que a vida não acaba com a mera morte
e que o eco das palavras nos teus ventos circulares
ressoará em todas as estações
no ouvido atento do jovem coração
e suas naturais sezões

adianto mesmo   amor
sim
que dentro de ti serei eterno
como a aura que circunda teu rosto verde
e se revela sem mácula ao luar
quando te abraço
no leito aberto das
eras e lembranças escritas no teu corpo."



"Selenographia in Cynthia" de Jorge Telles de Menezes
Hugin Editores
1ª Edição, Agosto de 2003
Páginas 33 e 34

Cynthia

 
"cynthia céltica    cynthia romana
moura e nórdica
chynthia eterna
de todos os que se podem comover
perante as tuas árvores os teus muros as tuas pedras
os riachos as tuas fontes
cynthia o teu ar puro da montanha
em vento do mar veloz
dos palácios incrustados na tua verde nuvem
cynthia dos místicos
cynthia pagã adorando a lua
cynthia de antónio nobre dos noivos desvairados ao luar
cynthia de soares dos passos de alta vai a lua
cynthia de camões partindo para a índia
oh fresca serra de sintra
cynthia da fonte dos amores no santuário feteira
cynthia dos monges dos conventos-tabas
japão aqui oriente aqui
plano em horizonte laranja
ao fundo o mar de prata cintilante
em frente um maciço eruptivo
mons lunae tu celta étimo da lua hárpica cynthia
de uma janela de casa te vejo
oh criação do meu espaço poético
em cima antes do céu os castelos
ruínas mouriscas da pena de um rei artista
e ao longo da floresta encantada
oh rituais sagrados e eternos
oh clareira impenetrável de fetos
oh megalito oh sacerdotes
oh magos oh músicos
oh druídico poeta
o vosso cântico celebra
caminhos de paz
na face de gaia."



"Selenographia in Cynthia" de Jorge Telles de Menezes
Hugin Editores
1ª Edição, Agosto de 2003
Páginas 31 e 32

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

 "A manhã já vai alta, e eu não sou da altura da manhã."


"Por que é que escrever se parece com um amigo?"


"Para mim, o exílio faz parte da escrita, e não quero perdê-lo; dá-me o afastamento de pressões, a distância para poder querer sem entravar o imaginar; por vezes, o sofrimento é aquele sentimento que me impele no trabalho como uma necessidade: eu continuo a existir porque escrevo."


"Inquietação harmoniosa.
Os que crêem no real e na poesia, não têm fé."


"Eu não sou terna com ele, diz o Augusto; é uma impossibilidade; a minha ternura fechou-se dentro das palavras; deu-se às palavras. É um destino que se cumpre."


"O preço da liberdade é uma certa solidão."


"O jardim respirava novos cheiros que não provinham de árvores, mas de pássaros que mudavam as penas sobre eles, nesta época de civilizações florais diferentes; a solidão era a superfície natural do jardim, ..."


"A vida de escritor, é, para mim, a vida de alguém que se orienta pela escrita, ou seja, que se aventura com o que escreve; pouco a pouco, e com o tempo, compreendi que escrever era uma coisa, que ganhar a vida devia ser para mim outra; escrever afastava-se, assim, do facto de obrigatoriamente ter de enfrentar qualquer frente social."


"A vida da escrita não tem semelhante, é uma vida musical em que descubro as notas; é uma vida vegetal em que descubro as árvores; é uma vida divina, é uma vida de acontecimentos divinos; é uma vida de acontecimentos que poderiam relacionar-se com a divindade."


"Penetrei o âmago das árvores.
Convento de Santa Cruz dos Capuchos"


"Eu não sou uma intelectual, conheço e cultivo o que é necessário à minha vida; se me lembrei de escrever foi porque, sem esse lado da revelação, eu ficaria sem caminho; caminho sobre a escrita como sobre as águas; ..."




"Numerosas Linhas - Livro de Horas III" de Maria Gabriela Llansol
Assírio & Alvim
1ª Edição, Outubro de 2013
Páginas 188, 192, 208, 225, 241, 246, 269, 286, 293, 327, 333 e 334

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

 
"Nesta época, vontade de escrever, de narrar para dar impulsão ao que vivo, vontade de viver para dar impulsão ao que escrevo."


"Esforço-me por escrever os meus pensamentos para que eles não se ocupem demasiadamente de mim."


"Volta-me sempre o pensamento da árvore genealógica, «quem me conduz a quem»?


"Escrever e não publicar é um acto reforçado de solidão."


"A luz anda inquieta com o dia."


"A página percorre o texto ouvindo-o, e fá-lo dormir/descansar no silêncio das margens."




"Numerosas Linhas - Livro de Horas III" de Maria Gabriela Llansol
Assírio & Alvim
1ª Edição, Outubro de 2013
Páginas 86, 87, 124, 154, 160 e 181

domingo, 10 de outubro de 2021

 
"Nestes dias sinto-me impessoal, à margem da vida quotidiana, dos ambientes habituais. Ficar num lugar, ou passear num pano de fundo, a tentar reunir ideias e imagens, saberes."


"A escrita. «Se eu pudesse escrever e imprimir eu própria».


"As palavras reenviam-se umas às outras, transformam-se, aparecem-me desconhecidas no já antigo conhecimento que eu tenho delas, e o texto toma um alcance de destino."


"As formas florais são imagens dos deuses, e elas presidem no meu paraíso retirado."


" ... não peço mais ser o que não poderei ser, pois tomei deliberadamente outro caminho em que escrever faz parte dos amores íntimos, intimamente."


" ... estar à beira de ficar e de partir, eis o que eu pude fazer enquanto Tejo-rio me acolheu na disparidade de suas águas e me trouxe aqui, a outro rio igual a ele, de nome Tejo; o sobressalto é tão evidente que João da Cruz me perguntou hoje se eu não sou uma maré ..."




"Numerosas Linhas - Livro de Horas III" de Maria Gabriela Llansol
Assírio & Alvim
1ª Edição, Outubro de 2013
Páginas 54, 56, 62, 70, 81, 83 e 84

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

 
"Quanto mais cresço como árvore de escrita, mais necessito, paradoxalmente, de implantação social."


"Mas como é que a gente se deve comportar neste mundo, se tudo é tão efémero?"


" ... sem melancolia, eu nunca poderia escrever. Foi pela nostalgia que cheguei às palavras, à notação verbal de um panorama."


"Não consigo escrever, articular duradoura e espacialmente a escrita. É como se tudo estivesse submerso pelos escombros de excessivos/infinitos/incontáveis temas e ideias ..."


"Quase nunca escrevo regularmente. Constantemente me apetece mudar a minha relação com o papel, aprofundar a velocidade da mão, que é o último lugar onde concentro a fala
que, vivendo,
relego para raros momentos
e raras pessoas."




"Numerosas Linhas - Livro de Horas III" de Maria Gabriela Llansol
Assírio & Alvim
1ª Edição, Outubro de 2013
Páginas 31, 33, 35, 42 e 50

A Recusa Do Amor

 
"Não temos uma arma apontada à cabeça,
dizias-me. Mas era impossível que não visses,
impossível. Eu ao teu lado com aquela dor
no pescoço, imóvel, cuidadosa, o cano frio
na minha testa, a vida a estoirar-me
a qualquer momento. Era impossível que não visses
o revólver que levava sempre comigo. Por isso dormia
virada para o outro lado, não era por me dar mais jeito
aquele lado, era por me dar mais jeito
não morrer quando nos víamos,
era para dormir contigo só mais esta vez,
sempre só mais esta vez,
sempre com o meu amor a virar-se de costas,
sempre com o teu amor apontado à cabeça."




"Vem à Quinta-Feira" de Filipa Leal
Assírio & Alvim
1ª Edição, Fevereiro de 2016
Página 64

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Para Aprender a Chorar

 
"Juntaram no jantar de escritores
um crítico literário,
um poeta zen,
uma poetisa dada à música contemporânea,
uma produtora de espectáculos de fusão,
e eu.

Eu era, naturalmente, a mais alta representante da poesia
lamechas. Eu era a da voz grossa, a que lia poemas
deles pelas esquinas da cidade. Eu era a que fazia pausas
para o cigarro, a que não tinha companhia
para tanto mar, tanto frio, tantas interrupções de medo e nicotina.

Talvez alguém tenha falado de tristeza.
É um tema que me interessa.

Eu não sei chorar, disse. Nunca aprendi a chorar.
Aflijo-me. Fico com falta de ar.
Quero chorar muito mas acabo por chorar pouco
porque tenho medo de me engasgar e morrer.

Oh, riso geral.
Esta poeta lamechas é tão engraçada, tão dada
à auto-ironia, tão menos lamechas do que nós
pensávamos.

Nessa noite, chorei muito."



"Vem À Quinta-Feira" de Filipa Leal
Assírio & Alvim
1ª Edição, Fevereiro de 2016
Páginas 20 e 21
 
"Lembro que certa vez me perguntaram quando e onde escrevia. Respondi: sempre e em toda a parte."


"Que significou e significa para si a poesia?
A maior plenitude possível da vida a que posso aceder. Como experiência vital, não conheço intensidade maior. A poesia é a minha identidade."




"Poesia e Criação: Diálogos com Guillermo Boido - Vol I" de Roberto Juarroz
Edições Sr Teste, Agosto de 2020
Páginas 79 e 95

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

 
"Mencionámos de passagem o tema da solidão. Ser poeta significa assumir uma forma de solidão?
Sem dúvida, mas assumir também uma forma de companhia. Porque não se trata da solidão como isolamento, nem como separação, nem como falta de presença. Trata-se, sim, da solidão do homem só, no sentido de um fazer e viver único que, por outro lado exige concentração, silêncio, contemplação do mais íntimo de si mesmo. Mas, por outro lado, ocorre-me que não existe forma mais plena de comunhão, de sentir a existência do outro. Porque geralmente o artista está só. Mas pensemos no pintor e em como o devem acompanhar a cor, as linhas, as formas. Como o mundo acompanha o poeta, o seu reconhecimento do homem, embora, por vezes, não o entendam ou escutem. Há outra forma de viver: é a companhia que significa a intimidade com o mundo que dá origem à linguagem da criação. Penso que no poeta mais solitário, mais separado, mais isolado, está presente toda a humanidade, toda a realidade, embora não o sinta quando em angústia, e sofra essa falta de comunicação circunstancial, aleatória, com o meio que o rodeia. Por isso é tão importante cultivar o que chamamos de solidão, mas não como singularidade irredutível, mas como o fazer do sapador que se encontra, por baixo ou nem sei por onde, com todas as coisas. A poesia, e a arte em geral, exige muita dor, muito sacrifício, uma grande quota de incompreensão, de marginalidade acidental, mas que finalmente, sem dúvida que é algo infinitamente consolador e acompanha mais que qualquer outra coisa. A arte não é uma debilidade. É uma força, embora aniquile quem a pratica."




"Poesia e Criação: Diálogos com Guillermo Boido - Vol I" de Roberto Juarroz
Edições Sr Teste, Agosto de 2020
Páginas 72 e 73