o sem-abrigo que frequenta as bibliotecas de arte
escreve sobre um pedaço de esferovite
carícia entalhada
pequena ardósia das primeiras letras
folheia com cuidado a enciclopédia britânica
balouça o corpo leve
alívio alternado das nádegas
bem sentadas na poltrona civilizada
o ar condicionado ronrona
vestiu todas as roupas sem estação
sofre de magreza endurecida
não preparada para o calor
no auge do verão usa um boné para a neve
isso não parece incomodá-lo
mergulha os livros na estante com um leve afagar na lombada
II
apanhados pela chuva no museu gulbenkian
já não estamos apaixonados
nem vemos sem-abrigo afectivos
há famílias de domingo e cinéfilos a tragar madalenas
há empregadas de mesa com aventais incorrectos
e gargalhadas sonoras que só lisboetas semi-gingões e semi-cultos sabem dar
é maio e chove outono
o ar não está condicionado
um rumor de gente frágil sente a chuva lá fora
e contempla as velas acesas
do lado de dentro de fora
uma névoa interna atravessou os anos
ainda temos os movimentos tolhidos de sonolência e receio
lentidão ao chegar e lentidão ao partir
o mundo continua
e soergue-se no cotovelo
onde está o sem-abrigo do boné à esquiador?
apanhados pela chuva
esperamos e tememos"
Rosa Oliveira em "Cinza"
Edições Tinta-da-China
1ª edição, Junho de 2013
Páginas 73 e 74
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