domingo, 14 de fevereiro de 2016

Dentro da Vida

"Não estamos preparados para nada:
certamente que não para viver
Dentro da vida vamos escolher
o erro certo ou a certeza errada
 
Que nos redime dessa magoada
agitação do amor em que prazer
nem sempre é o que fica de querer
ser o amador e ser a coisa amada?

Porque ninguém nos salva de não ser
também de ser já nada nos resgata
Não estamos preparados para o nada:
certamente que não para morrer."

Gastão Cruz  em "A Moeda do Tempo"
"Há momentos em que somos obrigados a conviver com pessoas de natureza tão distinta da nossa que bastam cinco minutos de contacto para percebermos que, cedo ou tarde, os diques que sustêm a hostilidade latente acabarão por ceder e quanto mais pressão pusermos sobre eles maior será a catástrofe. A questão que nos colocamos é a de saber se o ideal é passar de imediato para a fase de conflito declarado ou aguardar diplomaticamente que, como dizem alguns entendidos nas matérias, as coisas sigam ao seu ritmo, na vã esperança de que uma relação franca e honesta, ainda que difícil, seja possível. A diplomacia, sabe quem já esteve na guerra, é um exercício de grande violência interior."

Bruno Vieira Amaral  em "As primeiras coisas"

domingo, 7 de fevereiro de 2016

O Mistério da Poesia

"Como o pai do poeta Yeats dizia,
misticismo é um meio para a poesia.
Porque insistir então em conceber
a poesia como atalho para o Ser?"

Luís Filipe Castro Mendes

Do Nepal ao Tibete: a viagem de todos os sonhos

"Patan ou Bhaktapur, nem sempre nos mostra as cidades verdadeiras daquele vale - mas tem a ver com a nossa mitologia. A mesma que leva o personagem de O Fio da Navalha, de Somerset Maugham, a percorrer os caminhos da neve e das montanhas para se reencontrar consigo mesmo, descobrindo noutro lugar (aí, no Oriente) aquilo que perdeu entre nós.
Somos distraídos, os ocidentais, os europeus, os que vivem longe de Katmandu, mesmo se não precisamos de ir a Katmandu para descobrir o que se encontra em Katmandu, como concluíram os que fizeram essa peregrinação. Katmandu, com a sua altitude, a sua cor, além dos seus sons e, sobretudo, da sua aparente inacessibilidade, é uma metáfora perfeita para o espírito da viagem.
Todas as viagens podiam ser encaradas como uma visita a Katmandu, uma reaprendizagem de todas as culturas e a demonstração da nossa disponibilidade para conhecer aquilo que é o nosso contrário, o que nos é mais diferente e mais provocatório. Hoje, não nos basta que o mundo seja conhecido. Precisamos de experimentá-lo, de encontrar as vozes que vêm do fundo do deserto e do interior das montanhas, do labirinto das cidades e das suas casas.
Deve existir, algures entre os restos da neve dos altíssimos trilhos das montanhas mais altas da Terra, um mistério guardado para as gerações que hão-de vir, ou que hão-de nascer - esse segredo é o da resistência do Tibete. Antigamente, falava-se do «povo das alturas», habituado à contemplação e ao silêncio, a admirar a beleza intacta das ravinas e das estradas de pó que confinam com os lagos azul-turquesa ou que correm ao longo dos rios que nascem no Tibete (entre eles o Yang-Tsé, o Amarelo, o Brahmaputra ou o Ganges, que percorrem os caminhos da liberdade e se expandem para lá das suas fronteiras naturais).
Montanhas sagradas, rios sagrados, pássaros que desenham riscos brancos no céu, cores dos vestidos sacudidos pelo vento, dos animais que resistem às intempéries, às estações frias do tempo.
Deve existir um segredo que explique a nossa necessidade de paz, ou de contemplação, ou de isolamento, ou de serenidade, como uma música soprada do coração da terra e das coisas elementares. Deve existir um segredo, um antigo mistério que explique a capacidade de sobrevivência do Tibete (e do seu exílio) e o facto de o sagrado se estender sobre o mapa da terra e estar aqui mais ao alcance da mão do que em qualquer outro lugar."

Francisco José Viegas e Manuel Gomes da Costa  em "Tão Longe Quanto os Homens"

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

"Folhagem sobre os pés ou sob os pés,
raízes que me cortam a busca
de um corpo que deve estar por perto
a fazer coincidir o céu azul
com a vontade de ter ar para si,
e cinza, e um olhar de amor.
Um peso que não se arrasta, voz
sem tempo nenhum, vem pé
ante pé sobre mim e sobre o livro
que deixou de ter palavras
mal caiu no meio do ar o desejo
de esvoaçar no meio da tarde."

Hélder Moura Pereira  em "Uma Ideia da Coisa"