quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

"Há sítios no mundo que não estão lá. Sitios de paradeiro desconhecido. Não constam, não se sinalizam, não comparecem em compêndios, em almanaques de habitats. São sítios de passagem, de intersegmentação, zonas neutras, não nomeadas. Onde
(se é que é permitida a utilização de um advérbio circunstancial de lugar na presença de um lugar que não o é)
nem a universal erudição de Newtons ou de Arquimedes consegue vigorar, não obstante a unânime submissão a que sujeitam as coisas da física. E estas esferas intermédias, não catalogadas, vingam-se em desacato e desmando por toda a sonegação que se lhes vota. É no que dá o mundo olvidar-se de contemplar todos os não-sítios, suas cercanias e redondezas. É raro, mas por vezes acontece."

Ana Margarida de Carvalho  em "Pequenos Delírios Domésticos"

Valérie Milot - Sonata for Solo Harp: III. Perpetuum Mobile


Construção e Impermanência

"Se não há papel, não há livro. Se não há água, não há gelo. Se não há início, não há fim. A existência de um depende muito do outro, por conseguinte, a verdadeira independência não existe. Devido à interdependência, se um componente - a perna de uma mesa, por exemplo - sofre uma pequena mudança que seja, então a integridade do todo está comprometida e torna-se instável. Ainda que pensemos poder controlar a mudança, a maior parte do tempo isso não é possível por causa das incontáveis influências que desconhecemos e das quais não temos consciência. E, por causa desta interdependência, a desintegração de todas as coisas, no seu estado corrente ou original, é inevitável. Toda a mudança contém em si um elemento de morte. Hoje é a morte de ontem.
(...)
Mantendo a consciência dos fenómenos compostos, tornamo-nos conscientes da interdependência. Reconhecendo a interdependência, reconhecemos a impermanência. E, quando recordamos que as coisas são impermanentes, há menos probabilidades de nos deixarmos escravizar por suposições, crenças rígidas (tanto religiosas como seculares), sistemas de valores ou fé cega. Tal consciência impede-nos de sermos apanhados em todos os tipos de dramas pessoais, políticos e relacionais. Começamos a saber que as coisas não estão e nunca estarão inteiramente sob o nosso controlo e assim não há expectativa de que se passem de acordo com as nossas esperanças e medos. Não há ninguém para acusar quando as coisas correm mal porque existem inúmeras causas e condições a responsabilizar. Podemos dirigir esta tomada de consciência das regiões mais afastadas das nossas imaginações até a níveis subatómicos. Nem nos átomos nos podemos fiar.
(...)
Podemos pensar que os políticos liberais e de esquerda são políticos iluminados, mas eles podem ser de facto a causa do fascismo e dos skinheads, sendo complacentes e promovendo mesmo a tolerância para com os intolerantes, ou protegendo os direitos individuais daqueles cujo único fim é destruir os direitos individuais das outras pessoas. A mesma imprevisibilidade aplica-se a todas as formas, sensações, percepções, tradições, amor, confiança, desconfiança e cepticismo - mesmo às relações entre mestres espirituais e discípulos, e entre os homens e os seus deuses.
Todos estes fenómenos são impermanentes. Consideremos o cepticismo, por exemplo. Houve uma vez um canadiano que incarnava acerrimamente um céptico. Gostava de assistir a ensinamentos budistas, a fim de poder discutir com os mestres. Sendo na verdade bastante versado na filosofia budista, os seus argumentos eram fortes. Deleitava-se com a oportunidade de citar o ensinamento budista de que as palavras de Buda devem ser analisadas e não pressupostas como verdadeiras. Alguns anos mais tarde, tornou-se o devoto seguidor de um famoso médium. O céptico senta-se diante do seu guru, com lágrimas correndo dos olhos como rios, devoto a uma entidade que não tem uma ponta de lógica para oferecer. Fé ou devoção têm a conotação geral de ser inabaláveis, mas, tal como o cepticismo e todos os fenómenos compostos, são impermanentes.
(...)
Reconhecer a instabilidade de causas e condições leva-nos a compreender o nosso próprio poder de transformar obstáculos e tornar possível o impossível. Isto é verdadeiro em todas as áreas da vida. Se não temos um Ferrari, podemos bem criar as condições para ter um. Enquanto houver um Ferrari, há a oportunidade de possuirmos um. De igual modo, se queremos viver mais, podemos escolher parar de fumar e fazer mais exercício. Há uma esperança razoável. O desespero - tal qual, o seu oposto, a esperança cega - é o resultado de uma crença na permanência.
Podemos transformar não apenas o nosso mundo físico, mas também o nosso mundo emocional, convertendo, por exemplo, a agitação em paz mental, mediante o abandono da ambição, ou convertendo um baixo amor-próprio em confiança, mediante uma acção movida pela bondade e pela filantropia. Se todos nos determinarmos a colocar os nossos pés nos sapatos dos outros, cultivaremos a paz nas nossas casas, com os nossos vizinhos e com os outros países."

Dzongsar Jamyang Khyentse  em "O Que Não Faz De Ti Um Budista"

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Hang Massive - Warmth of the Sun's Rays


"O budista é aquele ou aquela que aceita as seguintes quatro verdades:
 
- Todas as coisas compostas são impermanentes
- Todas as emoções são dor
- Nenhuma coisa existe em si e por si
- O nirvana transcende os conceitos
 
Mas o que é que não faz de nós budistas?
 
- Se não podemos aceitar que todas as coisas compostas ou fabricadas são impermanentes, se acreditamos que há alguma substância ou conceito essencial que seja permanente, então não somos budistas.
 
- Se não podemos aceitar que todas as emoções são dor, se acreditamos que efectivamente algumas emoções são puramente agradáveis, então não somos budistas.
 
- Se não podemos aceitar que todos os fenómenos são ilusórios e vazios, se acreditamos que certas coisas existem de modo inerente, então não somos budistas.
 
- E se pensamos que o despertar existe nas dimensões do tempo, espaço e poder, então não somos budistas.
 
Deste modo, o que faz de nós budistas? Podemos não ter nascido num país budista ou numa família budista, podemos não usar túnicas ou rapar a cabeça, podemos comer carne e idolatrar Eminem e Paris Hilton. Isso não significa que não possamos ser budistas. Para sermos budistas, temos de aceitar que todos os fenómenos compostos são impermanentes, que todas as emoções são dor, que todas as coisas não têm existência inerente e que o despertar transcende os conceitos.
Não é necessário estar constante e perpetuamente atento a estas quatro verdades, mas elas devem residir na nossa mente. Não andamos constantemente a recordar o nosso próprio nome, mas, quando alguém nos pergunta, recordamo-lo instantaneamente. Não há dúvida. Qualquer pessoa que aceite estes quatro selos, mesmo independentemente dos ensinamentos do Buda, mesmo nunca tendo ouvido o nome do Buda Shakyamuni, pode considerar que está no mesmo caminho que ele."

Dzongsar Jamyang Khyentse  em "O Que Não Faz De Ti Um Budista"

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Evocação Das Ilhas Mais Remotas

"É bom pensar nas ilhas remotas, pedir que sejam fortes
perante as tempestades e as belezas adversas.
Auguremos a chegada dos bandos de albatrozes
que coroam seus rochedos em voos circulares.
 
É preciso pedir que as ilhas sejam fortes
para que lá estejam enquanto nos perdemos
para que em silêncio permaneçam mesmo quando
alguém procura um canto no meio da multidão.
 
É bom pensar nas ilhas remotas
no que as ondas lhes levam, no que os céus lhes dizem
repetidamente e para sempre. Elas são as guardiãs
de uma porta para nós talvez inexistente."

Carlos Poças Falcão  em "A Nuvem"