sábado, 26 de novembro de 2022

A Água Absorta

 
"A água absorta
pensa ou sonha?
A árvore que se inclina buscando
as suas raízes,
o horizonte,
esse fogo intocado,
pensam-se ou sonham-se?
O mármore já foi ave,
o ouro, lama,
o cristal, ar ou lágrima.
Choram o seu fôlego perdido?
Serão uma memória de si mesmos
e presos contemplam-se para sempre?
Se tu te observas, o que resta?"



María Zambrano em "Poemas"
Sr Teste Edições, Junho de 2020
Página 29

"Poemas" de María Zambrano

 
"Nem brisa, nem sombra.
Morte, porque te escondes assim?
Sai, salta, solta-te do teu abismo,
escapa-te, quem te detém?
Porque não apagas o universo com o teu
olhar?
Porque não desfazes as pedras
com a tua sombra, morte, só com a tua 
sombra,
com a tua mão nua,
com o teu rosto de estátua,
presença nua a quem nada resiste?
Ensina, mostra o teu rosto aos mundos,
que não haja mais espaço,
nem céus, nem vento, nem palavras.
Quero afundar-me no silêncio."



María Zambrano em "Poemas"
Sr Teste Edições, Junho de 2020
Página 05

domingo, 13 de novembro de 2022

"Sob a Pele" de Rui Chafes (III)

 
" Sara Antónia Matos: A propósito de proximidade, de amizade, o que é para si a intimidade?
Rui Chafes: É um espaço impartilhável. De qualquer modo, para além do espaço íntimo individual, há o espaço íntimo entre algumas pessoas. Sobre isso, penso sempre que o que se passa entre duas pessoas só a elas diz respeito; tudo o resto são opiniões, nada mais do que opiniões, e as opiniões não têm importância.
É preciso dizer que as pessoas com quem partilho valores, empatias, princípios, modos de estar e preocupações também preservam a sua intimidade. E, portanto, não só não invadem o meu espaço privado, emocional e de trabalho, como são solidárias com ele. Digamos que, sem precisar de se falar nisso, reconhecem esse impartilhável como sendo fundamental manter, por questões de dignidade, moral, ética. Além de amigas, são todas elas pessoas raras, de um mundo antigo e longínquo."


"Sara Antónia Matos: O Tolentino de Mendonça expressa essa ideia de forma muito bela: «Na verdadeira amizade estamos uns com os outros e somos uns para os outros, mantendo porém uma exterioridade: os amigos não se diluem, não se justapõem, não se substituem. [...] [A amizade] é uma forma de exposição ao outro, mas uma exposição que não quebra a reserva, que não invade a solidão.»
Rui Chafes: Considero a invasão do meu espaço insuportável e, portanto, aquilo que eu partilho com quem escolho (e que me escolhe) é tudo o resto, é esse tal mundo silencioso onde as formas se encontram, se confrontam umas às outras e fazem emergir inquietações."


"Sara Antónia Matos: A propósito de intimidade, disse que há um reduto último que não se partilha. Nem com quem se ama?
Rui Chafes: Khalil Gibran dizia: «a pessoa casa-se, partilha tudo mas não partilha o prato». É a tal barreira de que falámos anteriormente. Há limites que não podem ser ultrapassados, para que as relações entre as pessoas se mantenham, mesmo as mais próximas. A distância que assegura a intimidade tem de ser incondicionalmente preservada. Cada pessoa tem de ter o seu espaço, há sempre uma parte íntima, sua e secreta, que deve ser absolutamente protegida mesmo que partilhes a vida com alguém. Claro que deves também respeitar a parte privada da outra pessoa, não a invadindo ou devassando, mantendo uma certa distância. Quando se quebram todas as barreiras é o fim. As pessoas deviam ter isso sempre presente."


"Sara Antónia Matos: Quebrar todas as barreiras é obsceno?
Rui Chafes: Obsceno, sim. Como disse, manter as barreiras de um espaço intactas, não romper, não forçar a entrada, é de uma sabedoria imensa. Não mexer nos papéis pessoais do outro, não querer saber tudo, não exigir o significado de tudo ... Nem tudo tem de ter uma resposta e nem todas as perguntas têm de ser feitas - perguntar tudo também é obsceno. Há perguntas que não se fazem mas, para o saber, é preciso ser-se muito sábio. Isto é sabedoria e, ao mesmo tempo, a maior prova de confiança. Sabedoria e confiança andam juntas, uma leva à outra."



Rui Chafes em "Sob a Pele - conversas com Sara Antónia Matos"
Sistema Solar
1ª edição, Dezembro de 2015
Páginas 68, 69, 81 e 82

sábado, 12 de novembro de 2022

Fotografando Palavras (IV)



Toda a milésima vez é a primeira vez



Texto: Andreia Monteiro
Fotografia: Paula Abreu Silva

Do projecto de Paulo Kellerman, fotografar palavras, aqui 😊

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Apontamentos de um dia de Outono

 

"Sob a Pele" de Rui Chafes (II)

 
" Sara Antónia Matos: Isolamento que o Rui preserva e pratica acerrimamente ...
Rui Chafes: Defendo que os artistas têm de ser egoístas. Têm de criar um espaço (seja físico ou mental) de onde expulsam os outros, numa atitude quase hostil. Talvez esse esforço para criar e conservar um espaço de solidão possa ser demasiado brutal e hostil para os outros, os que rodeiam o artista, mas é desesperadamente essencial para ele. Trata-se da criação de uma «cabana» para conseguir estar isolado, ainda que umbilicalmente esteja ligado ao mundo. Outros há que o fazem através da forma mais radical, a perda, afastando-se literalmente da família e dos amigos: perdendo-os, perdendo-se no mundo ... encontrando-se na sua arte, na sua música, na sua escrita. Noutra ocasião falei-te do Glenn Gould, que se isolou completamente, num esforço radical de puritanismo, para conseguir executar as composições musicais daquela forma genial. É um caso clássico. Mas também há o caso do J.S. Bach, que tinha nove filhos ..."



Rui Chafes em "Sob a Pele - conversas com Sara Antónia Matos"
Sistema Solar
1ª edição, Dezembro de 2015
Páginas 63 e 64

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

"Sob a Pele" de Rui Chafes (I)

 
" ... não acredito que a arte possa ter os mesmos efeitos e transformar o mundo da mesma maneira que uma manifestação social ou um plenário político. São esferas de actuação diferentes. A esfera da arte pode mudar as motivações e as expectativas espirituais das pessoas, a sua intuição e até a sua ética, mas não conseguirá nunca ter consequências políticas directas, isso seria um logro. Aliás, pode ser patético a arte fazer incursões diletantes e amadoras em áreas onde há grandes especialistas. Decididamente, não acredito no poder da «arte política e social», nem sequer quando reclama para si a caução de Guy Debord, por exemplo."


"Acredito que a vulnerabilidade da arte é uma parte importante da sua força e do seu poder. A sua impotência perante as acções do mundo é a sua afirmação."


"Todos nós temos necessidade de reequilíbrio interno e cada um procura-o onde acredita que o vai encontrar. Eu procuro o mar e, por vezes, ouço as vozes do vento, deixo que falem comigo. Mas isso não acontece sempre, pode ser quando menos esperamos."



Rui Chafes em "Sob a Pele - conversas com Sara Antónia Matos"
Sistema Solar
1ª edição, Dezembro de 2015
Páginas 41, 43 e 56

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (XIII)

 
"As mãos têm em si uma infinidade de prazeres. (...) Muita da energia chega até nós através das mãos. Sensações também. A sensação das coisas, texturas, superfícies, coisas ásperas como pinhas e cortiça, coisas suaves como caules e penas e seixos arredondados pela água, a sedução de tecidos diáfanos, as delicadas cócegas de uma lagarta que rasteja, a rugosidade do líquen, o calor do sol, a ferroada do granizo, o brusco golpe da água que cai, a circulação do vento - nada que eu possa tocar ou que me toque, mas que tem a sua própria identidade tanto para a mão como para o olho."



Nan Shepherd em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Página 173

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (XII)

 
"Como enumerar os mundos aos quais o olho me dá acesso? - o mundo da luz, da cor, da forma, da sombra: da precisão matemática do floco de neve, da formação de gelo, do cristal de quartzo, dos padrões dos estames e das pétalas: do ritmo da curva fluida e da linha do abrupto afundamento das faces da montanha. Não sei por que razão é que alguns maciços de pedra, grosseiramente talhados em formas violentas e atormentadas, tranquilizam tão profundamente a mente."



Nan Shepherd em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Página 171

terça-feira, 8 de novembro de 2022

A Vida

 
"Não só de quando em vez há que deixar
a poesia para trás, sem reclamar;
há coisas bem mais importantes
a acontecer. Não podes agarrar
pelas pontas as formas de maior valor;
até que um dia à própria vida,
por mais que a tentemos segurar,
teremos naturalmente de renunciar,
como um pássaro, leve na sua subida."



Robert Walser em "Estou Só E Fora Do Mundo - 50 Poemas"
Sr Teste Edições, Fevereiro de 2022
Página 135

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (XI)

 
"Cada um dos sentidos é uma forma de entrar naquilo que a montanha tem para dar. O paladar pode saborear as bagas silvestres, o arando, o «mirtilo selvagem» e, a mais subtil e doce de todas, a amora-branca silvestre, ou cloudberry, um nome que, por si só, é um sonho. Essa sumarenta esfera de ouro derrete-se de encontro à língua, mas quem é que é capaz de descrever o sabor? A língua não o pode devolver. É preciso encontrar as bagas, douradas quando maduras, para conhecer o seu sabor.
O mesmo acontece com os aromas. Todas as aromáticas e inebriantes fragrâncias - o pinheiro e a bétula, o mirto dos lodaçais, o intenso zimbro, a urze e as orquídeas com cheiro de mel, e o limpo aroma do tomilho selvagem - não significam absolutamente nada em palavras. Existem para serem cheiradas."



Nan Shepherd em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Página 167

Que magnífico rosto era aquele ...

 
"Que magnífico rosto era aquele
que ontem se reflectia
na água que tão calma corria?
Era o rosto da noite que descia.
Alguns dias antes já ele
me tinha olhado das suas profundezas
com aquela expressão suave e amena.
Ah, e as nuvens, como elas literalmente
se banhavam no espelho das águas!
Um barco repousava encostado à margem,
e muito perto subia uma viela.
No fundo das águas crescia
uma floresta, e todo o júbilo
que lá em cima, na beleza dos ares,
como um jogo acontecia, estava agora
inscrito na corrente, que, 
no seu deslizar, parecia
sempre espantar-se com o mundo
que se comprazia em nela se espelhar.
O rosto quase parecia uma batalha,
como se alguém lutasse consigo mesmo
e nos oferecesse a nós esse espectáculo.
As faces eram de uma palidez dourada,
o cabelo castanho, os olhos azuis,
e em volta da boca branca
serpenteava um leve sorriso vermelho."



Robert Walser em "Estou Só E Fora Do Mundo - 50 Poemas"
Sr Teste Edições, Fevereiro de 2022
Página 119

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (X)

 
"Submeter o ouvido ao silêncio é descobrir quão raramente esse silêncio se faz ouvir. Há sempre algo que se mexe. Quando o ar está quase parado, há sempre água que corre; e, aqui em cima, esse é um som de que dificilmente nos conseguimos abstrair, embora em muitas das partes rochosas do planalto estejamos bem acima dos cursos de água. Mas, de quando em quando, há um momento em que o silêncio é quase absoluto, e escutarmo-lo faz com que resvalemos para fora do tempo. Tal silêncio não é uma mera negação do som. É como se fosse um novo elemento, e se a água ainda se fizer ouvir num murmúrio baixo e distante, esse silêncio não é mais do que a orla de um elemento que estamos a deixar para trás, tal como a orla de terra paira suspensa no horizonte do marinheiro."



Nan Shepherd em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Página 165

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

As horas

 
"Correm as horas no seu andamento,
numa só hora há tantas sensações,
o jogo de contrários das emoções,
a nostalgia trazida pelo vento.
Numa só hora nos dá conta o dia
das suas orações, da maldição que arrasa,
e eu sou sempre como uma pobre casa
que se enche de tormento ou de alegria.
A cada hora o mundo se embrenha
num não saber, sem a nada aspirar,
e eu nem sempre sei imaginar
quando dorme o meu mundo, e quando sonha."



Robert Walser em "Estou Só E Fora Do Mundo - 50 Poemas"
Sr Teste Edições, Fevereiro de 2022
Página 35

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (IX)

 
"No pino do Verão, o Norte brilha com luz muito depois de a meia-noite já ter passado. Enquanto observo, a luz escorre pelas arestas das formas que se erguem contra o céu, afiando-as até que as mais esguias tenham uma espécie de brilhante insubstancialidade, como se elas próprias não fossem mais do que luz. Lá em cima, no planalto, a luz permanece noite dentro durante um tempo incrível, muito depois de já ter deixado o resto da terra."



Nan Shepherd em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Página 158

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Luz opressiva

 
"Há duas árvores, na neve,
o céu, cansado da luz,
recolhe-se, só uma leve
melancolia seduz.

Por trás das árvores, no ar,
erguem-se casas na bruma.
Ora se ouve alguém falar,
ora cães ladrando, à uma.

E agora é a bela Lua
do candeeiro que se arredonda.
E logo essa luz se afunda,
qual ferida que se abre, nua.

Quão pequena a vida está, 
tão grande a sombra do Nada.
A curva do céu, cansada
da luz, tudo à neve dá.

As duas árvores, em fundo,
inclinam-se uma para a outra.
Nuvens, em dança de roda,
cruzam o silêncio do mundo."



"Estou Só E Fora Do Mundo - 50 Poemas" de Robert Walser
Sr Teste Edições, Fevereiro de 2022
Página 33

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (VIII)

 "Muito perto dos cumes, sobre as mais pedregosas encostas escarpadas, nidificam as escrevedeiras-das-neves. Tanto no seu canto como na sua aparência, essas pequenas criaturas são portadoras de uma delicada perfeição que é realçada pela crueldade do seu habitat. Se vos sentardes em silêncio durante algum tempo nalguns dos mais solitários e desolados recantos da montanha, onde a imaginação é sobrepujada por implacáveis baluartes de rocha, uma escrevedeira-das-neves acabará por cantar perto de vós com uma incrível doçura. Sentarmo-nos num dos altos e rochosos campos, por volta das sete da manhã de um claro dia de verão, quando o sol acaba de se deter nas matinais neblinas das cavidades dos flancos dos montes, e vermos as pedras ganharem vida com pequenas formas, como se fossem flocos de pedra soprados em redemoinho no ar, é saborearmos um prazer quase epicurista."



Nan Shepherd em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Página 127