domingo, 23 de outubro de 2022

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (VII)

 "Outubro é o mês colorido por aqui, muito mais brilhante do que junho, ardendo mais vivamente do que agosto. Começando no ouro das bétulas e dos fetos das encostas baixas, a cor aparece aos borbotões em todo o tipo de rastejante e inconspícua vegetação que vive entre as raízes das urzes - musgos de um verde luxuriante ou de um castanho-carvalho, ou escarlate, e plantas cobertas de bagas, o arando, o mirtilo, a camarinha e todas as outras. As folhas do arando são de um carmesim flamejante e são as mais belas de todas na floresta de Rothiemurchus, onde os abetos foram abatidos na Grande Guerra, e onde, a toda a volta e transbordando de cada toco, o arando cresce em ramos verticais: assim, em outubro, uma grande quantidade de chamas pontiagudas parece arder a prumo por toda a charneca."



Nan Shepherd em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Páginas 110 e 111

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (VI)

 "Estas flores da montanha parecem indescritivelmente delicadas; os seus caules são esguios, as suas flores frágeis; mas basta escavar um pouco o solo e encontramos raízes de uma tenacidade intemporal. Acachapadas ou torcidas como pedaços de madeira morta ou nódulos, elas conservam sob o solo a energia vital da planta. Mesmo quando todo o crescimento superior desaparece - queimado pelo fogo ou pelo frio intenso ou emurchecido -, estes nós de vida estão por todo o lado. Não há época nem estação em que a montanha não esteja viva neles. Ou se a raiz tiver morrido, as sementes vivas estão no solo, prontas para começar novamente o ciclo de vida. Em nenhum lugar como aqui provou a vida ser invencível. Tudo está contra ela, mas a vida não faz caso."



Nan Shephard em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Páginas 104 e 105

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (V)

 "O som de toda esta água em movimento é tão integrante da montanha como o pólen é da flor. Escutamo-lo sem o ouvir, tal como respiramos sem pensar. Mas para um ouvido atento, o som desintegra-se em muitas notas diferentes - o lento chape de um lago, o trinado claro e audível de um ribeiro, o rugido de uma enchente. Num curto trecho de um regato, o ouvido pode distinguir, simultaneamente, uma dúzia de notas diferentes."



Nan Shepherd em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Página 78

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (IV)

 
"Aquela nuvem, como outras dentro das quais caminhei, era molhada, mas não molhava. Não nos molhou até que, já quase no cume, abriu em chuva forte, permitindo-nos finalmente ver os covões nos flancos dos montes, envoltos em névoa. Algumas nuvens atacam o viajante nas alturas - nuvens vindas de mais abaixo, uma vez que aqui em cima são chuva, ou fiapos de neve -, outras aconchegam-no de modo suave, mas tão persistentemente que mais valia atravessar um lago. Ou então a humidade pode ser mais delicada, condensando-se em gotículas nas sobrancelhas e nos cabelos e nas roupas de lã, como acontece pela manhã com o orvalho depois de uma noite ao relento. Ou a nuvem pode não ser mais do que uma sensação na pele, pegajosa, ou meramente fria. Uma vez, estive no interior de uma nuvem que não transmitia qualquer tipo de sensação. No seu interior, nada nela era tangível ou visível, embora ela tivesse um aspeto espesso e ameaçador quando nos aproximávamos. No interior da nuvem, tudo tinha sido monotonamente seco."



Nan Shepherd  em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Páginas 66 e 67

domingo, 16 de outubro de 2022

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (III)

 "A inacessibilidade deste lago é parte do seu poder. O silêncio pertence-lhe. Se os jipes o descobrem, ou o funicular o desfigura, parte do seu sentido desaparecerá. O interesse da maioria não é relevante aqui. Por vezes, é necessário sermos exclusivos, não em prol da posição social ou da riqueza, mas sim daquelas qualidades humanas que podem apreender a solidão.
A presença de outra pessoa não diminui o silêncio, mas potencia-o, se essa pessoa for o tipo certo de companheiro de montanha. O perfeito companheiro de montanha é aquele cuja identidade está, no momento, incorporada na da montanha, tal como sentimos que a nossa própria identidade está também incorporada."



Nan Shepherd  em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Página 63

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (II)

 
"Ela vai para a montanha em busca não dos grandes espaços abertos, mas sim de «dentros» profundos, de profundos «recessos». A grande quantidade de paisagens escondidas é algo que a fascina: as «cavidades subterrâneas» das Ardenas, as «reentrâncias» e os «impressionantes abismos» das Cairngorms.
(...)
Esta preocupação com o «interior» da montanha não é uma presunção; pelo contrário, essa preocupação engendra as tentativas do livro de forma a alcançar aquilo a que ela chama um «acesso à interioridade». Para Shepherd, havia um tráfego contínuo entre as paisagens exteriores do mundo e as paisagens interiores do espírito. Ela sabia que a topografia há muito que oferecia aos humanos poderosas alegorias, perspicazes formas de nos representarmos a nós próprios para nós próprios, fortes meios de moldar memórias e de dar forma ao pensamento. É assim que o seu livro investiga as relações entre a montanha material e a «montanha» metafórica."



Nan Shepherd  em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril de 2022
Página 23

"A Montanha Viva" de Nan Shepherd (I)

 "Shepherd - tal como Neil Gunn e como o explorador e ensaísta escocês W.H. Murray - foi fortemente influenciada pela sua leitura do budismo e do Tao. Fragmentos de filosofia Zen brilham na prosa dos três escritores, como salpicos de mica em granito. Hoje em dia, a leitura do seu trabalho, com a sua fusão entre a paisagem das terras altas e a metafísica budista, permanece algo de espantoso: é como encontrar uma peça Noh executada num quintal ou crisântemos a florescer na cavidade de um flanco de um monte escocês.
«Uma montanha», diz Shepherd de uma forma muito zen, «tem um dentro.»



Nan Shepherd  em "A Montanha Viva"
Edições 70, Abril 2022
Página 22

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Fotografando palavras (III)

 

Podes libertar-me. A vida já me ensinou a voar sozinha.



Texto: Patrícia Grilo
Fotografia: Paula Abreu Silva

Do projecto de Paulo Kellerman, fotografar palavras, aqui 😊