quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Sintra, a Montanha Mágica (III)

 
"Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre nesta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada
da vida ...
(...)

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim ..."



Álvaro de Campos, Poesias de Álvaro de Campos, c. 1926

Sintra, a Montanha Mágica (II)

 "E, nas serras da Lua conhecidas
Sojuga a fria Sintra o duro braço;
Sintra, onde as Naiades, escondidas
Nas fontes vão fugindo ao doce laço
Onde Amor as enreda brandamente,
Nas águas acendendo fogo ardente."


Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 1572

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

 
"Obtida a liberdade de expressão, a preocupação primeira da ética da informação, precisamente como reacção ao liberalismo extremo, é a responsabilidade dos media. A responsabilidade no uso da liberdade de que dispõem. A informação possível é abundante e, evidentemente, uma das funções do informador é seleccioná-la e responder perante o público receptor dessa informação. Não pode haver outro critério da responsabilidade a não ser o da justiça: é boa, está bem seleccionada a informação que deve ser dada por uma questão de justiça. Dito de outra maneira, não aquela que vale porque satisfaz interesses comerciais - porque vende, permite aumentar a tiragem do jornal, subir a audiência televisiva -, mas a que serve o interesse comum da sociedade.
(...)
Se é certo, como penso, que a informação dos meios de comunicação sensibiliza e cria atitudes e opiniões, polarizar os interesses no interesse comum é apenas tratar de sensibilizar toda a sociedade em relação a determinados temas e situações que, ainda que de facto não nos afectem, deveriam afectar-nos e mobilizar-nos.
(...)
A boa informação deveria formar as pessoas, deveria ter um fim educativo consciente, já que toda a informação, em qualquer dos casos, tenha ou não essa intenção, influi nos seus receptores. Não se pode duvidar, de modo nenhum, do facto dos meios de comunicação serem um dos meios educadores do nosso tempo."



"Paradoxos do Individualismo" de Victoria Camps
Relógio D' Água, 1996
Páginas 152 e 153 

Queijo Munster

 "De aparência no entanto insignificante, pequeno, circular, pouco espesso, hesitante entre o amarelo e o alaranjado, arvorando por vezes crostas brancas ou cinzentas. Aberto, revela uma carne gredosa nas idades mais recuadas, de uma palidez de falésia normanda, que desaba facilmente sob a ponta da faca. Com o tempo, assume uma flacidez que pode chegar ao derramamento, tornando-se ocre e luzidio enquanto a sua casca se enruga como as faces de uma ricaça demasiado empoada."



"Perfumes" de Philippe Claudel
Sextante Editora
1ª edição, Abril de 2014
Página 122

sábado, 20 de fevereiro de 2021

 
" ... a sabedoria do bem e do mal nos está vedada como saber absoluto, pois o nosso conhecimento do que se deve fazer é tão parcial e fragmentário como parcial e fragmentário é o indivíduo ..."
(...)
Hoje toda a gente sabe e aceita que não há uma visão do mundo única e privilegiada, que todo o saber é relativo ao ponto de vista do investigador ou do estudioso - ou pelo menos, ao ponto de vista da sua cultura -, que a objectividade pura é um mito, mesmo nas ciências mais empíricas, que os absolutos são incompreensíveis, e que tudo o que é interessante é passível de opiniões diferentes.
(...)
As epistemologias não confiam na capacidade do sujeito para alcançar a verdade: falam da nossa realidade intersubjectiva, da inevitabilidade do diálogo. Só existe objectividade intersubjectiva, o consenso é o que existe de mais aproximado à verdade ...
(...)
Também é certo que todos nos tornamos mais humildes no que diz respeito às possibilidades do conhecimento ou das ciências. Qualquer cientista ou investigador está consciente das limitações da sua disciplina, da obrigatória interdependência entre os diferentes saberes."



"Paradoxos Do Individualismo" de Victoria Camps
Relógio D' Água, 1996
Páginas 87 e 144

Pássaro breve

 "Pássaro breve
Rompendo a chuva caída
Na minha melancolia.

Ave voando
Na chuva que vai caindo
Em mim sem cair no dia.

Pássaro leve
Cantando o sol que amanhece
Na noite que me entristece."



"Poesia Completa" de Natália Correia
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Maio de 2007
Página 47
 
"Cresci, mas continuo a manter uma relação muito narcisista com os livros. Quando um relato me invade, quando a sua chuva de palavras penetra em mim, quando compreendo de forma quase dolorosa o que conta, quando tenho a segurança - íntima, solitária - de que o seu autor mudou a minha vida, volto a acreditar que eu, especialmente eu, sou a leitora de quem esse livro andava à procura."



"O Infinito num Junco" de Irene Vallejo
Bertrand Editora
1ª edição, Outubro de 2020
Página 109
 
"Também eu gosto da noite
como vinho

também eu gosto das rosas
e do sal

também eu caminho
sonho
e imagino

sou natural

mas trago nos pés um espinho
o bem
e o mal."



"Poemas Quotidianos" de António Reis
Edições Tinta-da-China
1ª edição, Julho de 2017
Página 56
 
"Amo o nevoeiro porque ele me permite sempre entrar no mais profundo de mim mesmo. Caminhando ao ar livre, numa natureza que não me proporciona senão as suas margens imediatas, embora já devoradas pela abrasão de uma borracha invisível, o mundo torna-se uma simples projeção da alma, uma hipótese penetrante e um pouco fria. Estou só. Intimamente só, e enrolo-me neste pensamento como o faz o caracol na sua concha. Há na presença opaca do nevoeiro, apenas atravessado aqui e ali, segundo uma lógica indecifrável, por camadas de brancura que fazem crer em fontes de luz dispostas mais longe, a chegada de um fim do mundo benigno, sem consequências maiores e sem dor."



"Perfumes" de Philippe Claudel
Sextante Editora
1ª edição, Abril de 2014
Página 104

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Turva hora onde

 
"Turva hora onde
Principia a noite
E o dia se esconde.

Hora de abandonos
Em que a gente esquece
Aquilo que somos
E o tempo adormece.

Nevoenta hora,
Hora de ninguém
Em que a gente chora
Não sabe por quem.

E tudo se esconde
Nessa hora onde
Por estranha magia
Brilha o sol de noite
E o luar de dia."



"Poesia Completa" de Natália Correia
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Maio de 2007
Página 45

Molho de Tomate

 
"Os tomateiros desenvolvem assim um forte talento aromático - está-se subitamente num jardim de pároco provençal - enquanto as alfaces libertam uma frescura frágil, os pepinos, cheiros picantes e proletários, as folhas dos feijões, uma transpiração de selva. Maturação. Os tomates turgescentes, fendidos aqui e ali sob a pressão da carne, inchados, quistosos, soberbamente desiguais, são depostos em cestos de verga. Do pátio atrás da casa, sombra fresca do norte, o meu pai tira um grande queimador que pousa diretamente no solo e liga a uma garrafa de gás. A minha mãe limpa caçarolas em ferro branco tão grandes que eu poderia lá ser cozido. Contemplo a cena, debruçado na janela aberta da nossa cozinha. Massacre azteca: a minha mãe tem as mãos ensanguentadas. A sua faca corta, esmaga, separa, faz saltar a popa, põe a nu sementes, carne e alvéolos. Os tomates choram o seu sumo. Imagino uma compota na qual tenho o desejo súbito de mergulhar os braços. As caçarolas estão cheias. Tudo isso cochicha, marulha, palra, ferve. A minha mãe mexe com uma colher de pau, prova com o dedo, tempera, trauteia Que sera sera. O meu pai acompanha-a a assobiar, instala o esterilizador, espécie de caldeira em zinco que parece um chapéu alto para gigante de feira. Os tomates, é claro, desapareceram. Só restam os seus sangues misturados, doces, unidos, ferventes, cujos vapores sobem até mim e me deixam encantado. Açúcar e sol. Condensado estival. Com a ajuda de uma concha para sopa, a minha mãe enche os boiões que o meu pai lhe estende, depois este aplica um anel de borracha no seu gargalo, fecha-os, e coloca-os no esterilizador."



"Perfumes" de Philippe Claudel
Sextante Editora
1ª edição, Abril de 2014
Páginas 96 e 97
 "Conheço 
entre todas
a jarra que enfeitaste

têm o jeito
com que compões o cabelo
as flores
que tocaste."



"Poemas Quotidianos" de António Reis
Edições Tinta-da-China
1ª edição, Julho de 2017
Página 45

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

 
"Como fazer de um indivíduo livre e, além disso, proprietário, um indivíduo moral, preocupado não só consigo mesmo, mas também com os outros? São variadas as respostas a esta questão no pensamento moderno. Hobbes, por exemplo, pensa que o próprio egoísmo é a base da racionalidade e até da moralidade do indivíduo: este persegue o seu próprio interesse, mas basta que reflicta um pouco, que faça uso da razão, para que se dê conta que não pode sobreviver sozinho. Necessita do estado que o proteja, necessita de leis e de obrigações."



"Paradoxos do Individualismo" de Victoria Camps
Relógio D' Água, 1996
Página 51

Canela

 "Cresci num país de estações, cortadas a machado, brutais e definitivas. E o inverno não é a menor de entre elas que encerra os anos como se fecha uma porta de um quarto pejado de ouro e cristal. Nele sonha-se. Nele canta-se. Nele come-se e bebe-se. Esses festins e repastos de dezembro regados com vinhos da Alsácia, Gewürztraminer * e Riesling **, e aguardentes de pera, de ameixa amarela ou de framboesa, não acabarão a bem dizer senão por altura da Candelária, numa valsa de crepes quentes. A canela é então a convidada exótica. Quase nunca é usada no resto do ano, a não ser de tempos a tempos numa compota de maçãs ou, em fins de agosto, sobre uma tarte de quetsches ***. Com os primeiros frios ela dá a ver o seu rosto apimentado. Tiram-se de boiões de vidro os seus pauzinhos que parecem pergaminhos que as chamas tivessem tostado e enrolado sobre si mesmos. Reduzem-se a pó num almofariz. Presente de Rei Mago. O Oriente instala-se nas cozinhas trazendo-lhes o seu cortejo e as suas miragens que derrama sobre os móveis em Formica e no velho oleado. Areias, pastéis, pãezinhos, brioches, linzertortes ****, kouglofs *****, todos polvilhados de canela e por ela sublimados. A cozinha faz-nos mergulhar na Europa e no tempo, viajantes enfarinhados e gulosos. Eu quis durante anos estabelecer uma geografia do strudel, esse subtil doce enrolado numa massa fina, com maçãs e passas na sua versão mais autêntica, e que desenha, mais ou menos, as fronteiras do antigo Império austro-húngaro já que se pode degustá-lo tão bem em Viena como em Veneza, Trieste, Bucareste, Varsóvia, Praga, Budapeste ou Brno, mas igualmente em Nova Iorque onde tantos emigrados das ruínas e das cinzas vieram esperançar-se de novo na vida. A bem dizer, através deste doce, é a canela que me possui, a sua entontecedora música olfativa de inverno e de festa, estupefaciente lícito próprio para tornar elegante e fina a mais francesa das massas, para dar-lhe na verdade a beleza de um acento. Mesmo o vinho tinto corrente, por pouco que o deixem levantar fervura longamente numa caçarola num canto do forno, depois de lhe ter junto açúcar, uma rodela de laranja, uma pitada de cravinho e um punhado de canela, se transfigura graças a ela num diabo enfeitiçado que queima as mãos à volta do copo no qual o servem, aquece a boca e a garganta, despeja o fogo no ventre, faz nascer risos e luzes ao canto dos olhos e nas faces felizes que o frio do exterior enrubesceu. As línguas põem-se a tecer contos e fantasmagorias. Batem-se as lembranças, as da vida, as da História e as dos romances, como cartas de jogar. Então começa-se a falar subitamente de minarete, de tundra e de princesas reclusas. De caravançarai, de pequenos cavalos e de estepes. De tabaco de mascar, de espadas quebradas, de Imperador transido no seu castelo, de couro gelado e de soldados que se mantêm fiéis, afogados numa água russa, quando tudo está já perdido, o mundo está morto e eles jamais o saberão."


* Vinho branco aromático, feito de uma casta de uvas de pele rosada. Tem um grau alto de açúcar, com um vistoso buquê de líchia. Também pode ter aromas de rosa, maracujá e notas florais.

** Casta de uva branca originária da região da Alsácia, que se estendeu à Alemanha e Áustria. Produz vinhos de alta qualidade.

*** Espécie de ameixa

**** Tarte de origem austríaca, cujo nome provém da cidade de Linz. É coberta e decorada com uma malha de tiras da massa.

***** Bolo típico da Alsácia




"Perfumes" de Philippe Claudel
Sextante Editora
1ª edição, Abril de 2014
Páginas 34 e 35

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

 
"À noite, observo Vénus, observo com atenção as mudanças desta bela Donzela. Prefiro-a como Estrela Vespertina, quando surge como se viesse do nada, por magia, antes de descer e se esconder atrás do Sol. Uma centelha de luz eterna. É precisamente ao Crepúsculo que acontecem as coisas mais interessantes, porque, nessa altura, as diferenças simples se dissipam. Eu era capaz de viver num Crepúsculo perpétuo."



"Conduz O Teu Arado Sobre Os Ossos Dos Mortos" de Olga Tokarczuk
Cavalo de Ferro
3ª edição, Novembro de 2019
Página 51

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Casta e fabulosa a lua

 
"Casta e fabulosa a lua
Estampada na vidraça.
De sentinela, na rua,
Só o silêncio que passa.

Risca a treva o clarão
De uma porta que se abre
Para uma perdida verdade
Submersa na solidão.

E aquela estrela cadente
Numa curva já sumida
Escreve no céu de repente
Todo o mistério da vida."



"Poesia Completa" de Natália Correia
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Maio de 2007
Página 42

Igreja

 
"Procura-se sempre dar forma às chaves mesmo se faltam as fechaduras. Sempre amei as igrejas. Frequentei-as muito, no tempo em que acreditava em Deus, e hoje ainda, quando já não creio. Agrada-me o curioso protocolo do seu silêncio. A sua retirada do mundo também, mesmo no coração das cidades mais barulhentas. As suas paredes distanciam, quer do tempo, quer da loucura das coisas, quer da dos seres."



"Perfumes" de Philippe Claudel
Sextante Editora
1ª edição, Abril de 2014
Página 89
 
" ... Demétrio deve ter compreendido que possuir livros é um exercício de equilíbrio sobre a corda bamba. Um esforço para unir os pedaços dispersos do Universo até formar um conjunto com sentido. Uma arquitetura harmoniosa perante o caos. Uma escultura de areia. O refúgio onde protegemos tudo aquilo que receamos esquecer. A memória do mundo. Um dique contra o tsunâmi do tempo."



"O Infinito Num Junco" de Irene Vallejo
Bertrand Editora
1ª edição, Outubro de 2020
Página 47