quinta-feira, 30 de julho de 2020

"Dava muito prazer seguir uma linha de pensamento sem ter oposição. Dificilmente seria eu o primeiro a pensar assim, mas era possível ver a história do egoísmo humano como uma série de descidas de categoria a tender para a extinção. Tempos houve em que estávamos entronizados no centro do Universo, com o Sol e os planetas, todo o mundo observável, a girar à nossa volta numa dança de veneração intemporal. Depois, desafiando os padres, a astronomia, impiedosa reduziu-nos a um planeta a girar à volta do Sol, um rochedo entre outros. Mas, ainda assim, continuámos a ser especiais, brilhantemente únicos, nomeados pelo criador como senhores de todas as coisas vivas. Depois, a biologia confirmou que éramos iguais a todos os outros, partilhando uma ascendência comum com as bactérias, os amores-perfeitos, as trutas e as ovelhas. No princípio do século XX, chegou a um exílio ainda mais profundo nas trevas, quando a imensidão do nosso Universo foi revelada e até o Sol se tornou um entre biliões na nossa galáxia, entre biliões de galáxias. Por fim, quanto à consciência, o nosso último reduto, provavelmente estávamos certos ao pensar que a tínhamos em maior quantidade do que qualquer outro ser ao cimo da Terra. Mas a mente que outrora se tinha revoltado contra os deuses estava prestes a ser destronada fruto do seu próprio extraordinário alcance. Numa versão comprimida, inventaríamos uma máquina um pouco mais inteligente do que nós, depois faríamos com que essa máquina inventasse outra máquina que estaria para lá do nosso entendimento. Que necessidade haveria então de nós?"



"Máquinas Como Eu e pessoas como vocês" de Ian McEwan
Gradiva Publicações
1ª edição, Abril de 2019
Páginas 88 e 89
"No tocante ao conteúdo do recalcamento, as coisas eram diferentes. Neste aspecto, eu não podia dar razão a Freud. Ele via no trauma sexual a causa do recalcamento e isto não me bastava. A minha prática fizera-me conhecer numerosos casos de neuroses em que a sexualidade só desempenhava um papel secundário e o que estava em primeiro plano eram outros factores, por exemplo, o problema da adequação social, da opressão por circunstâncias da vida trágicas, dos desejos de prestígio, etc. Mais tarde, apresentei esses casos a Freud; mas ele não admitia como causas outros factores que não a sexualidade. Isso, para mim, era muito insatisfatório.
(...)
Freud nunca se perguntou porque é que tinha de falar constantemente sobre sexo, porque é que esta ideia se apossou tanto dele. Nunca tomou consciência de que, "na monotonia da interpretação", se exprimia uma fuga de si próprio ou daquele outro lado dele que talvez pudesse caracterizar-se como "místico". Sem reconhecer este lado, ele não podia, contudo, pôr-se em harmonia consigo próprio. Era cego relativamente ao carácter paradoxal e à ambivalência dos conteúdos do inconsciente e não sabia que tudo o que emerge do inconsciente tem um alto e um baixo, um dentro e um fora."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Páginas 156, 160 e 161

segunda-feira, 27 de julho de 2020

"Quando andei a estudar Antropologia, predominava a ideia de que não existia uma natureza humana universal. Era uma ilusão romântica, um mero produto variável das condições locais. Só os antropólogos, que estudavam em profundidade outras culturas, que conheciam a beleza da variedade humana em toda a sua extensão, conseguiam ver quão absurda era a ideia dos valores humanos universais."



"Máquinas Como Eu e pessoas como vocês" de Ian McEwan
Gradiva Publicações
1ª edição, Abril de 2019
Página 33
"O cerne de todo o ciúme é a falta de amor."

"Quando se trata da vivência interior, da esfera mais íntima, a maior parte das pessoas fica inquieta e há muitos que fogem."

"Ninguém tem obrigações para com um conceito e é esse, justamente, o conforto procurado, que promete protecção contra a experiência. O espírito, porém, não vive em conceitos, vive em actos e factos. Só com palavras não se leva a água ao moinho e, contudo, repete-se este procedimento ao infinito."

"Uma verdade científica era, para mim, uma hipótese satisfatória para o momento, mas não um artigo de fé para toda a eternidade."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Páginas 147, 151, 153 e 159
" ... os impactos mais interessantes da meditação não são uma saúde melhorada ou um desempenho mais arguto nos negócios, mas um maior alcance na direcção da nossa melhor natureza.
(...)
Os objectivos mais alargados da via profunda cultivam qualidades perenes como o altruísmo, a serenidade, a presença bondosa e a compassividade imparcial - traços alterados elevadamente positivos."



"Traços Alterados" de Daniel Goleman e Richard J. Davidson
Temas e Debates
1ª edição, Fevereiro de 2018
Página 14
"Percebi que não se chega a lugar nenhum se não se falar das coisas que são conhecidas de todos. Quem não tem a noção disto não compreende a ofensa que é para o seu próximo falar-lhe de alguma coisa que lhe é desconhecida. Só se perdoa uma maldade dessas ao escritor, ao jornalista ou ao poeta."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Página 117

VIII. Concentração Meditativa

"85 (...)
Regozijemo-nos agora na solidão,
Em lugares vazios de todos os conflitos e emoções negativas:
A paz e silêncio da floresta.

86. Felizes os absortos no bem dos outros,
Que vagueiam em lugares aprazíveis de pedra maciça,
Refrescados pelos raios de sândalo da lua,
Apaziguados pelas brandas brisas florestais."



"A Via Do Bodhisattva" de Shantideva
Ésquilo
1ª edição, Maio de 2007
Página 143
"A minha compaixão com as criaturas não datava das extravagâncias budistas da filosofia de Schopenhauer, antes assentava nos fundamentos mais profundos de uma atitude de espírito primitiva, da identificação inconsciente com o animal."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Página 115
"A filosofia orientadora de Tsiolkovsky era esta «A Terra é o nosso berço, mas não podemos ficar eternamente no berço.» Acreditava numa filosofia chamada cosmismo, que defende que o futuro da Humanidade é explorar o espaço exterior. Em 1911, escrevia: «Pôr os pés no solo de um asteróide, estender a mão e apanhar uma pedra do solo lunar, construir estações móveis no espaço, organizar anéis habitados em torno da Terra, da Lua e do Sol, observar Marte à distância de muitas dezenas de kms, aterrar nos seus satélites ou mesmo na sua superfície - não há maior loucura!»



"O Futuro da Humanidade" de Michio Kaku
Editorial Bizâncio
1ª edição, Outubro de 2018
Página 47

sábado, 25 de julho de 2020

" ... não era inaudito nem transcendente haver talvez acontecimentos que iam além das categorias limitadoras do tempo, espaço e causalidade. Havia mesmo animais que pressentiam o tempo e os terramotos, sonhos que anunciavam a morte de determinadas pessoas, relógios que paravam no momento da morte, copos que se estilhaçavam no momento crítico, tudo coisas que, no meu mundo de até então, eram evidentes. E agora eu era, aparentemente, o único que alguma vez ouvira falar dessas coisas! Perguntei muito seriamente a mim próprio a que mundo viera afinal parar. Era, manifestamente, o mundo da cidade, que nada sabia do mundo do campo, o mundo real das montanhas, florestas e dos rios, dos animais e dos pensamentos de Deus (isto é: as plantas e os cristais). Achei esta explicação consoladora, de qualquer modo, a princípio, ela reforçou a minha auto-estima; porque tive a perfeita noção de que o mundo da cidade, apesar da quantidade do seu conhecimento erudito, era intelectualmente limitado."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Página 114

Peónias

"As cortinas de brocado estão enroladas. Vejam a rainha 
de Wei!
Ainda empilha colchas bordadas, o príncipe O em Yueh.
Mãos pendentes perturbam, volteiam, brincos de jade
esculpido.
Cinturas saltitantes competem na dança, saias esvoaçantes
de açafrão.
As velas de Shih Ch'ung - quem as aparará?
Turíbulos de Hsun Yu, onde não fumega o incenso.
Num sonho deram-me um pincel de muitas cores
Para escrever nas pétalas uma mensagem às nuvens da
manhã."



"Chuva na Primavera e Outros Poemas" de Li Shang-Yin
Assírio & Alvim, Outubro de 2001
Página 28
"Embora nós, seres humanos, tenhamos a nossa própria vida pessoal, somos, apesar disso, por outro lado, em grande medida, os representantes, as vítimas e os patronos de um espírito colectivo cujos anos de vida representam séculos. Podemos bem julgar durante a vida inteira que seguimos a nossa própria cabeça e nunca descobrimos que, no fundamental, fomos figurantes no palco do teatro do mundo. Existem, porém, factos que não conhecemos, mas, mesmo assim, influenciam a nossa vida, e tanto mais quanto são inconscientes."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Página 104

Escrito na Parede de um Mosteiro

"Rejeitaram a vida procurando a Via. As suas pegadas diante de nós.
Decisão inabalável: oferecer os pensamentos, destroçar os corpos.
Julgando-o enorme um grão de milho engana-nos sobre o Universo.
Julgando-o pequeno o Mundo esconde-se na ponta de uma agulha.
Antes de ter o ventre cheio a ostra pensa na nova acácia.
O âmbar, quando se deposita, recorda ter sido um pinheiro.
Se acreditarmos nas palavras escritas nas folhas indianas
Ouviremos todo o passado e o futuro num toque do sino do templo."



"Chuva na Primavera e Outros Poemas" de Li Shang-Yin
Assírio & Alvim, Outubro de 2001
Página 26
"O passado é tremendamente real e presente e apodera-se de todos os que não possam pagar o seu resgate com uma resposta satisfatória."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Página 101

A Tzu-Chi: Entre as «Flores»

"A luz no lago, de súbito, esconde-se atrás do muro,
Invadem o quarto os cheiros misturados de flores.
Na borda do biombo, o pó que a borboleta espalhou,
Na janela lacada, a mancha amarela da abelha.
Deixa esses papéis oficiais para os escriturários,
Há um criado para cada funcionário público honesto.
Vamos de cavalgada ouvir os poemas um do outro.
Que há de tão urgente nesses assuntos em que perdes o coração?"



"Chuva na Primavera e Outros Poemas" de Li Shang-Yin
Assírio & Alvim, Outubro de 2001
Página 25
"Com o reino das plantas, a manifestação terrena do mundo divino começava como uma espécie de comunicação directa. Era como se se tivesse espreitado por cima do ombro do Criador, que julgava não estar a ser observado, no momento em que estava a produzir brinquedos ou peças decorativas. Por seu lado, o ser humano e os "verdadeiros" animais eram partes de Deus que se tinham tornado autónomas. Por isso, podiam andar pelo mundo autonomamente e escolher os seus lugares de habitação. Em contrapartida, o mundo das plantas estava preso ao seu sítio acontecesse o que acontecesse. Ele exprimia, não apenas a beleza, mas também as ideias do mundo divino, sem qualquer intenção nem desvio. Em particular as árvores eram misteriosas e pareciam-me representar directamente o sentido incompreensível da vida. Por isso, a floresta era o local em que se sentia com maior proximidade o sentido mais profundo e os efeitos terríveis."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Páginas 81 e 82

Exílio

"Um dia de primavera no fim do mundo.
No fim do mundo, de novo o dia passa.
O melro chora, como se fossem as suas lágrimas
Que molham os ramos cimeiros das árvores."



"Chuva na Primavera e Outros Poemas" de Li Shang-Yin
Assírio & Alvim, Outubro de 2001
Página 21

quinta-feira, 23 de julho de 2020

"Tal como os animais, também as pessoas me pareciam ser inconscientes; olhavam para o chão ou para cima, para as árvores, para verem o que poderia utilizar-se e para que fim; tal como os animais, agrupavam-se, acasalavam e lutavam entre si e não sabiam que viviam no cosmos, no mundo de Deus, na eternidade onde tudo nasce e tudo já morreu.
Eu amava todos os animais de sangue quente, porque nos são estreitamente aparentados e participam da nossa ignorância. Amava-os, porque têm uma alma como nós e, como eu acreditava, os compreendemos instintivamente. Afinal, assim pensava, eles vivem, como nós, a alegria e o luto, o amor e o ódio, a fome e a sede, o medo e a confiança - todos os conteúdos essenciais da existência, com excepção da linguagem, da consciência aguda, da ciência. É certo que eu admirava esta última de forma convencional, mas encontrava nela a possibilidade de um afastamento e um desvio do mundo divino e uma degenerescência de que o animal não era capaz."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Página 81

quarta-feira, 22 de julho de 2020

" ... estava próximo da natureza, da Terra, do Sol, da Lua, do tempo, da criatura viva e, sobretudo, também da noite, dos sonhos e do que quer que "Deus" provocasse directamente em mim. Ponho aqui "Deus" entre aspas. É que a natureza, tal como eu próprio, parecia-me posta de lado por Deus, como não-Deus, embora tivesse sido criada por Ele como expressão do seu ser. Não me entrava na cabeça que o ter sido feito à imagem e semelhança apenas se aplicasse ao ser humano. Na verdade, parecia-me que as altas montanhas, rios, lagos, as belas árvores, flores e animais manifestavam muito mais a essência de Deus do que os seres humanos nas suas roupas ridículas, na sua baixeza, estupidez, vaidade, mentira e no seu repugnante egoísmo."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Página 61

Ronda dos Bairros

"Subitamente, o sucesso no Retiro da Severa era enorme. Amália, que desde criança sabia de cor os tangos dos filmes de Carlos Gardel e todas as cantigas das grandes folhas impressas dos ceguinhos de pedir, não tinha nada para cantar que fosse seu e ficava constrangida ao cantar os fados dos seus colegas, para ela já célebres e muito importantes. Foi então, que um fadista humorístico, Francisco dos Santos, lhe escreveu um fado sentido, um fado para essa nova voz tão diferente de todas as outras vozes, que Fernando de Freitas, que tocava guitarra no Retiro da Severa, musicou.

E Amália aprendeu aquele novo fado, que era o seu primeiro fado, a correr, entre bastidores, pois estava na hora de cantar, e deu-lhe tanta vida com um grito no final, que pôs todo o público de pé a aplaudi-la, nessa grande noite ainda de Primavera de 1939, no Retiro da Severa."



RONDA DOS BAIRROS

Sentindo-me fadista e reforçando a amarra
Que prende no meu peito a sensibilidade,
Sobraçando, contente, uma velha guitarra
De noite percorri os bairros da cidade.

Em todos eu cantei uma trova de amor
Em Alfama, Madragoa, em Alcântara e por Belém,
Subi ao Bairro Alto, o bairro sonhador,
Aonde o fado vibra eternamente bem.

Eu quis saber assim onde melhor cantava
Unida à convulsão da minha nostalgia
E às quatro da manhã eu reparei que estava
Junto a uma capela, ali, na Mouraria!

Senhora da Saúde, a santinha benquista,
Parece que escutou a trova que eu cantei:
- Senti-me mais mulher, senti-me mais fadista,
Na velha Mouraria aonde o fado é lei! ..."




"O Fado da Tua Voz - Amália e os Poetas" de Vítor Pavão dos Santos
Bertrand Editora
1ª edição, Novembro de 2014
Páginas 51 e 52 

terça-feira, 21 de julho de 2020

"Sabia como, com um gesto de braços e mãos, varrer, indicar e simbolizar as estrelas e toda a taça do céu, os terrenos, ladeados por árvores negras, as vagas encapeladas que constituíam as montanhas, uma tempestade terrestre congelada no máximo da sua violência, ou ondas de pedra a deslocarem-se para leste com infinita lentidão. Joseph perguntava-se se haveria palavras que descrevessem tais coisas."



"A Um Deus Desconhecido"  de John Steinbeck
Editora Livros do Brasil
Março de 2007
Páginas 65 e 66

quarta-feira, 15 de julho de 2020

"A existir um tema central neste livro, seria o de que os benefícios da natureza funcionam ao longo de uma curva dose/resposta. Tim Beatley, director do Projecto das Cidades Biófilas da Universidade da Virgínia, tem promovido o conceito de «pirâmide da natureza». Trata-se de uma listagem recomendada para suprir as necessidades humanas relativas à natureza, o que me parece uma ideia genial.
(...)
Inspirado pela omnipresente pirâmide alimentar, Beatley coloca na base as interacções diárias com a natureza circundante que nos ajudam a reduzir a ansiedade, encontrar um foco de atenção e aliviar a fadiga mental. Incluem-se aqui os pássaros, as árvores e as fontes dos nossos bairros, os nossos animais de estimação e plantas domésticas, o consumo diário de vegetais, o tratamento paisagístico naturalista e a arquitectura pública e privada que permite obter luz natural, ar fresco e pedaços de céu azul.
(...)
Ao subirmos na pirâmide, encontramos as visitas semanais aos parques naturais e aos cursos de água, ou seja, aos lugares onde os sons e incómodos da cidade diminuem de intensidade e onde deveríamos, de acordo com a recomendação finlandesa, permanecer pelo menos uma hora por semana. Poder-se-ão incluir aqui, se tivermos sorte, as áreas verdes citadinas maiores e mais selvagens ou os parques regionais não muito longínquos.
Mais acima ainda na pirâmide, encontramos os lugares cujo acesso requer mais de nós: as excursões mensais a florestas ou outras áreas naturais que permitam o descanso e o escapismo, na linha do que o japonês Qing Li recomenda - um fim de semana por mês - para o nosso sistema imunitário.
No topo da pirâmide, encontramos as raras, mas essenciais, doses de natureza selvagem, doses essas que, segundo Beatley e cientistas como David Strayer, da Universidade do Utah, nos são necessárias uma ou duas vezes por ano, em intensas interacções de vários dias. Como vimos já, estas viagens podem reorganizar-nos por dentro, catalisando os nossos sonhos e esperanças, enchendo-nos de espanto e espírito de entreajuda e tranquilizando-nos quanto ao lugar que ocupamos no universo. Poderão existir alturas específicas em que a permanência na natureza selvagem nos seja mais benéfica, tal como durante a tumultuosa formação de identidade na adolescência ou a seguir a um luto ou um trauma."



"A Natureza Cura" de Florence Williams
Bertrand Editora
1ª edição, Fevereiro de 2018
Páginas 265 e 266

A Pedra

"Pedra sendo
Eu tenho gosto de jazer no chão.
Só privo com lagarto e borboletas.
Certas conchas se abrigam em mim.
De meus interstícios crescem musgos.
Passarinhos me usam para afiar seus bicos.
Às vezes uma garça me ocupa de dia.
Fico louvoso.
Há outros privilégios de ser pedra:
a - Eu irrito o silêncio dos insectos.
b - Sou batido de luar nas solitudes.
c - Tomo banho de orvalho de manhã.
d - E o sol me cumprimenta por primeiro."



"Poesia Completa" de Manoel de Barros
Editorial Caminho, Abril de 2011
Página 413
"E lá tenho naturalmente também o mar, e eu sou, de facto, um fanático do mar. Ou pelo menos nas proximidades, eu preciso da sensação de que o mar está próximo, nesse caso sinto-me renascer."



"Em Conversa com Thomas Bernhard" de Kurt Hofmann
Assírio & Alvim, Agosto de 2006
Páginas 110 e 111

"Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando
três fios de teias de aranha. A coisa fica bem
esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?)"




"Poesia Completa" de Manoel de Barros
Editorial Caminho, Abril de 2011
Página 330

segunda-feira, 13 de julho de 2020

"Quando escrevo, escrevo em toda a parte, onde quer que seja, é indiferente. Posso escrever num restaurante, posso escrever numa casa alugada, posso escrever em Paris no meio do trânsito, é-me absolutamente indiferente. Quando chega o momento, isso não me incomoda absolutamente nada. A questão é só, quando é que chega o momento. O que eu não posso é começar onde houver sossego e não acontecer nada, porque não posso entrar na questão. Preciso primeiro que tudo de estímulos e de qualquer incidente caótico ou algo de semelhante. O caos acalma. A mim de qualquer modo."



"Em Conversa com Thomas Bernhard" de Kurt Hofmann
Assírio & Alvim, Agosto de 2006
Página 33
"Eu sempre guardei nas palavras os meus desconcertos."

"Eu sustento com palavras o silêncio do meu abandono."

"Poesia é um desenho verbal da inocência."

"Com as palavras se podem multiplicar os silêncios."



"Poesia Completa" de Manoel de Barros
Editorial Caminho, Abril de 2011
Páginas 467, 469 e 485

sábado, 11 de julho de 2020

"Quando uma pessoa está só durante muito tempo, quando se habituou à solidão, quando se adestrou na solidão, por toda a parte onde, para outros não há nada, se descobre cada vez mais."


"Sempre que se escreve, precisa-se de qualquer coisa para se poder escrever. Quer seja a solidão, uma árvore ou uma lixeira ou uma pessoa, há qualquer coisa em que se está fixado. Em última instância, quase sempre em si mesmo. Tudo o mais é disparate.
(...)
Eu nunca me senti como escritor nesse sentido, eu só queria escrever, mas que isso por acaso é ser escritor foi depois que se revelou."



"Em Conversa com Thomas Bernhard" de Kurt Hofmann
Assírio & Alvim, Agosto de 2006
Páginas 29 e 32
"Confrontados com o mistério da literatura e o seu inenarrável poder, somos instados a descobrir a origem desse poder e mistério. E, no entanto, não estará essa missão condenada ao fracasso? A obra literária lança diante de nós um espesso véu que não conseguimos penetrar. E não passamos de adoradores diante dele, impotentes perante os seus sortilégios. Quem teria a temeridade de afastar o véu, de decifrar o indecifrável, de alcançar o inalcançável? Os mais fortes de entre nós não passam de ínfimos fracos, de címbalos tilitantes e sopros ressoantes, diante do eterno mistério."


" ... a pessoa que amamos no início não é a mesma que amamos no fim, e que o amor não é uma meta e sim um processo através do qual uma pessoa tenta conhecer a outra."



"Stoner" de John Williams
Publicações D. Quixote
1ª edição, Setembro de 2014
Páginas 129 e 178
" ... praticamente qualquer molengão, adepto da vida em frente ao ecrã, pode passar algum tempo algures no meio de umas quantas árvores. Se há um homem que pode mostrar como é que a terapia da floresta funciona, esse homem é Yoshifumi Miyazaki. Este antropólogo biológico, vice-director do Centro do Ambiente, da Saúde e das Ciências de Campo da Universidade de Chiba, na periferia de Tóquio, acredita que, em virtude de os seres humanos terem evoluído na natureza, é nela que nos sentimos mais confortáveis, mesmo que nem sempre tenhamos consciência disso.
Neste ponto, Miyazaki é um proponente da teoria popularizada por E.O.Wilson, o entomologista de Harvard amplamente reverenciado: a hipótese da biofilia. Esta teoria foi, em parte, apropriada pelos psicólogos ambientais naquilo que, por vezes, se designa de Teoria da Redução do Stress ou Teoria da Restauração Psicoevolucionista. Não foi Wilson quem, na realidade, cunhou o termo «biofilia»; essa honra deve ser atribuída ao psicólogo social Erich Fromm, que o descreveu em 1973 como «o amor apaixonado pela vida e por tudo o que está vivo; é o desejo de crescer ainda mais, podendo ser encontrado numa pessoa, numa planta, numa ideia ou num grupo social».
Wilson desenvolve a ideia com maior precisão, situando-a no mundo natural e identificando «a natural ligação emocional dos seres humanos aos outros organismos vivos» como uma adaptação evolutiva que nos ajudou não só a sobreviver, mas também a alargar os limites da realização humana. Apesar de não terem sido encontrados quaisquer genes relacionados com a biofilia, é bem sabido - ironicamente, através de alguns estudos da biofobia - que, mesmo hoje em dia, os nossos cérebros respondem de modo inato e veemente aos estímulos naturais.
(...)
A hipótese da biofilia postula que os elementos pacíficos ou acolhedores da natureza nos ajudaram a recuperar a serenidade de espírito, a clareza cognitiva, a empatia e a esperança. Quando o amor, o riso e a música não estavam por perto, havia sempre um pôr do Sol. Os seres humanos mais sintonizados com os estímulos da natureza eram aqueles que sobreviviam e transmitiam estes traços à geração seguinte.
(...)
O diálogo que se estabelece entre o cérebro e a natureza não é propriamente uma novidade, embora estejamos menos conscientes do crescente fosso entre o mundo em que os nossos sistemas nervosos se desenvolveram e o mundo em que vivem actualmente. Costumamos enaltecer a elasticidade dos nossos cérebros, mas essa elasticidade tem limites. Como Miyazaki explica, «ao longo da nossa evolução, passámos 99,9 por cento do tempo na natureza. A nossa fisiologia ainda está adaptada a esse meio. Durante a vida quotidiana, podemos obter uma sensação de conforto se os nossos ritmos estiverem sincronizados com os ritmos do meio envolvente.
(...)
Para provar que a nossa fisiologia reage a contextos ambientais diferentes, Miyazaki tem levado centenas de sujeitos de investigação para os bosques desde 2004. Ele e o seu colega Juyoung Lee, também então da Universidade de Chiba, descobriram que as caminhadas de lazer pelos bosques, comparadas com as caminhadas urbanas, provocam uma descida de 12 por cento nos níveis de cortisol. Mas não foi tudo. Registaram uma descida de sete por cento na actividade do sistema nervoso simpático, de 1,4 por cento na pressão arterial e de seis por cento no ritmo cardíaco. Nos questionários psicológicos, registaram também melhores disposições e menores níveis de ansiedade."



"A Natureza Cura" de Florence Williams
Bertrand Editora
1ª edição, Fevereiro de 2018
Páginas 31 a 34
"A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos."

"Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul."

"E por não ser contaminada de contradições
A linguagem dos pássaros
Só produz gorjeios."

"O dom de esculpir o orvalho só encontrei na aranha."

"Quem se encosta em ser concha é que pode saber das origens do som."

"Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério."



"Poesia Completa" de Manoel de Barros
Editorial Caminho, Abril de 2011
Páginas 355, 378, 379, 382, 383 e 427 

domingo, 5 de julho de 2020

"Mas como pode ter-se umas quaisquer opiniões definitivas sobre si próprio? As pessoas são um percurso psíquico que não dominam ou que apenas dominam em parte. Em consequência, ninguém tem um juízo acabado sobre si mesmo ou sobre a sua vida. De outra maneira, saber-se-ia tudo a esse respeito, mas isso é uma coisa, que, no máximo, as pessoas fantasiam. No fundo, nunca se sabe como tudo aconteceu. A história de uma vida começa algures, num ponto qualquer, do que uma pessoa se recorda no momento, e já aí a vida era altamente complexa. O que é que a vida vem a ser, ninguém sabe."



"Memórias, Sonhos, Reflexões" de C.G. Jung
Relógio D' Água Editores, Julho de 2019
Página 22