segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Conta-me Entre As Amêndoas

"Com alguns gramas de amêndoas,
por 72 cêntimos, é possível conseguir
1 litro de leite puro
Deixe as amêndoas de molho durante a noite
(as amêndoas são seixos
serenados pela água dura),
e triture-as depois com a água de cozer
Junte na liquidificadora a fava da baunilha,
ghost in the machine que dá ao leite
o aroma indelével da árvore em flor -
é a essa linhagem que agora pertencemos
O sabor dos lacticínios nauseia-nos,
como o peito de uma mulher
que acaba de amamentar

Ou como aquela fotografia: as quatro mulheres
nuas e ajoelhadas diante da câmara
e ladeadas pelos guerrilheiros
Cada mulher, como caule
que se debate com as pedras do chão,
não pode evitar a aparição
da sua forma: esta tem as ancas tortas,
àquela vêem-se as costelas
como lenha inchada pela chuva. Nenhuma
rapa os pêlos do púbis e, não podendo evitá-lo,
a mais baixa tem o regaço convidativo -
antes de esquartejado, fará adormecer
mais do que um homem

Era nisto que pensavas de manhã
ao fazer a cama dos pais? Ainda às vezes penso
nisto enquanto com os dedos rasgo a superfície
do leite em repouso, e com o dedo indicador
fustigo o que ficou no fundo, apanho
vestígios de cascas e grumos - 
no fim coe tudo com um pano fino"



Andreia C. Faria  em "Alegria para o fim do mundo"
Porto Editora, Fevereiro de 2019
Páginas 92, 93

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Leonard Cohen - Love itself


O Poeta Enquanto Pássaro Imortal

"Um segundo atrás o meu coração deixou de bater
e eu pensei: «Seria uma péssima altura
para ter um ataque cardíaco e morrer,
a meio de um poema», então reconfortou-me
a ideia de que nunca soube de ninguém
que morresse a meio da escrita de um poema,
assim como os pássaros nunca morrem a meio do voo.
Acho."



Ron Padgett  em "Poemas Escolhidos"
Assírio & Alvim, Setembro de 2018
Página 143
" ... quem erra e se emenda, a Deus se encomenda."


Miguel de Cervantes  em "Dom Quixote de la Mancha"
Publicações Dom Quixote
3ª edição (Setembro de 2015)
Página 652

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Beth Gibbons & Rustin Man - Sand River

Leon De Modena

"as tuas palavras estão 
a apodrecer dentro dos teus livros
as que tu escreveste
onde as escreveste
e tudo o que ficou nas entrelinhas
e tudo o que não escrutinaram
os oficiais da inquisição
os teus amigos em cargos importantes
os príncipes que noutros dias
mais soalheiros se sentaram
para te ouvir na sinagoga

as tuas mãos estão a desaparecer dos teus livros
dedos cegos correm pelas lombadas
com um resquício de um gesto de ancião
a quem a vista falha

o som de um sopro
a fala de alguém absorto no seu ofício
enche a brancura da pedra

grave, masculino
subindo como um apontamento
uma nota marginal na imensa pauta do tempo
traça a sua rota através de uns quantos lugares
entre o gueto velho e o gueto novo
as tuas mãos estão a desaparecer
de dentro destes gestos que são o teu trabalho
e mais um destes poemas líricos
remediará nada

um nevoeiro espesso desce sobre os campos
é doce o cansaço acumulado e a letargia
a segura lentidão de um ritual tão repetido
que não pertence nem à memória nem à inteligência
mas apenas à intuição de que alguns
lugares continuam a existir
até para lá do esforço de qualquer vontade

e é agora a hora de procurar uma palavra
que pese completamente
com a aresta certa para irromper
como corrente pelo meio destas sílabas
que a tua presença não atravessa já

porque digamos que tu pertences ao passado
como uma dessas frases banais
lugares-comuns que existem em todas as línguas
procurando com ferocidade nova
dizer esta velha brutalidade
ontem não te vi em babilónia
não na multidão no mercado
não nas duas ou três ruas principais
entre o banco e os correios
tu não estás protegido
mãos nenhumas fazem ressoar este sino
que deve ter rebatido metálico contra o ar
vozes ecoam e ecoam pelas ruas
entre seda amarela e vermelha
volteiam lâmpadas de papel
repara como é longa esta noite
e como brilha na confusão
essa tuba que teria feito num dia mais claro
ressoar a promessa do ar

como os momentos mudam os objectos
nem os traços do teu rosto nem o tom da tua voz
alguém em cada instante
não se repetindo nem antes nem depois
em curva nenhuma da memória ou da imaginação
e muito menos num golpe de dados
onde a atenção se suspende
e desenlaça com a concentração gasta num pormenor
perdido e recuperado na memória
como a confirmação
de uma coisa ao mesmo tempo familiar e estranha

quando voltares atrás hás-de perguntar-te
se pode bem ter sido a morte deste detalhe
o que antes de tudo incendiou
essa outra destruição
porque os profetas como os poetas buscam
um começo antes do começo
e o teu trabalho era afinal só
encontrar a lei que carregasse o teu nome
que provasse a utilidade de mais um homem prático
na luz destas ruas muito pela manhã quando tudo começa
as prestações da casa e as visitas ao domicílio
tantas coisas te ocuparam entre uma frase e outra
que quando te tornaste a sentar nessa escrivaninha
o pó tinha coberto os teus livros e a tua cadeira
os teus filhos tinham roubado as tuas canetas
a tinta estava seca nos tinteiros

mas não era escala o que tu procuravas
quando reclamaste do hábito o teu grão de incerteza

assim não se repetirão as pequenas luzes acesas
que enchem as janelas nas ruas estreitas
nem o banho que tomaste ao entardecer
nem a sala desta casa onde esta noite
comerás o teu jantar

uma a uma estas ruas estão a desaparecer
de dentro das tuas mãos
porque um corpo e um espaço não são o mesmo
tudo isto há-de parecer tão impossível mais tarde
quando e onde chegarmos à repetição
tão certo como a permanência de alguém não ser um lugar
ou não ser sequer a última pedra da memória
a estilhaçar as janelas do tempo"



Tatiana Faia  em "um quarto em atenas"
Tinta-da-china, Janeiro de 2018
Páginas 115 a 118

Sofrimento

"É bom para um artista compreender o conflito e o stress. Essas coisas podem dar ideias. Mas, garanto-vos, se tivermos bastante stress, não seremos capazes de criar. E, se tivermos bastante conflito, só vai atrapalhar a nossa criatividade. Pode compreender-se o conflito, mas não tem de se viver nele.
Nas histórias, nos mundos em que podemos entrar, existe sofrimento, confusão, escuridão, tensão e raiva. Há assassínios; há todo o tipo de coisas. Mas o cineasta não tem de estar a sofrer para mostrar sofrimento. Pode mostrá-lo, mostrar a condição humana, mostrar conflitos e contrastes, mas não é preciso passar pessoalmente por isso. Somos os orquestradores, mas não estamos lá dentro. Deixe que sejam as suas personagens a sofrer.
É senso comum: quanto mais o artista sofre, menos criativo vai ser. É menos provável que goste do seu trabalho e menos provável que seja capaz de fazer um trabalho realmente bom.
Aqui, as pessoas podem referir Vincent Van Gogh como exemplo de um pintor que fazia um óptimo trabalho apesar - ou por causa - do seu sofrimento. Gosto de pensar que van Gogh teria sido ainda mais prolífico e ainda maior se não estivesse tão limitado pelas coisas que o atormentavam. Não creio que tenha sido a dor que o fez tão grande - acho que a sua pintura lhe trouxe a pouca felicidade que ele talvez tenha tido.
Alguns artistas acreditam que a raiva, a depressão, ou estas coisas negativas, lhes dão uma certa força. Pensam que precisam de se agarrar a essa raiva e medo para os poderem colocar no seu trabalho. E não gostam de ideia de ficarem felizes - dá-lhes vontade de vomitar. Acham que isso lhes faria perder a sua força ou o seu poder.
Mas, leitor, não perderá a sua força se meditar. Não perderá a sua criatividade. E não perderá o seu poder. Na verdade, quanto mais meditar e se transcender, mais as coisas crescerão, e sabê-lo-á. Ganhará muito maior compreensão de todos os aspectos da vida quando mergulhar no seu interior. Dessa forma, o entendimento cresce, o reconhecimento cresce, forma-se uma perspectiva maior e a condição humana torna-se cada vez mais visível.
Se for artista, é preciso conhecer a raiva sem ser limitado por ela. Para criar, é preciso ter energia; é preciso ter lucidez. É preciso ser capaz de capturar ideias. É preciso ser suficientemente forte para enfrentar pressões e stress incríveis neste mundo. Portanto, faz todo o sentido cuidarmos com carinho do lugar de onde vêm essa força, essa clareza e essa energia - mergulharmos no nosso interior e animá-lo. É uma coisa estranha, mas é verdade, na minha experiência: a beatitude é como um colete à prova de bala. É uma coisa protectora. Se tivermos felicidade suficiente, é invencibilidade. E, quando aquelas coisas negativas começam a soltar-se, podemos capturar mais ideias e vê-las com maior compreensão. Entusiasmamo-nos mais facilmente. Temos mais energia, mais clareza. Então, podemos ir realmente trabalhar e transpor essas ideias para um meio ou outro."



"Em Busca Do Grande Peixe - Meditação, Consciência e Criatividade"
David Lynch
Estrela Polar, Outubro 2008
Páginas 103 e 104