terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Somos Natal

Dele se diz que é luz que o tempo dispara enquanto espera sem ansiedade por um milagre. Ou até gratidão por promessas cumpridas. E gratos somos melhores, somos Natal.
Somos Natal naquele eterno instante em que prolongamos um abraço.
Somos Natal quando reencontramos a beleza que há em sermos pastores, pais ou carpinteiros, em sermos de longe ou até vizinhos, em sentirmos frio ou termos pouco. Somos Natal quando pousamos e pegamos e pousamos e trazemos enquanto o tempo lá fora pára a observar.
Somos Natal quando nos comovemos por encontrar pessoas de antigamente, que agarramos pela mão e aquecemos do relento em que vivem.
Somos Natal quando perdemos as queixas do ano numa qualquer esquina da memória. Somos Natal quando qualquer canção é Natal e qualquer poema é oração.
Somos Natal quando nos desprendemos e compreendemos que somos só nascer, amar muito e ir. Somos Natal quando somos calados, mas felizes desejamos Feliz Natal. Somos Natal quando somos faladores e paramos para ouvir a noite inteira.
Somos Natal quando os que já não aparecem pelo Natal nos apertam o coração e jamais nos deixam.
Somos Natal quando queremos e por sorte nos acontece. E ficamos gratos, melhores.

domingo, 23 de dezembro de 2018

"Escrever um texto
e deixá-lo abandonado na página.
 
Não voltar a lê-lo,
não o mostrar a ninguém,
não o mandar a nenhum lado.
Que fique no seu repouso de texto.
 
E deixar que aí encontre o seu leitor,
como todos os textos o encontram.
 
Também o que levamos escrito dentro
e nos parece impossível que alguém possa ler."

Roberto Juarroz em "Poesia Vertical"

Carminho - Estrela 💗


"Um amor que vá além do amor,
por cima do rito do vínculo,
além do jogo sinistro
da solidão e da companhia.
 
Um amor que dispense o regresso,
mas também a partida.
Um amor não submetido
aos fogachos de ir e voltar,
de estar despertos ou adormecidos,
de chamar ou calar.
 
Um amor para estar juntos
ou para não estar,
mas também para todas as posições intermédias.
 
Um amor como abrir os olhos.
E talvez também como fechá-los."

Roberto Juarroz  em "Poesia Vertical"

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

"Não creio que ela se importasse. É demasiado ... inteira, para se sentir sozinha."
 
Ana Teresa Pereira  em "Karen"
"Seja qual for o meio pelo qual o homem ocidental procure aceder à compreensão da vida espiritual do Oriente, confrontar-se-á sempre com grandes dificuldades. Quase sempre corre o perigo de querer penetrar intelectualmente naquilo que está para lá de toda a razão, no que é directamente transmitido ao oriental e que este vivencia como realidade inquestionável. A dificuldade de chegar a um entendimento profundo é ainda agravada pelo facto de o oriental raramente sentir o desejo de explicar a sua vivência ao nível intelectual. Consequentemente, abre-se uma profunda distância entre aquilo que ele diz em palavras e aquilo que ele realmente quer dizer com elas. Muitas vezes ele tem de se contentar com meras alusões e imagens, se não quiser refugiar-se nos paradoxos. Encontrar o fio condutor e não tomar a compreensão do que o professor diz pela compreensão da coisa em si exige do ocidental muita paciência intuitiva e reiteradas tentativas de pressentir e vivenciar de alguma maneira aquilo que está em causa. Embora no arranjo floral se diga muita coisa, e se deixe entrever algo, por detrás de tudo o que é visivelmente representável e vivenciável por todo o ser humano existe o mistério e o fundamento primordial do ser mais profundo."

Gusty L. Herrigel  em "ZEN e a Arte do Caminho das Flores"
"Uma escrita que suporte a intempérie,
que se possa ler sob o sol ou a chuva,
sob o grito ou a noite,
sob o tempo nu.
 
Uma escrita que suporte o infinito,
as gretas que se repartem como o pólen,
a leitura sem piedade dos deuses,
a leitura iletrada do deserto.
 
Uma escrita que resista
à intempérie total.
Uma escrita que se possa ler
até na morte."

Roberto Juarroz  em "Poesia Vertical"

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

"Hoje dói-me pensar,
dói-me a mão com que escrevo,
dói-me a palavra que ontem disse
e também a que não disse,
dói-me o mundo.
 
Há dias que são como espaços preparados
para que tudo doa.
 
Só deus não me dói hoje.
Será porque hoje ele não existe?"

Roberto Juarroz  em "Poesia Vertical"
"Meti a mão no bolso do casaco castanho e segurei a pedrinha cor de laranja. Não sabia o nome da pedra, de vez em quando comprava uma nos mercados de rua, e estavam um pouco por todo o lado, nas gavetas da roupa, no meio dos livros, entre as bisnagas de tinta, nos bolsos dos jeans. A pedrinha reconfortou-me, apertei-a até ficar quente, mais quente do que a minha mão."  💗

Ana Teresa Pereira  em "Karen"

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Harp & Hang - Lazuli


Identidade

"Ignoro o que ao certo seja ser, mas, seja o que for, dispõe de intensidade própria e regulável como o som dum aparelho ou a velocidade dum motor. Há momentos em que «sou» mais do que noutros, em que, se assim pode dizer-se, tenho a minha identidade acelerada."

Luís Miguel Nava em "Poesia Completa 1979-1994"
"Duas pessoas são duas pessoas. Nunca nos pomos a pensar nisto assim, mas isto é inultrapassável. Queremos sempre acreditar que um casal, por exemplo, são duas pessoas que se escolheram um ao outro para partilharem. Para viverem como cúmplices. E isso até pode acontecer muito tempo, numa data de coisas. Mas há sempre uma cave dentro de nós. Nunca, mas nunca mesmo, saberemos tudo acerca do outro. Só não percebo porque me faz isto sofrer se parece que estou a concluir que é natural, que as coisas são mesmo assim."

Rodrigo Guedes de Carvalho  em "Canário"