terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Somos Natal

Dele se diz que é luz que o tempo dispara enquanto espera sem ansiedade por um milagre. Ou até gratidão por promessas cumpridas. E gratos somos melhores, somos Natal.
Somos Natal naquele eterno instante em que prolongamos um abraço.
Somos Natal quando reencontramos a beleza que há em sermos pastores, pais ou carpinteiros, em sermos de longe ou até vizinhos, em sentirmos frio ou termos pouco. Somos Natal quando pousamos e pegamos e pousamos e trazemos enquanto o tempo lá fora pára a observar.
Somos Natal quando nos comovemos por encontrar pessoas de antigamente, que agarramos pela mão e aquecemos do relento em que vivem.
Somos Natal quando perdemos as queixas do ano numa qualquer esquina da memória. Somos Natal quando qualquer canção é Natal e qualquer poema é oração.
Somos Natal quando nos desprendemos e compreendemos que somos só nascer, amar muito e ir. Somos Natal quando somos calados, mas felizes desejamos Feliz Natal. Somos Natal quando somos faladores e paramos para ouvir a noite inteira.
Somos Natal quando os que já não aparecem pelo Natal nos apertam o coração e jamais nos deixam.
Somos Natal quando queremos e por sorte nos acontece. E ficamos gratos, melhores.

domingo, 23 de dezembro de 2018

"Escrever um texto
e deixá-lo abandonado na página.
 
Não voltar a lê-lo,
não o mostrar a ninguém,
não o mandar a nenhum lado.
Que fique no seu repouso de texto.
 
E deixar que aí encontre o seu leitor,
como todos os textos o encontram.
 
Também o que levamos escrito dentro
e nos parece impossível que alguém possa ler."

Roberto Juarroz em "Poesia Vertical"

Carminho - Estrela 💗


"Um amor que vá além do amor,
por cima do rito do vínculo,
além do jogo sinistro
da solidão e da companhia.
 
Um amor que dispense o regresso,
mas também a partida.
Um amor não submetido
aos fogachos de ir e voltar,
de estar despertos ou adormecidos,
de chamar ou calar.
 
Um amor para estar juntos
ou para não estar,
mas também para todas as posições intermédias.
 
Um amor como abrir os olhos.
E talvez também como fechá-los."

Roberto Juarroz  em "Poesia Vertical"

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

"Não creio que ela se importasse. É demasiado ... inteira, para se sentir sozinha."
 
Ana Teresa Pereira  em "Karen"
"Seja qual for o meio pelo qual o homem ocidental procure aceder à compreensão da vida espiritual do Oriente, confrontar-se-á sempre com grandes dificuldades. Quase sempre corre o perigo de querer penetrar intelectualmente naquilo que está para lá de toda a razão, no que é directamente transmitido ao oriental e que este vivencia como realidade inquestionável. A dificuldade de chegar a um entendimento profundo é ainda agravada pelo facto de o oriental raramente sentir o desejo de explicar a sua vivência ao nível intelectual. Consequentemente, abre-se uma profunda distância entre aquilo que ele diz em palavras e aquilo que ele realmente quer dizer com elas. Muitas vezes ele tem de se contentar com meras alusões e imagens, se não quiser refugiar-se nos paradoxos. Encontrar o fio condutor e não tomar a compreensão do que o professor diz pela compreensão da coisa em si exige do ocidental muita paciência intuitiva e reiteradas tentativas de pressentir e vivenciar de alguma maneira aquilo que está em causa. Embora no arranjo floral se diga muita coisa, e se deixe entrever algo, por detrás de tudo o que é visivelmente representável e vivenciável por todo o ser humano existe o mistério e o fundamento primordial do ser mais profundo."

Gusty L. Herrigel  em "ZEN e a Arte do Caminho das Flores"
"Uma escrita que suporte a intempérie,
que se possa ler sob o sol ou a chuva,
sob o grito ou a noite,
sob o tempo nu.
 
Uma escrita que suporte o infinito,
as gretas que se repartem como o pólen,
a leitura sem piedade dos deuses,
a leitura iletrada do deserto.
 
Uma escrita que resista
à intempérie total.
Uma escrita que se possa ler
até na morte."

Roberto Juarroz  em "Poesia Vertical"

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

"Hoje dói-me pensar,
dói-me a mão com que escrevo,
dói-me a palavra que ontem disse
e também a que não disse,
dói-me o mundo.
 
Há dias que são como espaços preparados
para que tudo doa.
 
Só deus não me dói hoje.
Será porque hoje ele não existe?"

Roberto Juarroz  em "Poesia Vertical"
"Meti a mão no bolso do casaco castanho e segurei a pedrinha cor de laranja. Não sabia o nome da pedra, de vez em quando comprava uma nos mercados de rua, e estavam um pouco por todo o lado, nas gavetas da roupa, no meio dos livros, entre as bisnagas de tinta, nos bolsos dos jeans. A pedrinha reconfortou-me, apertei-a até ficar quente, mais quente do que a minha mão."  💗

Ana Teresa Pereira  em "Karen"

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Harp & Hang - Lazuli


Identidade

"Ignoro o que ao certo seja ser, mas, seja o que for, dispõe de intensidade própria e regulável como o som dum aparelho ou a velocidade dum motor. Há momentos em que «sou» mais do que noutros, em que, se assim pode dizer-se, tenho a minha identidade acelerada."

Luís Miguel Nava em "Poesia Completa 1979-1994"
"Duas pessoas são duas pessoas. Nunca nos pomos a pensar nisto assim, mas isto é inultrapassável. Queremos sempre acreditar que um casal, por exemplo, são duas pessoas que se escolheram um ao outro para partilharem. Para viverem como cúmplices. E isso até pode acontecer muito tempo, numa data de coisas. Mas há sempre uma cave dentro de nós. Nunca, mas nunca mesmo, saberemos tudo acerca do outro. Só não percebo porque me faz isto sofrer se parece que estou a concluir que é natural, que as coisas são mesmo assim."

Rodrigo Guedes de Carvalho  em "Canário"

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O Lugar dos Solitários

"Que o lugar dos solitários
Seja um lugar de ondulação perpétua.
 
Quer seja em pleno mar
Na negra e verde nora,
Ou nas praias,
Que nunca cesse
O movimento, ou o ruído do movimento,
O renovar do ruído
E múltiplos prolongamentos;
 
E, sobretudo, do movimento das ideias
E da sua incansável iteração,
 
No lugar dos solitários,
Que há-de ser um lugar de ondulação perpétua."

Wallace Stevens  em "Harmónio"
"O seu pai era soldador, e achava que qualquer pessoa capaz de passar o dia inteiro a olhar para simbolozinhos numa página era porque estava a reprimir outros impulsos. Mas para Gordon ler era o seu impulso. Tornava o mundo maior. No liceu ele apaixonou-se por Dostoievski, uma literatura que vinha ao encontro das suas melancólicas dúvidas. Dostoievski não acreditava em nada a não ser no mundo untuoso e terra a terra onde os seres humanos vagueavam, lutavam, corrompiam e matavam. Mas Dostoievski era cristão, e as pessoas que lutavam e vagueavam nos seus romances haviam perdido o seu caminho, ao passo que Deus não. Dostoievski era algo de vasto - de dimensão universal - , um universo que possuía uma ordem, mas não uma ordem fixa e artificial como a dos gregos. Era um difuso reino de caóticas provações, e Gordon sabia que quando o lia penetrava no território da verdade."

Rachel Kushner  em "O Quarto de Marte"

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Eu sou uma pergunta

"Há um momento em que percebemos que as perguntas nos deixam mais perto do sentido, da abertura do sentido, do que as respostas. Que as respostas são úteis, sim, que precisamos delas para continuar a viver, mas que a vida transforma as próprias respostas em perguntas.
(...)
Deveríamos dedicar mais tempo a escutar essas perguntas que pulsam no nosso interior, soterradas no atordoamento dos dias, omitidas pelo pragmatismo ou pelo medo, adiadas para um momento ideal que depois nunca é.
(...)
Quando, mais tarde, nos tornarmos repetidores sonâmbulos de respostas feitas, carregados de saberes, previsões e mapas, é importante pelo menos recordarmos a nós mesmos que houve já um tempo em que as perguntas foram o contacto (consciente e fulgurante) com a vida não predeterminada. E quem sabe se essa memória nos alentará a recomeçar, como se cada pergunta fosse uma possibilidade de nascer?"


José Tolentino Mendonça  em "O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas"

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Shakespeare

"Shakespeare criou o mundo em sete dias.
 
No primeiro dia fez o céu, as montanhas e os abismos da alma.
No segundo dia fez os rios, os mares, os oceanos
E os restantes sentimentos -
Que deu a Hamlet, a Júlio César, a António, a Cleópatra e a Ofélia,
A Otelo e a outros,
Para que fossem seus donos, eles e os seus descendentes,
Pelos séculos dos séculos.
No terceiro dia juntou todos os homens
E ensinou-lhes os sabores:
O sabor da felicidade, do amor e do desespero,
O sabor do ciúme, da glória e assim por diante,
Até esgotar todos os sabores.
 
Por esse tempo chegaram também uns indivíduos
Que se tinham atrasado.
O criador afagou-lhes compassivo a cabeça,
E disse que só lhes restava
Tornarem-se críticos literários
E contestarem a sua obra.
O quarto e o quinto dia reservou-os para o riso.
Soltou os palhaços
Para darem cambalhotas,
E deixou os reis, os imperadores
E outros desgraçados divertirem-se.
Ao sexto dia resolveu alguns problemas administrativos:
Forjou uma tempestade,
E ensinou ao rei Lear
O modo de usar uma coroa de palha.
Com os restos da criação do mundo
Fez o Ricardo III.
Ao sétimo dia viu se havia algo mais a fazer.
Os directores de teatro já tinham coberto a terra de cartazes,
E Shakespeare concluiu que depois de tanto esforço
Também ele merecia assistir ao espectáculo.
Mas antes disso, esfalfado de todo,
Foi morrer um pouco."

Marin Sorescu  em "Simetria"

quinta-feira, 14 de junho de 2018

"O dia virá em que já não sabes
a idade das pedras caídas
na geografia difícil do rosto.
 
Há um muro que te há-de deter
onde medirás a distância da viagem
como de cada vez que se morre
 
o cabelo tão branco que não
será só assim branco
o olhar a dizer o que a terra sabe.
 
Porque a boca há-de calar-se
e na matriz de gelhas do rosto
será apenas mais uma ruga."

António Amaral Tavares  em "Os Nomes dos Pássaros"

quarta-feira, 30 de maio de 2018

"Estive a varrer a cozinha. Depois vi o meu reflexo no vidro da janela assim de vassoura numa sexta-feira à noite e sorri de tanta simbologia. Nem me atrevi a abrir a janela. Talvez eu voasse - quem sabe - mas os símbolos convém trazê-los à rédea curta."

Ivone Mendes da Silva  em "Dano e Virtude"
"A noite inventa aparências: as sombras,
os ruídos sem fonte, as circulações do susto.
Conheço bem os modos de ser inferior,
perto dos besouros, das formigas,
onde nos chegam abafados o amor e o júbilo.
É disso que me alimento,
curvado sobre a minha própria dor de bicho.
 
A noite é terna, uma pausa nos trabalhos diurnos.
Sôfrego, revolvo minerais buscando
um pouco de mal, para afastar de mim
a dureza, para acabar com as horas certas
de todos os dias. Dói-me a regra do ofício,
a jornada, os gestos da necessidade avara.
 
Apareço tarde, quando ninguém está. Sorrio, só.
Práticas milenares fazem de mim absurdo.
Tenho espinhos que lembrarão um campo de trigo,
vivo escondido para não incendiar no excesso.
 
Em areia vermelha oculto, encontro vestígios
de um mundo que nunca benquis. E porém,
há magias e poderes em tudo o que julgava saber,
nas coisas largadas fortuitamente no meu espaço.
 
Um garfo pode tornar-se arma fatal.
Um pedaço de madeira, o último reduto da vida.
O resto de uma corda, traço de equilíbrio.
Uma lata ferrugenta, a invenção de uma morada.
A precisão de uma mola de estender roupa,
bê-á-bá da teimosia. Uma moeda já sem uso,
descoberta da natureza contingente dos tesouros.
 
Escarafuncho tudo isso na minha cabeça,
quase não posso com a concretude mundana.
É esse o grande mistério, que as coisas estejam,
e, no entanto, que nenhum lugar lhes seja especialmente próprio.
Daí que me medite por vezes em surdina.
 
Questiono-me sobre a possibilidade de gerar
um sítio onde não me perdesse na profundidade saibrosa.
Mas é tão potente a luz exterior,
tão agudo o calor, tão insuportável a visão imediata
do horizonte. Encubro-me outra vez calado.
E faço da sobriedade térrea aconchego da minha dúvida."

Elisabete Marques  em "Animais de Sangue Frio"
"Afinal não estou sozinha no prédio. Lamento porque havia nisso algumas potencialidades literárias. Hoje de manhã soou um berbequim pouco passava das sete. Pensei: raios, era o que faltava agora. Depois conformei-me: cada um tem as suas obras e a paz nunca é perpétua."
 
Ivone Mendes da Silva  em "Dano e Virtude"

terça-feira, 24 de abril de 2018

Gosto do caminho da vida simples

"Gosto do caminho da vida simples
Por entre artemísias na bruma e grutas pedregosas
 
O meu sentir selvagem distende-se e acalma
Há muito companheiro das brancas nuvens ocioso
 
Não desejo o caminho do mundo
Sua paixão não me atrai
 
À noite sento-me sozinho num leito de pedras
A lua redonda sobe a Montanha Fria"
 
"O vagabundo do Dharma - 25 poemas de Han-Shan"

segunda-feira, 9 de abril de 2018

"Oh! o deslizar na água! Oh! aquele admirável deslizar, uma pessoa até hesita em voltar à tona. Mas é em vão que eu falo. Quem dentre vocês poderá alguma vez compreender a que ponto uma pessoa pode ali circular como em casa? Os verdadeiros nadadores deixam de saber que a água molha. Os horizontes da terra firme deixam-nos atónitos. E é sem cessar que voltam ao fundo da água."

 
"O Retiro Pelo Risco" - Antologia da Poética de Henri Michaux
"E o poeta demora-se olhando as pedras e
interroga-se
existem acaso
entre estas linhas estragadas as arestas os gumes
os côncavos e as curvas
existem acaso
aqui onde se encontra a passagem da chuva do vento
e do desgaste
existem o movimento do rosto o traçado do carinho
daqueles que diminuíram tão estranhamente dentro da nossa vida
desses que ficaram sombras de vagas e reflexões com
a imensidade do mar
ou porventura não nada fica a não ser apenas o peso
a saudade do peso duma existência viva
aí onde agora sem substância ficamos vergando
como hastes do salgueiro abominável amontoadas dentro
da duração do desespero
enquanto lenta a amarela torrente arrasta para baixo dentro da lama
juncaria arrancada
imagem de rosto que se tornou mármore na decisão de uma
amargura para sempre.
O poeta um vazio."
 
"Poemas Escolhidos" de Yorgos Seferis

quinta-feira, 5 de abril de 2018

"Ele inventava histórias passadas na neve, cabanas perdidas em paisagens brancas, e ela pensava ver os flocos a cair, e o desenho de flores nas vidraças embaciadas, flores estranhas que se pareciam com labirintos e mandalas, com mensagens muito antigas, ele era sempre capaz de recriar o mundo para ela, de começar a criação do mundo, no primeiro dia a noite e as estrelas, no segundo o mar, os pássaros e os peixes, no terceiro a luz e a neve."
 
Ana Teresa Pereira  em "A Linguagem dos Pássaros"
" E aprenderá a nadar muito cedo, descerei com cuidado o caminho nas rochas e ele aprenderá a gostar do mar, a senti-lo, e depois a mover-se nele como se fosse o seu elemento natural, e o seu corpo terá o bronze quase dourado do meu corpo e do de Miguel, e os seus cabelos terão madeixas mais claras do sol, e os seus olhos serão profundos e limpos como os das pessoas que passam muito tempo a olhar para o mar. Também o ensinarei a conhecer as plantas, os pássaros e os astros, os seus nomes, os seus movimentos ao longo do ano, ..."

Ana Teresa Pereira  em "A Linguagem dos Pássaros"

quarta-feira, 28 de março de 2018

Villeneuve - Words are Meaningless


"No solstício de Inverno (um dia estranho em que havia qualquer coisa no ar, uma proximidade, não sei) ele deu-me uma teia de apanhar sonhos. Era um objecto bonito, uma teia circular com uma abertura no centro, feita em fio muito resistente, e da qual pendiam plumas de pássaros, de um azul fortíssimo, artisticamente intercaladas com missangas.
Disse-me que a lenda se relacionava com os índios oneida, nos Estados Unidos. Na verdade, os índios em geral acreditavam nos sonhos, tudo o que era visto, sonhado ou captado nas visões era igualmente real.
Uma teia de sonhos numa casa, apanhava os que flutuavam no ar da noite. Os pesadelos ficavam presos nos fios como insectos e desfaziam-se de manhã com a luz do sol.
Mas os sonhos bons escapavam pela abertura no centro da teia e tornavam-se reais."

Ana Teresa Pereira em "O Rosto de Deus"

Barzin - Past all Concerns


"A sombra recorta-se no chão e as folhas dançam lentas como facas na mão de Deus."

"Briosa está deitada em cima do telhado do curral das ovelhas.
Gosta de ali ficar a ver as estrelas como brincos de prata que Deus já não usa."

Carla Pais  em "Mea Culpa"

Tarkovski

segunda-feira, 26 de março de 2018

As Fogueiras de S. João

"O nosso destino, chumbo fundido, não pode mudar
nada pode fazer-se.
Deitaram o chumbo fundido na água debaixo das estrelas e
as fogueiras podem arder.
 
Se ficares nua diante do espelho à meia-noite
vês
vês o homem passar no fundo do espelho
o homem dentro do teu destino que governa o
teu corpo,
dentro de solidão e do silêncio o homem
da solidão e do silêncio
e as fogueiras podem arder.
 
À hora em que findou o dia e não começou o outro
à hora em que se cortou o tempo
aquele que desde agora e antes do princípio governava
o teu corpo
tens de encontra-lo
tens de procura-lo para que pelo menos
outro alguém o encontre, quando tiveres morrido.
 
São as crianças que acendem as fogueiras e gritam
diante das labaredas dentro da noite quente
(Houve acaso alguma fogueira que não fosse acesa
por uma criança, oh Eróstrates)
e deitam sal dentro das chamas para que crepitem
(Como olham estranhamente as casas de súbito para nós,
cadinhos das pessoas, quando as afagar
um reflexo).
 
Mas tu que conheceste a graça da pedra no rochedo
batido pelo mar
o entardecer em que a serenidade caiu
ouviste de longe a humana voz da solidão
e do silêncio
dentro do teu corpo
aquela noite de S. João
quando se apagaram todas as fogueiras
e estudaste a cinza debaixo das estrelas."

* Entre os vários rituais adivinhatórios, na aldeia de infância do poeta na Ásia Menor (para lá dos habituais relativos a estas fogueiras), destacam-se dois que têm a ver com o título e com o poema: 1) Uma rapariga deita chumbo fundido num vaso com água e a forma que toma o chumbo ao solidificar indica o negócio ou a profissão do seu futuro marido. 2) A rapariga despe-se à meia-noite e fica nua diante do espelho, pedindo a S. João que lhe revele o nome do seu futuro marido; o primeiro nome a ouvir ao acordar na manhã seguinte virá a ser o nome dele.
 
Yorgos Seferis  em "Poemas Escolhidos"

sexta-feira, 23 de março de 2018

"Ainda no século dezassete eram usados métodos xamânicos para procurar a inspiração (ligar-se aos outros mundos). As casas de escuridão, sem janelas para deixar entrar a luz do sol, onde o poeta se deitava de costas, tendo por companhia algumas pedras, e ficava durante um dia inteiro; a uma certa hora da noite acendiam-se umas velas e ele começava a escrever. Mas ninguém sabia o que se passara no escuro e no silêncio, o que vira, para onde viajara.
Escrever poemas era um acto mágico ...
A poesia estava muito próxima da linguagem dos pássaros, da linguagem dos anjos. E dos demónios."

Ana Teresa Pereira  em "O Rosto de Deus"

Raised by Swans - Still Inside You


"E no fim do Verão comecei a afastar-me um pouco. Saía de casa de madrugada, antes que os outros se levantassem, vestia uma camisola velha sobre o fato de banho e ia para as rochas apanhar conchas e pedras. Havia umas muito bonitas, mas o importante era que eu aprendera a senti-las, segurava-as na mão durante algum tempo até ficarmos ligadas.
Uma manhã encontrei uma pedra polida pelas águas, misteriosa, que trouxe para casa. Tinha muitas cores, azul, verde, vermelho; na sua superfície estendiam-se prados com flores campestres, talvez papoilas, e pedaços de céu. Pensei que Tom saberia o seu nome.
Claro que Tom saberia o seu nome. Conservá-la-ia na mão durante uma eternidade, sentindo-a, escutando-a ... tornando-a dele.
E ouvi-me dizer baixinho, quase sem querer:
- Meu amor.
(...)
Ele gostou da pedra (disse-me que se chamava unakite), colocou-a no velho armário do estúdio, entre os livros e as maçãs esverdeadas. Também tinha algumas para mim, águas marinhas de um azul muito suave, pedras da lua quase brancas."

Ana Teresa Pereira  em "O Rosto de Deus"

sábado, 17 de março de 2018

Villeneuve - The Sun (feat Nili)


"Todos trouxeram um presente. Muitos de vós se negaram algum conforto para que as necessidades dos outros pudessem ser satisfeitas. Todos vós contribuíram com algo de acordo com as vossas possibilidades, sem pensarem no valor do presente que irão receber em troca. Para nós, é perfeitamente natural partilharmos com os outros. Há muito que percebemos que é mais importante dar do que receber."

Carson McCullers  em "O Coração É Um Caçador Solitário"

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Vashti Bunyan - I'd Like To Walk Around in Your Mind


"Escrever era como mergulhar as mãos em argila (algo de sensual e assustador), criar formas que depois voltavam à massa amorfa, ao caos, ao início; e surgiam de novo, durante algum tempo, revelavam-se e desapareciam ..."


"À noite ia para o jardim das traseiras estudar os astros, ou pelo menos era isso que parecia, ficava a observá-los durante horas e depois fazia desenhos complicados num caderno.
Marisa levou algum tempo a perceber que o jardim não era selvagem mas que nele nada estava feito por acaso, o homem conhecia intimamente as plantas, as que se davam bem umas com as outras, as que deviam ficar separadas. Quando enxertava os arbustos, consultava antes os astros, a posição dos astros.
E numa manhã em que cruzou duas árvores diferentes, fez sexo com ela, na terra, por trás, como se fosse um ritual; tapou-lhe a boca com a mão para a impedir de gritar e depois beijou-a com ternura, como se a sua dor tivesse sido necessária para fins que ela ignorava.
Um dia descobriu que estava grávida.
E então, vindo de fora, veio o medo.
Algo desconhecido crescia dentro de si, algo que fora engendrado naquele lugar estranho, talvez de acordo com determinada posição dos astros, na fase certa da Lua, segundo leis de que ela não sabia nada."
 
 
"Gostava da sua companhia, de mergulhar naqueles olhos cinzentos, de deixá-la revelar-lhe os segredos das plantas (as que se podiam comer, as que eram venenosas; as que pertenciam a determinado signo do Zodíaco - «as plantas de Gémeos são quentes e ligeiramente húmidas, as suas flores são brancas ou muito pálidas, as folhas têm sete pontas» ...), de vê-la fazer desenhos com as pedras, silenciosa, grave."

Ana Teresa Pereira  em "A Coisa Que Eu Sou"
"A noite foi espessando aos poucos,
por cima de nós um punhado de astros
alinha-se lá no seu acaso
e tu apontas logo uma constelação,
contas-me sobre um mito qualquer
e eu com o melhor sorriso que sei
agradeço tudo."

Diogo Vaz Pinto  em "Nervo"

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

"O problema do indivíduo que cria, problema situado por debaixo do problema da obra, é talvez - quer o autor tenha orgulho nela ou sinta uma secreta vergonha - o do renascimento, do perpétuo nascimento, ave fénix renascendo periodicamente, espantosamente, das suas cinzas e do seu vazio."

Henri Michaux  em "O Retiro Pelo Risco"
"Como noutros tempos dispunha as cartas do Tarot (eram sempre as mesmas, o Louco, a Papisa, a Morte, a Lua) agora escrevia versos soltos no caderno branco tentando ler nas palavras obscuros sinais.
«God knows I know the faces I shall see.»
Era uma frase terrível, por vezes acordava com ela nos lábios e uma sensação de medo difícil de definir.
«I do not know what it is about you that closes and opens ...»
Esta era mais como uma canção, apetecia-lhe cantá-la baixinho quando passeava pelas ruas da cidade próxima ou pelos bosques que rodeavam a quinta.
Levantou-se da secretária e meteu o caderno na gaveta. O caderno que abria de vez em quando com a esperança de que surgisse uma história ...
Talvez não voltasse a escrever."
 
Ana Teresa Pereira em "A Coisa Que Eu Sou"

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

"É como se eu fosse duas pessoas diferentes. Uma delas é um homem culto. Já estive nas maiores bibliotecas deste país. Leio. Estou sempre a ler. Leio livros que falam sobre a mais pura das verdades. Ali, na minha mala de viagem, tenho livros de Karl Marx, de Thorstein Veblen e de outros autores parecidos. Leio-os vezes sem conta e, quanto mais estudo, mais enlouqueço. Conheço-os todos de cor. Acima de tudo, gosto das palavras. Materialismo dialético. Prevaricação jesuítica.
- Jake rolava as sílabas na boca com uma solenidade apaixonada. - Propensão teleológica."

Carson McCullers  em "O Coração é um Caçador Solitário"
"Mal me ponho a escrever, é para começar a inventar. Logo que o texto sai, ponho-me de todos os lados a apresentar-lhe gradeamentos de realidade, e uma vez obtido este novo conjunto, apresento-lhe novos conjuntos ainda mais reais, e assim, de compromisso em compromisso, chego, ora vejamos, chego àquilo que escrevo, que é invenção apanhada pelo pescoço e a quem não foi atribuída a bela existência que parecia estar-lhe destinada.
É no entanto nesta honestidade tardia, mas rigorosa e por graus, e depois mais rigorosa ainda mas sempre mais tardia, que eu encontro uma das alegrias e um dos suplícios de escrever."

"O Retiro Pelo Risco - Antologia da Poética de Henri Michaux"

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

"Por nascimento ou por conquista, o poder e a propriedade são sempre arbitrários. Encontrar causas não é reconhecer legitimidade, tal como conhecer a lei não é obedecer-lhe. Fundada na força, na memória ou na fé, a proibição não delimita mais do que o espaço da própria infracção. Condiciona o conflito, não o resolve. É o traço comum ao livro, à lei e à transgressão. Dizer que não, primeiro, por hábito ou por estratégia, continuar depois, já sem critério nem objectivo, demarcando na língua um estado negativo, o necessário apenas para impor a ordem ou prolongar as proibições, e obedecendo tanto ao propósito de modelação do mundo quanto a um desejo de ocupação do espaço e da consciência."
 
H.G. Cancela  em "Impunidade"

Xavier de Maistre - Hommage à Haydn


segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

"Profano, profano, profano. Profano o tempo, profana a terra, profana a língua, profana a lei. Tempo e terra, língua e lei, sem outro tamanho que não aquele que por si próprios possam produzir. Causa e consequência, circunstância, condição, isso que a si mesmo, e contra a estrita ideia de civilização, se pesa, se mede e se diz. Contra a civilização, contra a culpa, contra a língua, contra a lei. Contra a proibição inscrita na carne como coisa congénita."

H.G. Cancela  em "Impunidade"

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Não Sejas Arrogante em Demasia

"Não sejas arrogante em demasia.
Só o quanto baste
para que te odeiem e maltratem,
te invejem e façam esperas.
 
Mas a muita modéstia também pode ferir
de morte qualquer poeta,
quanto mais a ti, poeta escasso.
 
Aceita pois os louvores que te derem.
Podem ser desleais, mas mesmo assim são sempre
um revulsivo eficaz contra os nefastos
ingurgitamentos da modéstia.
 
De resto (citando deus) uma vez por outra,
quem não gosta de ser glorificado?"


A.M. Pires Cabral  em "Cobra-D' Água"