quarta-feira, 31 de março de 2021

Inscrição (para o altar de Apolo, em Delfos)

 
"Conhece a terra, o ar, as pedras e os ventos,
as águas, as cinzas, o fogo e as marés vivas,
de tudo guarda quanto puderes no coração.
Caminha pobre, mesmo que em teus ombros pese o ouro.

Nada lembres que te impeça de olhar,
nada olhes que te impeça de ver,
nada vejas que te impeça de sonhar,
nem nada sonhes que te acorde sem remédio."



"A Ciência das Sombras" de Bernardo Pinto de Almeida
Relógio D'Água Editores, Janeiro de 2018
Página 55

O mar em chamas

 
"Todos os livros que leio me falam da tua morte -
mas não se pode acreditar em tudo o que se lê -
e sabendo embora que a tristeza não existe,
sento-me com a cara apoiada numa das mãos.

A vida é uma doença de que alguns se curaram.
Passo os dias sentado num café à distância,
e entre mim e mim há já uma intimidade insuportável
(como dar de novo ouvidos aos meus mestres de outrora?).

Fui dos que julgaram ter nascido para tornar grande o mundo,
mas atrasei-me, de propósito, numa sala cheia de homens.
Procuro perceber o tempo que me cabe.

Uma noite fui visto a lançar fogo ao mar."




"A Ciência das Sombras" de Bernardo Pinto de Almeida
Relógio D'Água Editores, Janeiro de 2018
Página 52

Panteão (drama urbano em Belém)

 
"O pai - Olha, filho, olha um funeral! ...
O filho: Não é um, pai, são talvez cinco, ou seis ...
E deve ser família de marechal,
Só falta ver ali uma corte de reis ...

O pai: Não, filho. É o funeral de um poeta.
Vê-se ali toda a gente das instituições ...
O Presidente, o Cardeal e uma sobrinha-neta ...
O filho: Para que querem, então, tantos caixões?

O pai: - É a trasladação dos restos de Pessoa.
Não vês que veio em peso a gente de Lisboa? -
Na manhã, soalheira, corre um vento ainda frio,

e há os que exibem cartazes do outro lado do rio:
"Não voltem a trazer para os Jerónimos
Uma tal quantidade de heterónimos!"




"A Ciência das Sombras" de Bernardo Pinto de Almeida
Relógio D' Água Editores, Janeiro de 2018
Página 37

terça-feira, 30 de março de 2021

Marcelo e as Tágides 😁

"Marcelo, em cupidez municipal
de coroar-se com louros alfacinhas,
atira-se valoroso - ó bacanal! -
ao leito húmido das Tágides daninhas.

Para conquistar as Musas de Camões
lança a este, Marcelo, um desafio:
jogou-se ao verso o épico? Ilusões!...
Bate-o Marcelo que se joga ao rio.

E em eleitorais estrofes destemidas,
do autárquico sonho, o nadador
diz que curara as ninfas poluídas
com o milagre do seu corpo em flor.

Outros prodígios - dizem - congemina:
ir aos bairros da lata e ali, sem medo,
dormir para os limpar da vil vérmina
e triunfal ficar cheio de pulguedo.

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão
de asa delta a fazer de passarola,
sobrevoa Lisboa o passarão
e perde a pena que é de galinhola."



"Poesia Completa - O Sol nas Noites e o Luar nos Dias" de Natália Correia
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Maio de 2007
Páginas 561 e 562

Odes Condignas

 
"Como num certo e imoto azul da tarde
O céu e o mar unidos se arredondam
Seja esse o instante em que a nossa vontade
E a dos deuses se encontram

Só luz e água. Irreais, ao longe os barcos.
Suaves de não pedirem nada as mãos,
Mergulhemos na paz de nada esperarmos,
Lúcidos e pagãos.

E nada mais que pele, obra do sol;
Um sabor de nudez a entrar na água,
E uma candura original e mole
Na areia deitada.

Fugaz é em nós o eterno que nos vive.
De futuro e passado não precisam
Os sentidos, como na duna livre
Os deuses se espreguiçam.

Em seu sossego antigo está a rocha.
Contudo move-se. Mas quem dá por isso?
Tudo passa por nós, parado embora
Num esgar ou num sorriso."




"Poesia Completa - O Sol nas Noites e o Dia no Luar" de Natália Correia
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Maio de 2007
Páginas 548 e 549

segunda-feira, 29 de março de 2021

 "Porque nenhum é sem o outro e todos são o dom de pensarmos todos os pensamentos, de sentirmos todos os sentimentos e a beleza de gozarmos todas as belezas."



"Poesia Completa - O Sol nas Noites e o Luar nos Dias" de Natália Correia
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Maio de 2007
Página 507
 
"Acaso já vistes uma árvore que se mostrasse de frente? De todos os ângulos que tenteis captar a eternidade suspensa numa árvore ela é um perfil, uma coluna do puro silêncio dessa qualquer outra coisa que é a árvore que julgais ver de frente. Contudo não duvidais de que as árvores existem e que num futuro inscrito no calendário do vosso terror elas sairão de si mesmas como labaredas cantantes, arrancando-vos a língua com a sua música."



"Poesia Completa - O Sol nas Noites e o Luar nos Dias" de Natália Correia
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Maio de 2007
Página 325

Ricochete

"Que rua vai dar ao tempo?
Que tempo vai dar à rua
Por onde o Firmamento
E a Terra se unem na lua?

Que palavra é o silêncio?
Que silêncio é esta voz
Que num soluço suspenso
Chora flores dentro de nós?"




"Poesia Completa - O Sol nas Noites e o Luar nos Dias" de Natália Correia
Publicações Dom Quixote
3ª edição, Maio de 2007
Página 152

domingo, 28 de março de 2021

A Metafísica Do Nabo

 "Pousado na mesa da cozinha
conserva ainda a rama fresca
e aquela brancura de neve com laivos
arroxeados de quem foi há
pouco arrancado da terra
Porque se vendem em número
de três? Será que isolado um nabo
não se aguenta? E se for
um par? Será que não há nabo
para além do nabo? Será que é
de nabos que estou a falar?"




"O Novíssimo Testamento e outros poemas" de Jorge Sousa Braga
Assírio & Alvim
1ª edição, Abril de 2012
Página 42

Epístola Sobre O Silêncio

 "Procura a tua
verdadeira voz 
no silêncio"


"Atento
ao eco
do silêncio"



"O Novíssimo Testamento e outros poemas" de Jorge Sousa Braga
Assírio & Alvim
1ª edição, Abril de 2012
Página 19

A Última Morada

 
"Quem passa o portão de ferro
do lado esquerdo estão os teus pais
e alguns irmãos  No talhão de
cima a minha avó  e tu
numa sepultura simples
Aqui e ali por entre os anjos
de mármore  jazem alguns
vizinhos  um jovem soldado
que morreu na guerra  uma criança
que não deveria estar ali  Lentamente
vão-se restabelecendo cumplicidades
num mundo onde as palavras
(e a vida) são desnecessárias."




"O Novíssimo Testamento e outros poemas" de Jorge Sousa Braga
Assírio & Alvim
1ª edição, Abril de 2012
Página 33

sábado, 27 de março de 2021

 "Escrever um poema
escavar uma toca"


"Estrelas
Na missa, uma velhota a cantar a ladainha a
Nossa Senhora em vez de cantar stella matutina
cantava estrela na cortina. Acho isto lindo."


"Conto
Era uma vez uma escritora tão poupada que
não escrevia para não gastar papel e tinta."


"Açúcar
Barthes escreveu já não sei onde cito de cor: o
açúcar é violento. Acho que tem razão."


"Psiquiatria
Uma médica psiquiatra disse-me nos anos 80:
sempre que uma pessoa faz uma coisa bem feita
é punida por isso."



"Manhã" de Adília Lopes
Assírio & Alvim
1ª edição, Fevereiro de 2015
Páginas 32, 50, 73, 94, 119

domingo, 21 de março de 2021

 
" As minhas paisagens são sempre feitas de sensibilidade, e o visitante queria inclinar-me para a razão que delimita e nada explica, sem nada nos dar em troca."


" Quando somos árvores, é difícil lutar contra o sentimento que as habita de que os humanos e os animais são espécies insensíveis. De resto, para qualquer árvore, a insensibilidade à beleza é o facto mais trágico do vivo."


" Nesse caso, por que escrevem?
Para bater levemente à porta do mundo ..."


" E pensei
que aprendi a falar com fios de prumo, ou melhor, varas ou troncos espetados na terra; compreendi, mais tarde, que eram relógios íntimos do sol;"


" caminho na areia e ouvem-se ao longe, repercutindo, uma
infinitude de sons naturais
são sons verbais que dão propriedade ao areal à minha volta,
ou sou eu
e todas as areias e todas as formas ínfimas e preciosas de vida
que convergimos para eles e os cristalizamos num ar onde,
nem que seja por instantes,
possamos comunicar"


" queria apenas estar só, na contemplação das múltiplas horas
do dia."


 " ... somos testemunhas de que o tempo tem muitas
dimensões demasiado pequenas para nos retratar por inteiro"




"Onde Vais, Drama-Poesia?" de Maria Gabriela Llansol
Relógio D'Água, Março de 2020
Páginas 199, 219, 220, 221, 223 e 299
 
" Na floresta e nos bosques somos todos desiguais, mas subimos e descemos uns aos outros pelos degraus da natureza."


" é verdade que eu amo os seres serenos que me não perturbam
_____ e cuja rotação é uniforme _____, como é verdade
que me apaixono pelos seres instáveis que variam,
que caem no rio do esquecimento,
e são enterrados muito longe,
na esperança da metamorfose."


" tanta fatalidade em ter
corpo como em ser mar ou noite."


" __________________________ digo à minha confidente:
afinal, sobre esta terra,
só algumas realidades me interessam;
a natureza, traduzida no verde por formar, e a já com forma;
os animais e, entre estes, certos homens."


" e continuamos,
a interrogarmo-nos sobre quem nos sonhou
porque deus é palavra demasiado grande e complexa para o 
efeito,
e explosão inicial demasiado impessoal para as pessoas 
sonhadas que somos"


" pensar que a nossa liberdade atravessa uma terra de complexidade
tal, que esta se pode perder,
e o silêncio em que vivemos transformar-se
num ressentimento, sem língua;"




"Onde Vais, Drama-Poesia?" de Maria Gabriela Llansol
Relógio D'Água, Março de 2020
Páginas 63, 76, 110, 111, 114 e 177

sábado, 20 de março de 2021

 
"As livrarias desaparecem rápido, os seus vestígios no tempo são mais ténues do que as marcas das grandes bibliotecas. No seu imprescindível ensaio - e rota de viagens bibliófilas -, Jorge Carrión escreve que o diálogo entre as coleções privadas e as coleções públicas, entre a livraria e a biblioteca, é tão velho como a civilização; mas a balança histórica pende sempre para a segunda. Enquanto o bibliotecário acumula, guarda, no máximo empresta temporariamente a mercadoria, o livreiro adquire para se livrar do adquirido, compra e vende, põe em circulação. A sua área é o trânsito, a passagem. Se as bibliotecas estão atadas ao poder, aos governos municipais, aos estados e aos seus exércitos, as livrarias vibram com o nervo do presente, são líquidas, temporárias. E, acrescentaria eu, perigosas."


"Como escreve Jorge Carrión, aqueles que conceberam os maiores sistemas de controlo, repressão e execução do mundo contemporâneo, aqueles que demonstraram ser os mais eficientes censores de livros, eram também estudiosos da cultura, escritores, grandes leitores."


"Cada criador tenta ser rebelde à sua maneira - como todos os outros. Continuamos a ser fiéis a um conjunto de ideias românticas: a liberdade é o oxigénio dos verdadeiros artistas, e a literatura que nos importa é aquela que constrói mundos próprios, uma linguagem liberta de convencionalismos e formas inexploradas de narrar."




"O Infinito num Junco" de Irene Vallejo
Bertrand Editora
1ª edição, Outubro de 2020
Páginas 304, 305, 311 e 364
 "Sentir um certo incómodo faz parte da experiência de ler um livro; há muito mais pedagogia na inquietação do que no alívio."


"Em latim, o termo que significava «livro» soava quase igual ao adjetivo que significava «livre», embora as raízes indo-europeias de ambos os vocábulos tivessem origens diferentes. Muitas línguas românicas, como o espanhol, o francês, o italiano ou o português herdaram o acesso dessa semelhança fonética, que convida ao jogo de palavra, identificando a leitura e a liberdade. Para os ilustrados de todas as épocas, são duas paixões que acabam sempre por confluir."


" ... recomendar e entregar a outro uma leitura escolhida é um poderoso gesto de aproximação, de comunicação, de intimidade.
Os livros não perderam totalmente esse primitivo valor que tiveram em Roma, a subtil capacidade de traçar um mapa dos afetos e das amizades. Quando umas páginas nos comovem, a primeira pessoa a quem falaremos sobre elas será um ente querido. Ao oferecer um romance ou um livro de poemas a alguém com quem nos preocupamos, sabemos que a sua opinião sobre o texto se refletirá sobre nós. Se um amigo, uma amada ou um amante coloca um livro nas nossas mãos, rastreamos os seus gostos e as suas ideias no texto, sentimo-nos intrigados ou visados pelas linhas sublinhadas, iniciamos uma conversa pessoal com as palavras escritas, abrimo-nos com maior intensidade ao seu mistério. Procuramos no seu oceano de letras uma mensagem numa garrafa para nós.
(...)
Certas leituras são uma forma de derrubar barreiras, certas leituras recomendam-nos o desconhecido que as ama.
(...)
Apesar do incentivo do marketing, dos blogues e das críticas, devemos quase sempre as coisas mais belas que lemos a um ente querido - ou a um livreiro convertido em amigo. Os livros continuam a unir-nos e a criar laços de forma misteriosa."




"O Infinito num Junco" de Irene Vallejo
Bertrand Editora
1ª edição, Outubro de 2020
Páginas 213, 279 e 304

quinta-feira, 18 de março de 2021

 
"Sopa de mostarda. Cozinha-se depressa, não dá muito trabalho e, por isso, consegui fazê-la a tempo. Primeiro, aquece-se numa frigideira um pedaço de manteiga e adiciona-se farinha, como quem vai fazer bechamel. A farinha absorve lindamente a manteiga derretida, depois sacia-se dela, incha satisfeita e, nessa altura, deita-se leite e água, na mesma proporção. Infelizmente, é o fim da brincadeira entre a manteiga e a farinha e, a pouco e pouco, a sopa vai ganhando forma, sendo ainda preciso temperar este líquido ainda claro e inocente com sal, pimenta e cominhos, deixá-lo levantar fervura e tirar do lume. E só então se adiciona mostarda de três tipos: mostarda em grão, como a francesa de Dijon; mostarda cremosa, suave e fina à moda russa, e mostarda em pó. É importante que a mostarda não ferva, senão a sopa perde o seu sabor e torna-se amarga. Sirvo esta sopa com torradinhas, e sei que Dyzio gosta muito dela."




"Conduz O Teu Arado Sobre Os Ossos Dos Mortos" de Olga Tokarczuk
Cavalo de Ferro
3ª edição, Novembro de 2018
Página 259
"Então é assim: para determinar a morte natural, leva-se em consideração a posição de Hyleg, ou seja, o corpo celeste que nos transmite a energia vital do Cosmo. Nos nascimentos diurnos, trata-se do Sol e, nos nascimentos nocturnos, é a Lua e, em alguns casos, Hyleg torna-se o governante do Ascendente. A morte normalmente ocorre quando Hyleg assume um aspecto radicalmente desarmonioso em relação ao governante da oitava casa ou ao planeta que se situa no seu âmbito.
Ponderando a ameaça de uma morte violenta, tinha de levar em linha de conta Hyleg, a sua casa e os planetas nela localizados. Prestava ainda atenção, para saber qual dos planetas nocivos - Marte, Saturno, Urano - era mais forte do que Hyleg e criava com ele um aspecto negativo."


"A minha Vénus encontra-se danificada ou, então, está no exílio - é assim que se diz quando um Planeta não se encontra no signo em que deveria estar. Além disso, Plutão, que, no meu caso, rege o Ascendente, encontra-se no aspecto negativo em relação a Vénus. Esta situação dá origem àquilo que - creio eu - ma afecta: a síndrome de Vénus preguiçosa. Foi assim que chamei a esta regularidade. Trata-se de pessoas muitíssimo bafejadas pelo destino, mas que não aproveitaram as suas potencialidades. São inteligentes e perspicazes, mas não se dedicam afincadamente a estudar e aproveitam a inteligência principalmente para jogar às cartas e fazer paciências. São dotadas de beleza física, mas destroem-na por falta de cuidado, por se intoxicarem com substâncias viciantes, por ignorarem a existência de médicos e dentistas.
A Vénus preguiçosa impele a uma estranha espécie de indolência - desperdiçamos oportunidades porque ficámos a dormir, porque não nos apeteceu ir, porque nos atrasámos, porque não ligámos. Trata-se de uma tendência para o sibaritismo, para passarmos a vida num estado semiconsciente e leve, para nos dispersarmos com pequenos prazeres, para sentirmos aversão a todo o esforço e para não termos a mínima predisposição para competir.
Manhãs compridas, cartas por abrir, assuntos adiados para mais tarde, projectos abandonados. O desprezo por toda e qualquer autoridade e pela submissão. As pessoas assim seguem sozinhas, silenciosas e indolentes, pelos seus próprios caminhos. Pode dizer-se que não servem para nada."


"Tenho Mercúrio em retrogradação e, portanto, é mais fácil para mim exprimir-me a escrever do que a falar. Poderia ser uma boa escritora."




"Conduz O Teu Arado Sobre Os Ossos Dos Mortos" de Olga Tokarczuk
Cavalo de Ferro
3ª edição, Novembro de 2019
Páginas 67, 239, 240 e 262
 " - Sabe, às vezes, tenho a impressão de que vivemos num mundo inventado por nós mesmos. Estabelecemos o que é bom e o que não é, desenhamos mapas de significados ..., e, depois, passamos a vida inteira a lutar contra aquilo que concebemos. O problema é que cada um tem a sua versão do mundo, e por isso é tão difícil as pessoas entenderem-se."


" ... considero que a psique humana nasceu como mecanismo de defesa para nos impedir de aceder à verdade. Para nos vedar a visão do mecanismo directamente. Ela dedica-se principalmente a filtrar a informação, apesar de as capacidades do nosso cérebro serem enormes, pois não seria possível suportar esse conhecimento. Porque até a mais pequena partícula do mundo é feita de sofrimento."


"Agora, compreendia a semelhança existente entre as torres de vigia de caça, que aliás faziam lembrar as torres dos guardas dos campos de concentração, e o púlpito da igreja. No púlpito, o Homem coloca-se acima dos outros Seres e atribui a si próprio o direito de lhes conceder a vida ou a morte. Torna-se um tirano e usurpador."




"Conduz O Teu Arado Sobre Os Ossos Dos Mortos" de Olga Tokarczuk
Cavalo de Ferro
3ª edição, Novembro de 2019
Páginas 236, 237 e 254

sábado, 13 de março de 2021

 
"O quarto onde eu vivia era, de facto, permeável ao jardim, à floresta e as aspectos técnicos da nostalgia. A nostalgia escolhe, de preferência, os crepúsculos matinais, os instantes em que se conclui o trabalho e os passeios vespertinos por jardins que ainda não nos conhecem."


"O rumorejar incipiente da sua linguagem levou-me aos lodos do rio, ao sol, ao sistema solar, à via láctea, às infinitas galáxias; fiquei a saber que o dom poético é a língua tocada pela expansão do universo ..."


" ... a natureza era para todos aqueles que ali brilhavam um texto profético que absorvia às golfadas o dom poético com que viera vestida."




"Onde Vais, Drama-Poesia?" de Maria Gabriela Llansol
Relógio D'Água, Março de 2020
Páginas 20, 21 e 23

No princípio foram as árvores

 
"Os livros são filhos das árvores, que foram o primeiro lar da nossa espécie e, talvez, o mais antigo recipiente das nossas palavras escritas. A etimologia da palavra encerra um velho relato sobre as origens. Em latim,
liber, que significava «livro», originariamente dava nome à casca da árvore ou, para sermos mais exatos, à película fibrosa que separa a casca da madeira do tronco.
(...)
Os nomes germânicos - book, Buch, boek - também descendem de uma palavra arbórea: a faia de tronco esbranquiçado."



"O Infinito Num Junco" de Irene Vallejo
Bertrand Editora
1ª edição, Outubro de 2020
Páginas 278 e 279




quinta-feira, 11 de março de 2021

Tempo

 
"Aproximamo-nos um pouco e o que vemos é um relógio de sol coberto de musgo. A pedra encontra-se partida. Talvez venha o seu silêncio ensinar-nos qualquer coisa. A chuva e o vento apagaram o que nele estava escrito. Olhámo-lo outra vez para sentirmos como está próximo de nós. A seu lado as ervas crescem. A sombra que desce já não pode indicar as horas a ninguém, porque o dia e a noite acabam por ficar confundidos. A sua superfície permanece vazia. Afastamo-nos agora. É por isso que nele o tempo ainda passa."



"As Raízes Diferentes" de Fernando Guimarães
Relógio D'Água Editores, Junho de 2011
Página 43

Maternidade

"Aproxima-se de uma praia. Pode fazê-lo mesmo que se conserve imóvel. Aprendeu a escutar algumas vozes, mas nem sequer conhece a quem elas se dirigem. O seu corpo inclina-se para que fique tranquilo, assim leve, delicado. Talvez acabe por não existir nada dentro de si. A ausência é o modo como ela cresce. A manhã chega porque a tinha esperado. Fica tão longe aquilo que escutava ao perguntar apenas: será isto um vagido? Os seus ombros estremecem e ficam descaídos. Há imagens de que se recorda ainda, quando os olhos se entreabrem mais. Sabe o que vai acontecer; mas o que tantas vezes fica repetido torna-se agora para ela novo e límpido. Depois adormece por instantes. Está sozinha. É a si mesma que se encontra."



"As Raízes Diferentes" de Fernando Guimarães
Relógio D' Água Editores, Junho de 2011
Página 56

sexta-feira, 5 de março de 2021

 
"Sentei-me nos lugares dispersos do teu silêncio, e esperei por ele."


"o poema passa,
a cada instante passa e enriquece a voz,
alteia a minha percepção do mundo,
são tantas as pregas do céu,
as colinas,
os altos dos montes, os sistemas solares;

voltaremos a subir a encosta da manhã,
o mundo está prometido ao Drama-Poesia."




"Onde Vais, Drama-Poesia?" de Maria Gabriela Llansol
Relógio D´Água, Março de 2000
Páginas 09 e 16


" ... a personalidade de cada um de nós está modelada - mais do que gostamos de admitir - pelos hábitos mentais, a repetição e o chauvinismo: «Se todas as pessoas pudessem escolher entre todos os costumes, convidando-as a optar pelos mais perfeitos, cada uma escolheria o seu; cada uma está extremamente convencida de que os seus próprios costumes são os mais perfeitos.
(...)
Os costumes são muito diferentes em cada cultura, mas a sua força é gigantesca em todo o lado. No fundo, o que as comunidades humanas têm em comum é aquilo que, inevitavelmente, as põe em confronto: a tendência para se julgarem melhores. Como revelou o olhar irónico do grego nómada, estamos todos muito dispostos para nos considerarmos superiores. Nisso somos iguais."


"Reconheço que, perante as leituras alheias, sinto uma curiosidade desenfreada. Nos autocarros, no elétrico e no comboio, torço o pescoço em contorções inverosímeis tentando descobrir o que é que os viajantes à minha volta leem. Acho que os livros descrevem as pessoas que os têm entre as mãos."




"O Infinito Num Junco" de Irene Vallejo
Bertrand Editora
1ª edição, Outubro de 2020
Páginas 187, 188 e 199
 
"Olhei para a paisagem preta e branca do Planalto e compreendi que a tristeza é uma palavra importante na definição do mundo. Está subjacente a tudo, é a quinta força da natureza, a sua quintessência."


" - Do ponto de vista da natureza, não há seres úteis e inúteis. Isso não passa de uma distinção estúpida aplicada pelas pessoas."




"Conduz O Teu Arado Sobre Os Ossos Dos Mortos" de Olga Tokarczuk
Cavalo de Ferro
3ª edição, Novembro de 2019
Páginas 55 e 167



quinta-feira, 4 de março de 2021

 " ... a linha divisória entre a barbárie e a civilização nunca é uma fronteira geográfica entre diferentes países, mas sim uma fronteira moral dentro de cada povo; aliás dentro de cada indivíduo."


" ... a memória é frágil, evanescente, e que quando alguém evoca o seu passado deforma a realidade para se justificar ou encontrar alívio.
(...) nunca chegaremos a conhecer a verdade mais profunda, apenas os seus indícios, as suas variantes, as suas versões, a sua comprida sombra, as suas infinitas interpretações."



"O Infinito Num Junco" de Irene Vallejo
Bertrand Editora
1ª edição, Outubro de 2020
Páginas 180 e 182
 
"De uma maneira geral, não é homem de muitas falas. Deve ter Mercúrio no signo mudo - aposto que em Capricórnio ou, talvez, na conjunção, no quadrado ou, quiçá, em oposição a Saturno. Também podia ser Mercúrio na retrogradação, o que dá origem a um carácter reservado."


"Quanto a mim, ele devia ter uns cinquenta anos e eu seria capaz de pagar para ver a sua oitava casa e verificar se Neptuno e Plutão não estariam aí ligados de alguma maneira, com Marte algures no ascendente, porque ele, com a sua serra dentada nas mãos fibrosas, fazia-me lembrar um predador que apenas vive para semear a morte e infligir sofrimento."




"Conduz O Teu Arado Sobre Os Ossos Dos Mortos" de Olga Tokarczkuk
Cavalo de Ferro
3ª edição, Novembro de 2019
Páginas 07 e 16