quarta-feira, 29 de julho de 2015

"Não voltei a esse corpo; e não sei
se aqueles que o vestiram antes e depois
de mim souberam nele o verdadeiro calor
e lhe conheceram os perigos, os labirintos,
as pequenas feridas escondidas. Não voltarei
provavelmente a sentir a respiração
palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas
rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito,
também, às vezes.
 
Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,
o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.
E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me
recolheu,
porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.
 
Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto
trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos."


Maria do Rosário Pedreira  em "A Casa e o Cheiro dos Livros"

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Ilha dos Abençoados

"Ilha dos Abençoados, com cerca de 800 quilómetros de comprimento, no Oceano Atlântico. Terra de um povo que se veste de cor púrpura com belas teias de aranha.
(...)
A ilha é comprida e plana, governada por Radamantus, natural de Creta. A capital da ilha, também chamada Abençoada, foi construída em ouro com muralhas de esmeralda. Tem sete portas fabricadas a partir de uma única peça de canela, e as estradas que atravessam a cidade são de marfim. Há templos a todo o tipo de deuses, feitos de berilo e contendo altares elevados de ametista (...). Em torno da cidade corre um rio de um perfume requintado, com 15 metros de profundidade e facilmente navegável, sete rios de leite e oito de vinho, e há fontes de água, mel e perfume. Os banhos públicos da cidade são grandes edifícios de cristal, aquecidos com canela; as banheiras contêm água e orvalho quente.
Os viajantes não encontrarão na Ilha dos Abençoados a escuridão da noite ou a luz do dia a que estão habituados. A ilha está permanentemente imersa na penumbra, como se o sol ainda não tivesse nascido. Aqui é sempre Primavera e só sopra um vento, o zéfiro. O país é rico em todo o tipo de flores e todo o tipo de plantas; as videiras produzem cachos de uvas 12 vezes por ano; as macieiras, as romãzeiras e outras árvores dão frutos 13 vezes por ano, porque no mês de Minossa produzem duas vezes. O trigo produz não só feixes já prontos, mas também belíssimos pães, que crescem nas extremidades da planta como cogumelos."

Luciano de Samósata, História Verdadeira, séc II

sábado, 25 de julho de 2015

Nómada

"Sentou-se no porto e abriu aos que o escutavam
o seu livro de viagens.

Conhecera as montanhas geladas do norte e atravessara de noite
brancas e densas florestas, acossado pelos ursos. Cruzara
cidades luminosas onde as mulheres tinham cabelos louros,
mas ninguém falava a sua língua; e deixara-se arrastar
pelos ventos até às praias quentes do sul onde ganhou
pele morena e olhos verdes. Depois
 
instalou-se provisoriamente nas ruínas de um continente velho
onde foi monge, amante, homem letrado, e ensinou às raparigas
de um claustro branco os rudimentos da leitura. E, por fim,
partiu para um dos derradeiros lugares do mundo,
onde o tomaram pelo último marinheiro e o perseguiram.
 
Perdera deus no seu caminho e voltara atrás.
 
Havia, enquanto recordava, uma pequena ferida na sua voz:
em nenhum lugar achara ainda o nome da sua casa."


Maria do Rosário Pedreira  em "A Casa e o Cheiro dos Livros"

domingo, 19 de julho de 2015

"Nenhum homem tem o privilégio de entender o futuro, a não ser que esteja preparado para o criar."
 
Henry Lovell

sábado, 18 de julho de 2015

Heaven is closer than you think







 
 
"Heaven is closer than you think" ... uma selecção de fotografias tiradas por Amy Harrity na sua mais recente viagem à Grécia!
"Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe.
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo.
Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única central realidade que não está em nenhum e está em todos.
Como o panteísta se sente onda e astro e flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, individuado por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço."

Fernando Pessoa em "Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal"

sexta-feira, 3 de julho de 2015

"Por que é que hás-de pensar que a beleza, que é a coisa mais preciosa do mundo, está por aí, como um seixo na praia, placidamente à espera que algum passante descuidado a apanhe? A beleza é algo de maravilhoso e estranho que o artista molda a partir do caos universal com a sua alma atormentada. E, quando a cria, nem a todos é dado conhecê-la. Para a reconhecermos é preciso repetir a aventura do artista. É uma melodia que ele nos entoa, e, para a ouvirmos outra vez no nosso coração, são precisos conhecimentos, sensibilidade e imaginação."

Somerset Maugham  em "A Lua e Cinco Tostões"