sexta-feira, 30 de agosto de 2019

"Não temo a transparência mas sim a sua contínua destruição. Mallarmé disse que o poeta vem transformar o caos em cosmos. Há um desorganizado, um balbuciante, uma confusão latente que nunca são completamente clarificados e ninguém consegue criar uma transparência total.
(...)
Vivemos à beira de um abismo que não é redutível ... O caos de certa maneira revitaliza o cosmos, é uma fonte de energia e é isso o que o poeta sabe.
(...)
Há sempre uma rouquidão no poema que é a voz do caos, da origem do combate que houve com a treva, com a imperfeição, com a desordem em que o poeta se afogou e de que emerge através do poema. Pode dizer-se que escrevemos poesia para não nos afogarmos no caos.
(...)
Para mim é claro que se escreve a partir de um caos ... e se tenta emergir, até pelo nomear das coisas. Porque temos nós tanta necessidade de escrever? Há sempre uma sensação de perdição que nos leva a escrever, até para ver onde estamos, para compreender onde estamos.
(...)
O poema não é o caos, percebe? O poema é arrancado ao caos e traz ainda a sua ressonância, os seus ecos."
 
 
JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 26, 16 de Fevereiro de 1982
Entrevista de Maria Armanda Passos

Pedro Moutinho - Contemplo o que não vejo


 
(Fernando Pessoa/Armando Freire (Fado Alexandrino))
Guitarra Portuguesa: José Manuel Neto
Viola: Carlos Manuel Proença
Baixo Fretless: Joaquim Correia
 
 
"Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro,
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.
 
Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
 
Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.
 
Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste,
Mas triste é o que estou."
 
Fernando Pessoa|07-09-1933
Poesias (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor), Lisboa,
Edições Ática, 1942 (16ª ed 1997), pp 171-172

Sabes Quem Sou Eu

"Eu não posso ir contigo, meu amor
Tu não podes vir comigo
Eu sou a distância que inventámos
Entre todos os momentos que seremos
 
Sabem quem sou eu
Contemplaste a claridade
Pois eu sou aquele que gosta de mudar
Do zero à unidade
 
Às vezes quero-te nua
Às vezes quero-te brutal
Quero-te para teres o meu filho
Quero-te para matares uma criança
 
Se alguma vez me encontrares
Render-me-ei de imediato
Deixando-te um homem destroçado
Que te ensinarei a consertar
 
Sabem quem sou eu
Contemplaste a claridade
Pois eu sou aquele que gosta de mudar
Do zero à unidade"
 
 
Leonard Cohen  em "Poemas e Canções - Volume 1"
Relógio D' Água Editores, Agosto de 1999
Página 277
"Os próprios noticiários são cada vez mais uma variante do folhetim: o desaparecimento de Maddie, o rapto de Esmeralda, o caso Casa Pia, o assassinato de Carlos Castro, a Crise; mas também a invasão do Iraque, o tsunami, o tremor de terra no Japão, o derrube dos ditadores no Médio Oriente, tudo são motivos de ficções efémeras, que se esgotam depressa e a que falta o essencial: um autor, uma voz, alguém que as ordene e lhes dê forma e sentido.
Com esse culto do efémero, que a televisão e agora a Internet promovem, ao que estamos a assistir é a uma conspiração contra a memória; ou então, ao seu embalsamento (o que é o mesmo), em museus oferecidos a turistas distraídos. Há muitas maneiras de destruir novamente a Biblioteca de Alexandria: uma delas é transformá-la num supermercado de informação e divertimento e enchê-la de atraentes futilidades.
Senão, vejamos. Nunca como hoje tivemos tanta informação disponível; mas também nunca como hoje tivemos a sensação frustrante de que não somos informados e, sobretudo, de que deixámos de ser capazes de interpretar o mundo.
Tudo é feito para nos fazer ganhar tempo: desde a Via Verde e o Multibanco à velocidade sem limites das comunicações. Mas nunca como hoje tivemos tão pouco tempo para nós.
A liberdade prometia-nos a felicidade e o conforto. Nunca tivemos tantas liberdades. Mas também nunca, como hoje, nos sentimos tão pouco felizes e tão pouco seguros.
Os progressos da globalização trouxeram consigo uma atomização da cultura, uma proliferação das ficções e uma democratização dos meios de as produzir. Hoje, qualquer um pode ser criador. E, no entanto, nunca houve tão poucos criadores.
Aumentaram os contactos na Internet, nas redes sociais. Mas nunca estivemos tão sozinhos.
Não se trata de fazer julgamentos morais sobre o presente. Podemos lamentar este século, mas não temos meios para o corrigir. Os moralistas são sempre conselheiros impotentes, patéticos velhos do Restelo, incapazes de mudar a realidade. As coisas irão acontecer comandadas pelos ciclos naturais da História. Não se inventam artistas com subsídios, nem ficções por decreto.
Mas é bom estarmos atentos aos sinais dos tempos. Como vimos, as épocas em que a ficção floresceu foram sempre períodos curtos em cada país ou continente, e seguiram-se-lhe sempre longos períodos de vazio criativo e de decadência. Mas a ficção renasceu sempre pouco depois, noutro sítio e sob outras formas, em função da hegemonia histórica de cada país e de cada cultura, em cada momento; os temas foram sempre apropriados por outros, noutro lugar, por outros meios, aprofundados, modificados, combatidos, mas nunca houve rupturas totais, como parece haver hoje, com o passado.
Excepto uma vez. Houve um período em que o vazio se prolongou por cerca de dez séculos: entre o colapso do mundo greco-romano e o Renascimento. E a pergunta que se impõe é esta: estaremos nós diante de uma nova crise tão profunda e tão longa como a que se seguiu à queda do Império Romano?
Os sinais permitem a comparação: triunfo do hedonismo, do individualismo, da satisfação fácil dos prazeres, longo período de paz, abundância de facilidades, mas, também, triunfo da ganância, do cinismo, da futilidade e, sobretudo, da descrença; crise de confiança, descrédito da política e da justiça, falta de horizontes, colapso da energia, quebra da solidariedade. Repito, por isso, a pergunta com que comecei: neste século, que ainda há pouco começou, qual será o futuro da ficção?
A minha convicção é que esta Europa que está em coma desde a queda do Muro de Berlim, só acordará deste sono profundo se for sacudida por um novo cataclismo - ou por uma séria ameaça - social, económica, ecológica, terrorista ou tecnológica, como prevê Paul Virilio, quando vê no que chama o "cibermundo" os sinais anunciadores de uma catástrofe global.
Posso e espero enganar-me; mas uma coisa me parece certa: para se imporem, aqui ou noutro sítio, as novas ficções terão que recuperar a tradição humanista e aristotélica que fundou o "Cânone Ocidental" e que, ao longo dos séculos, foi reescrevendo, através da imaginação dos seus génios criadores, a mesma história: a História do Homem capaz de identificar o mal e denunciar a tirania, de lutar contra a adversidade e de superar-se a si próprio, de dar uma ordem ao caos e um sentido ao seu destino.
Será que essa tradição é irrecuperável? Estaremos no limiar de um novo paradigma em que o Homem já não é a medida de todas as coisas e em que o Cânone é descartável? Será a Europa vítima do seu sucesso, como foi o Império Romano? Será que a seguir à "Idade do Caos", de que fala Bloom, teremos uma nova "Idade das Trevas", como a que se seguiu aos últimos imperadores?
Os sinais dos tempos são confusos e pouco animadores. E, sobretudo, deixam-nos perplexos, com a esperança suspensa, hesitante, à espera de um sinal. Os tempos que aí vêm serão portadores de um novo e radioso impulso criador, que anuncie um retomar do Cânone, ou de um longo e desastroso crepúsculo do Humanismo? Devemos confiar que esse testemunho, que passou de Homero a John Ford, não se vai perder? Ou, pelo contrário, teremos de esperar novamente dez séculos, os mesmos que levámos a redescobrir Aristóteles?"


António-Pedro Vasconcelos  em "O Futuro da Ficção"
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Páginas 59 a 62
"Muitas vezes tenho perguntado a mim própria porque é que eu não consigo (e tenho tentado) escrever de manhã, mas de manhã há muitas coisas que distraem, o mundo está cheio de surpresas e depois, há as interrupções da vida, a falta de sossego, o barulho, as pessoas que passam. É que escrever tem uma coisa muito má - eu digo sempre que o pior dos defeitos para uma pessoa é a obsessão e a melhor qualidade para um escritor é "essa" obsessão. Preciso daquela concentração especial que se vai criando pela noite fora."
 
 
 
Sophia de Mello Breyner Andresen fala a Eduardo Prado Coelho
in ICALP - Revista, nº6, Agosto/Dezembro 1986, pp 60-77

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Nick Drake - Way To Blue


Há ciência no pecado

 
Jack Lewis (neurobiólogo) na E - A Revista do Expresso (24/Agosto/2019)
Texto de Cristina Margato
Páginas 60,61

Não Me Demorei Nos Mosteiros Europeus

"Não me demorei nos mosteiros europeus
nem descobri entre as altas ervas túmulos de cavaleiros
tão maravilhosamente caídos como as suas baladas cantam;
não afastei as ervas
nem propositadamente os cobri de colmo.
 
Não deixei livre o meu espírito para deambular e esperar
nessas grandes distâncias
entre as montanhas cobertas de neves e os pescadores
como uma lua
ou uma concha sob a corrente de água.
 
Não retive a respiração
para poder ouvir respirar Deus
nem domei o bater do meu coração com um exercício
nem passei fome em busca de visões.
Ainda que a tenha visto muitas vezes
não me converti na garça
deixando o meu corpo na margem
nem me converti em luminosa truta
deixando o meu corpo no ar.
 
Não adorei feridas nem relíquias
nem pentes de ferro
nem corpos envoltos e queimados em pergaminho.
 
Não fui infeliz em dez mil anos
Rio durante o dia, à noite durmo
Os meus cozinheiros favoritos preparam as minhas refeições,
o meu corpo limpa-se e renova-se por si
e todo o meu trabalho vai bem."
 
 
Leonard Cohen  em "Poemas e Canções - Volume 1"
Relógio D' Água Editores, Agosto de 1999
Página 45
"É tempo de tirar as primeiras conclusões.
Eis a primeira: todos estes gigantes são sempre devedores do passado. Mesmo quando se tornam eles próprios, pelo seu génio, os criadores autónomos da sua obra, a verdade é que, dos poemas homéricos e das tragédias gregas às grandes peças de Shakespeare, da grande pintura da Renascença à ópera italiana, do romance francês, inglês e russo do século XIX ao cinema do século passado, todos os autores se reclamam de uma mesma tradição, se copiam e se renegam, de época em época, de país em país, de expressão artística em expressão artística. Miguel Ângelo recria a mitologia judaico-cristã, que ele conjuga, como toda a pintura da Contra-Reforma, com a mitologia greco-romana, e torna-se, com os outros pintores da Renascença e do Barroco, a referência da pintura ocidental - a tal ponto que a "viagem a Itália" passou a ser uma obrigação para qualquer artista que quisesse seguir o rasto dos mestres italianos. Shakespeare, por sua vez, foi beber as suas histórias a vários autores antigos e contemporâneos, e é, ele próprio, uma sombra que paira sobre a invenção romanesca de todos os autores que vieram a seguir a ele; depois de Macbeth, as últimas óperas de Verdi adaptam outros personagens seus: Falstaff e Otelo.
Griffith, que inventou o cinema com O Nascimento de uma Nação, reclamava para a 7ª Arte, numa legenda que fez questão de colocar antes do filme, "a mesma liberdade que tiveram os autores da Bíblia e Shakespeare". Poderia ter acrescentado Dickens e Tolstoi, que foram outros dos seus mestres. E não será John Ford o grande continuador de Homero?
O que nos leva à segunda conclusão: de Homero a John Ford, os grandes criadores voltam sempre aos mesmos temas - o tema do heroísmo e do sacrifício, da falsidade e da mentira, do medo e da coragem, da culpa e da redenção, do ódio e da vingança, da resistência à tirania e às leis iníquas, da viagem e da descoberta, da esperança e da decepção, da amizade e da traição, do amor e dos seus obstáculos. Numa palavra, a luta do Homem contra a adversidade. Sob novas formas, com novos personagens e com novas perspectivas morais, é sempre o Bem e o Mal e a definição que cada época lhes dá, que se hão-de defrontar até ao fim dos tempos.
Terceira conclusão: os grandes momentos em que uma arte floresceu num país e numa época são sempre períodos curtos, de uma ou duas gerações: Dante, Petrarca e Boccaccio, nos primórdios do século XIV; Masaccio, Piero della Francesca e Donatello, no começo do século XV; Rabelais e Montaigne, na França do século XVI; Miguel Ângelo, Rafael e Ticiano, em Roma, na mesma época; Cervantes e Velásquez, em Espanha, e Shakespeare, em Inglaterra, Caravaggio e Bernini, em Roma, nos inícios do século XVII; Rossini, Mozart, Bellini, Donizetti e Verdi, dos finais do século XVIII aos finais do século XIX; como Balzac, Stendhal e Victor Hugo, na França dos princípios do século XIX, e como, mais tarde, Púchkin, Gogol, Dostoiewski e Tchékhov, na Rússia dos últimos Czares; Kafka, Joyce, Beckett, Pessoa, nos primeiros anos do século XX; Griffith, Chaplin, Ford, Welles, ao longo do século passado, em Hollywood; e, depois da II Guerra, Rossellini, Fellini e Visconti, em Itália.
Quarta conclusão: essas épocas correspondem invariavelmente ao período de uma vida humana e percorrem, também elas, a curva que vai do esplendor ao declínio, da esperança à decepção, do vigor e da energia criativa da juventude à maturidade e ao equilíbrio da idade adulta, e depois, ao envelhecimento e ao crepúsculo. E, quase sempre, esses períodos correspondem também ao tempo de vida dos seus principais protagonistas: Miguel Ângelo, Shakespeare, Beethoven, Verdi, Tolstoi ou John Ford. E, por último, a esses períodos curtos em que, nessa forma específica de expressão artística, a ficção renasce, se afirma e se renova, segue-se sempre um intervalo, pelo menos igual, de vazio e de silêncio.
E chegamos então à pergunta que fiz no início: qual será o futuro da ficção neste século XXI, depois de 35 anos de vazio e de silêncio preenchidos pela vulgaridade e pelo ruído? Pode a Europa (e, em geral, o Ocidente) reencontrar o caminho das grandes ficções, que o mesmo é dizer, um destino exaltante, ou terá que esperar, como sempre aconteceu, por uma grande catástrofe ou uma revolução, em todo o caso, um conflito violento, "um parto com dor", como diria Marx que a História se faz, para renascer novamente dos escombros e se libertar da vulgaridade?
Os sinais do presente são inquietantes. Onde está hoje o heroísmo? Onde estão a esperança e a energia, sem os quais não há elã criador? Rossellini, esse visionário impaciente, foi o primeiro a pressentir que a Europa do pós-guerra havia perdido depressa demais o sentido do heroísmo, da solidariedade e do sacrifício, quando fez Europa 51, um filme profético a que ele quis dar uma data precisa (como fizera com Roma, cidade aberta e Alemanha, ano zero), um filme que é como um epitáfio na esperança redentora do pós-guerra.
Mas se a Europa, por milagre, conseguir evitar o caos e se reencontrar com a sua cultura e os seus valores, por que forma se irão manifestar os novos ficcionistas? As novas tecnologias irão oferecer-lhes formas inesperadas de se exprimirem, como aconteceu com o cinema no princípio do século passado? Ou os futuros artistas do Cânone irão retomar as formas antigas: o romance, as artes plásticas ou as artes do palco, o teatro, o "drama in music" (como se chamou à ópera) ou mesmo o cinema? Que meio, velho ou novo, irá permitir o aparecimento de novas ficções federadoras que nos sirvam de espelho e de exemplo, de reflexo e de reflexão, que nos ofereçam modelos de acção e se tornem referências do nosso imaginário, chaves para interpretarmos a realidade e guias para os nosso julgamentos?"
 
 
António-Pedro Vasconcelos  em "O Futuro da Ficção"
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Páginas 51 a 58

"Eu penso que há em todo o homem, em todo o poeta, uma tentativa para conservar uma eternidade que está latente nas coisas, porque no fundo, todos nós amamos as coisas sob um olhar de eternidade mesmo que depois vejamos as coisas desfazerem-se ..."  
 
 
Sophia de Mello Breyner Andresen fala a Eduardo Prado Coelho
in ICALP - Revista, nº6, Agosto/Dezembro 1986, pp 60-77

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

"Queria esconder-me para me dedicar ao meu verdadeiro trabalho, o qual consistia numa espécie de apelo para partes remotas de mim mesma. Eu vivia em estado de sítio, sempre a perder o que justamente pretendia conservar."
 
 
Alice Munro  em "O Progresso do Amor"
Relógio D' Água Editores, Junho de 2011
Página 92

Dádiva

"Dizes-me que o silêncio
está mais próximo da paz que os poemas
mas se como uma dádiva
eu te trouxesse o silêncio
(porque eu conheço o silêncio)
tu dirias
Isto não é silêncio
Isto é outro poema
e haverias de devolver-mo."
 
 
Leonard Cohen  em "Poemas e Canções - Volume 1"
Relógio D' Água Editores, Agosto de 1999
Página 67
" - É comum provérbio, formosa senhora, que a diligência é mãe da boa ventura, e em muitas e graves coisas mostrou a experiência que a solicitude do negociante leva a bom fim o pleito duvidoso ..."

Miguel de Cervantes  em "Dom Quixote de la Mancha"
Publicações Dom Quixote
3ª edição (Setembro de 2015)
Páginas 425, 426

domingo, 18 de agosto de 2019

Alison Moyet - Windmills of Your Mind


"Mas, de substantivo, quando nos confrontamos com os temas recorrentes que compõem o Cânone Ocidental, o que há de novo entre Homero e John Ford?
Eu diria quatro coisas.
O protagonismo do Mal, com Shakespeare; a atracção pelo Mal, o fascínio, o prestígio e a grandeza que Shakespeare concede aos personagens que são os intérpretes de um catálogo de paixões maléficas, seres possuídos pela vertigem da maldade e elevados à categoria de grandes personagens, que desafiam a moral e a mortalidade: Ricardo III, Iago, Lady Macbeth e tantos outros que abundam nas suas peças e fazem da perfídia, da intriga, da dissimulação, da perversidade e do crime o seu prazer supremo e insaciável. O Antigo Testamento já era, como disse Saramago, "um manual de maus costumes", mas é a partir de Shakespeare que ficamos a saber definitivamente que o mundo é maléfico e que a História dos homens é um longo caminho de mortos inocentes e de crimes sem castigo.
A segunda originalidade, que se inicia no século XIX e se consagra definitivamente no século XX, é o sexo, que a ficção havia até aí evitado, proscrito, banido do romance e da pintura. A Santa Teresa de Bernini só é possível porque o orgasmo se esconde sob o manto do êxtase espiritual. E Malraux lembrava que, no romance, antes de O amante de Lady Chatterley, o prazer sexual era sempre elíptico, iludido, e que, no tempo de Stendhal, pertencia ainda à literatura clandestina, a que, entretanto, o marquês de Sade (esse personagem shakesperiano, amaldiçoado antes e depois da Revolução) viria a dar a expressão mais desafiadora da moral e dos costumes de que há memória. Malraux chamava a atenção para o facto de que, n'O Vermelho e o Negro, a noite de amor entre Julien Sorel e Madame de Renal é dada, pudicamente, num ponto e vírgula. Mas se, ainda no século XIX, o "divino Marquês", que glorifica o prazer sem limites e desafia Deus e a moral, é ainda clandestino, os grandes libertinos (D. Giovanni, Valmont) entram na galeria prestigiosa dos grandes personagens da ficção; mesmo se, no fim, são punidos, não deixam de ser, literalmente, sedutores.
Mas, além do mal e do sexo, que novos mistérios do comportamento humano fizeram a sua entrada na ficção? Eu vejo mais dois. A descoberta do subconsciente, isto é, a criação de personagens sujeitos a comportamentos contraditórios, movidos por impulsos que escapam à razão e à sua própria vontade, que vamos encontrar, com uma intuição invulgar, antes de Freud os teorizar, em Dostoievski, Tchékhov, Melville ou Stefan Zweig, e que marcam o romance moderno. Podemos sempre alegar que o comportamento de Édipo inspirou Freud, que Shakespeare já havia criado Hamlet e Iago - Hamlet que duvida de si mesmo e Iago que afirma, como um desafio à inteireza do Cristo: "I'm not what I am!"
Poderíamos incluir nessa descoberta do subconsciente, a confiança que os artistas passam a depositar no trabalho do acaso e do improviso, que se revelam pela primeira vez na "escrita automática", nos cadavre exquis dos surrealistas e nos ready made de Duchamp, mas também no jazz e na pintura de Pollock.
E, por fim, "a morte de Deus". Desde a proclamação de Nietzsche, a ficção moderna tem vivido o silêncio de Deus e o vazio deixado pela sua ausência. "Se Deus não existe, tudo é possível", disse Dostoievski, como poderiam ter dito Iago ou Ricardo III. Mas sem Deus, sem uma ordem no mundo - ou, ao menos, um desejo de ordem, isto é, sem uma desordem que é preciso condenar e combater -, sem alguém a quem pedir contas e com quem medir forças, como faz o capitão Ahab, o mundo é um enorme vazio, onde a razão se perde e a esperança se esvai. É essa angústia que sentem os personagens de Sartre e de Camus, de Kafka e de Beckett. No século XX, não é por acaso, os grandes génios da "Idade do Caos", como lhe chama Bloom, são sobretudo escritores, os mais solitários dos criadores, autores de obras inacabadas ou impublicadas em vida, como a de Kafka, de Musil ou de Pessoa. Ou os escritores do absurdo, como Camus, ou da solidão absoluta, como Beckett."

 
António-Pedro Vasconcelos  em "O Futuro da Ficção"
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Páginas 44 a 49

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Jikan, "O Silencioso"

 
Leonardo Cohen monge zen. O seu nome monástico era Jikan, "O Silencioso".
" ... mais vale pássaro na mão que abutre a voar, porque quem bem tem e mal escolhe não se queixe do bem que lhe foge."
 
 
Miguel de Cervantes  em "Dom Quixote de la Mancha"
Publicações Dom Quixote
3ª edição (Setembro de 2015)
Página 301
"A grande ficção é premonitória. Entre a exaltação e a denúncia, os grandes ficcionistas são os que nos dão novas armas para interpretar as nossas próprias ansiedades e os que alargam os horizontes do humano.
(...)
Os grandes vultos, os "faróis" de que falava Baudelaire, os autores que foram alimentando, até ao século passado, o Cânone Ocidental, como lhe chamou Harold Bloom, parece terem desaparecido de vez: entre 1961, o ano em que Hemingway desistiu prematuramente de viver, e 1985, o ano em que as cinzas de Orson Welles foram depositadas no fundo do poço da quinta de Ordoñez, em Ronda, desapareceram Picasso e Stravinsky, Malraux e John Ford, Chaplin e Rossellini, Renoir e Hitchcock. E onde estão hoje os Mestres que nos inspiram, nos provocam e nos alertam? Desde os anos 80 que nenhum filme, nenhum romance, nenhuma obra plástica ou musical de projecção universal e prometida à perenidade - que são as marcas identificadoras do génio - emergiu nesta Europa que já não espera nada e que deixou de sonhar.
Porque será?"
 
 
António-Pedro Vasconcelos  em "O Futuro da Ficção"
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Páginas 11,12

O Poeta

"O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas muito,
muito mais variados!
 
As horas do dia e as quatro estações,
um pouco menos de sol ou mais de vento,
são a distracção e o acompanhamento
sempre diferente das suas paixões
sempre as mesmas; e o tempo que faz
quando se levanta, é o acontecimento
do dia, a sua alegria mal desperta.
Acima de tudo são alegria certa
as adversas luzes, as belas jornadas
movimentadas,
como a multidão numa longa história
onde o azul do céu e a tempestade pouco dura
e se alternam searas de desventura
e de vitória.
Com o rubro da tarde vem de volta
e com as nuvens altera a cor
da sua felicidade,
se não altera o seu humor.
 
O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas muito,
muito mais abençoados!"
 
 
Umberto Saba  em "Poesia"
Assírio & Alvim (Outubro de 2010)
Páginas 91,93

domingo, 11 de agosto de 2019

Camané - Quadras


 
(Fernando Pessoa/Jaime Santos (Fado Alfacinha))
Guitarra Portuguesa: José Manuel Neto
Viola: Carlos Manuel Proença
Contrabaixo: Carlos Bica
 
 
"O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
 
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente ...
Cala: parece esquecer ...
 
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!
 
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!"
 
Fernando Pessoa|1928
Poesias Inéditas: 1919-1930 (Nota prévia de Jorge Nemésio), Lisboa, Edições Ática,
1956 (imp. 1990), pp 92-93
Adaptação do poema O amor, quando se revela
"Foi sempre a ficção que moldou as civilizações e lhes garantiu prestígio e eternidade, como foi a sua ausência ou o seu declínio que as deixou no esquecimento ou as condenou à decadência; foi a capacidade de imaginação que os criadores tiveram para representar a realidade sob a forma de palavras, de sons ou de imagens, que fez a Atenas de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, a Florença dos Médici, a Roma de Miguel Ângelo e de Bernini, a Inglaterra de Marlowe e de Shakespeare, a Espanha de Cervantes e de Velázquez, a Versalhes de Molière, de Corneille e de Racine, a Viena de Mozart e de Beethoven, a França de Balzac, de Stendhal e de Victor Hugo, a Itália de Verdi e de Puccini, a Rússia de Pushkin e de Gogol, de Dostoievski e de Tolstoi, a Hollywood de Chaplin e de Capra, de Ford e de Howard Hawks. Sob a forma de romances e poemas, de pinturas e esculturas, da ópera, do teatro ou dos filmes, foi sempre a ficção que moldou o imaginário dos homens e consagrou a memória das civilizações.
Daí a minha interrogação: neste limiar do milénio, onde estão as ficções que irão despertar novamente os nossos sonhos e mobilizar as nossas energias? E de onde irão surgir? A Europa tem alguma coisa ainda para nos prometer, para além da exibição turística das suas ruínas e da memória embalsamada de um passado glorioso? E os Estados Unidos terão ainda capacidade de vencer o vírus da descrença e do medo, depois do Vietname e do 11 de Setembro? Ou será que essas grandes ficções irão surgir de outros continentes, assumir outras formas e emergir de outras culturas? As velhas nações adormecidas, como a China ou a Rússia, por exemplo, serão capazes de reatar o seu antigo prestígio e acordar para um novo ciclo criador? Ou será da América Latina, dona de uma literatura romanesca original e abundante, que irão despontar essas grandes ficções que a ajudem a libertar-se, enfim, da opressão e da subalternidade a que foi submetida durante cinco séculos, e que possam servir-nos de guia para este século? E serão outra vez os livros ou os filmes, o teatro ou a música, que irão dar forma a esse despertar ou a essa ressurreição? Ou irão surgir novas formas, até agora desconhecidas, de ficcionar a realidade, como aconteceu com o cinema no começo do século XX?"
 
 
António-Pedro Vasconcelos  em "O Futuro da Ficção"
Fundação Francisco Manuel dos Santos
Páginas 08 a 11
 
Teólogo muçulmano a ler um Alcorão, pintado ao estilo orientalista pelo otomano Osman Hamdi Bey, artista, intelectual e director de vários museus em Istambul.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

" - Agora te desculpo - disse Dom Quixote -, e perdoa-me o pesar que te dei, que os primeiros movimentos não estão nas mãos dos homens.
- Já bem o vejo - respondeu Sancho -, e, assim, em mim a vontade de falar é sempre o primeiro movimento, e não posso deixar de dizer, por uma vez sequer, o que me vem à língua."
 
Miguel de Cervantes  em "Dom Quixote de la Mancha"
Publicações Dom Quixote
3ª edição (Setembro de 2015)
Página 295

Julia Shapiro - Shape


 
Iris Murdoch
"Sabe, Sancho, que não é um homem mais que outro, se não fizer mais que outro. Todas estas borrascas que nos sucedem são sinais de que breve há-de serenar o tempo e hão-de suceder-nos bem as coisas, porque não é possível que o mal e o bem sejam duradouros, e daqui se segue que, tendo o mal durado muito, o bem está já perto."
 
Miguel de Cervantes  em "Dom Quixote de la Mancha"
Publicações Dom Quixote
3ª edição (Setembro de 2015)
Página 184

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

"O medo que tens - disse Dom Quixote - faz com que tu, Sancho, não vejas nem ouças direito, porque um dos efeitos do medo é turvar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são ..."
 
Miguel de Cervantes  em "Dom Quixote de la Mancha"
Publicações Dom Quixote
3ª edição (Setembro de 2015)
Página 182

Insónia Numa Noite De Verão

"Dei comigo deitado
debaixo das estrelas,
numa daquelas
noites que fazem da insónia que medra
um religioso agrado.
A minha almofada é uma pedra.
 
A dois passos de mim sentou-se um cão.
Sentou-se imóvel a olhar
sempre para um ponto, longínquo.
Quase parecia pensar,
que era digna de um rito,
que no seu corpo passaram os silêncios
do infinito.
 
Debaixo de um céu tão turquesa,
numa noite assim estrelada,
Jacob sonhou a escalada
dos anjos entre o céu e a sua almofada,
Que era uma pedra.
Nas inumeráveis estrelas o rapaz
contava a sua descendência futura;
naquela região onde fugia a ira dura
do mais forte Esaú,
um império invicto na flor
da riqueza para a sua prole;
e o pesadelo do sonho era o Senhor
que lutava com ele."
 
"Poesia" de Umberto Saba
Assírio & Alvim, Outubro 2010
Páginas 51, 53

"Envelheci pelas sensações" - Bernardo Soares

"Envelheci pelas sensações ... Gastei-me gerando os pensamentos ... E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se [...].
Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma. Abandonei-me mas não sei a quê."
 
"Absinto, Ópio, Tabaco e Outros Fumos - um livro de vícios"  de Fernando Pessoa
"Ninguém é dono dos seus humores."
 
Samuel Beckett em "À espera de Godot"
Edições Cotovia, Lisboa, 2000
Página 80

Pinhole Seascapes






 
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